17.11.06

Coincidências que só lembram ao diabo (um texto reaccionário)


Os jovens imberbes, ainda mergulhados no adolescente acne, inebriados com a espessura dramática do “morangos com açúcar”, decidiram fazer uma surpresa. Sem que ninguém contasse, mobilizaram-se de norte a sul através de mensagens SMS (foi-nos dito pela comunicação social amansada). A intenção era fechar as escolas a cadeado, impedir que professores e funcionários fossem trabalhar (o que, para os visados, deve ter sido um grande incómodo…). Protestavam contra as aulas de substituição.

Por coincidência – e apenas por coincidência, vamos acreditar que sim – no mesmo dia em que professores tinham sido escalados pelos sindicatos para estacionar à porta do ministério da educação. No exercício do direito constitucional de protesto, em dia de negociações entre o ministério e os sindicatos que podem destruir regalias dos docentes (tradução, na linguagem contemporaneamente correcta: bulir com “direitos adquiridos”).

Por uma vez, os petizes de braço dado com os professores. Foi vê-los, em harmonioso convívio na avenida Cinco de Outubro. Por uma vez, esquecidos os antagonismos entre os jovens a quem aprender tanto cansa e os professores a quem ensinar tanto custa. Por uma vez, os jovenzinhos quiseram mostrar solidariedade com os professores que lhes martirizam a vida durante o ano lectivo. Em vez dos insultos e das ameaças à integridade física dos professores, só afagos oportunistas.

Por mim fiquei descansado com o futuro deste país: temos uma geração dinâmica, imaginativa, com capacidade de encaixe para esquecer inimizades com o inimigo de sempre quando há um inimigo mais forte pela frente. Finalmente, haveremos de seguir o caminho certo quando entregarmos o leme nas mãos desta geração. Que será a tão prometida ínclita geração, decerto. Com semelhante capacidade de mobilização, que de um dia para o outro espalhou uma bem organizada operação de boicote às aulas e emparceirou milhares de alunos ao lado dos professores acampados à porta do ministério, podemos estar descansados. Há aqui vestígios de uma capacidade de organização que, se for posta ao serviço da governação da coisa pública e da gestão dos impérios privados, fará de nós a nova Irlanda, a nova Finlândia.

Convém não acreditar em coincidências notáveis. Não vamos supor que há alguém por trás desta súbita mobilização dos adolescentes. Não vamos acreditar que há interesses políticos, eles sim muito bem organizados, a acirrar as manobras dos petizes. Não, os jovens são imaginativos, dinâmicos e pensam pela sua própria cabeça. Todavia, quem os apanha à saída do ensino secundário sabe, ano após ano, que a qualidade média decresce. Ora, algo não bate certo. Ou os milhares de jovens que ontem se reuniram em protestos de norte a sul são uma colheita de excepção, rompendo com a mediocridade vertiginosa a cada ano que passa; ou decerto há alguém, bem mais adulto, a instigar os jovenzinhos no boicote ao ministério da educação.

Bastava ouvi-los, aos que tiveram direito de antena. Militância precoce, com a cassete engolida em tão tenra idade. É nestas alturas que apetece aconselhá-los: entreguem-se aos prazeres da adolescência, às festanças, aos desvarios próprios da idade, ao rock and roll ou ao drum and bass, ao bunging jumping, ao que seja. A formatação precoce destas mentes pelos cânones totalitários sequestra a jovialidade mental. São velhos logo à adolescência. E não chegam a perceber como não passam de instrumentos úteis nas mãos de interesses políticos inconfessáveis. Quantos aos demais, aos que vão na onda sem saberem ao certo onde estão e porque protestam, só a acefalia dominante os faz andar. Esses é que nem sabem o que é serem joguetes nas mãos de partidos que, estivessem no poder, seriam fautores de sanguinárias repressões destas manifestações. Chama-se a isto pura ingenuidade de quem se oferece para ser carne para canhão em causas alheias.

Não sei se haverá prémios para a dedicação protestante da turba. Não sei qual o rebuçado que adoça a boca da multidão. Não será pelo conteúdo dos protestos, que estes jovenzinhos estão desprovidos de capacidade para perceberem se as aulas de substituição lhes fazem bem ou mal. Para além da excitação que é participar em manifestações de rua, para além do que elas significam na prática (manifestamo-nos, logo não temos o aborrecimento das aulas), porventura prémios avulsos sorteados pelos manifestantes: t-shirts com a fronha do Che Guevara estampada; pins invocando os tempos áureos da União Soviética, que a iconografia de então entrou nos cânones da “moda”; free pass para a próxima festa do Avante, com direito a autógrafos do grande líder; inscrição gratuita, incluindo transporte, alimentação e opção de substâncias ilícitas, no acampamento da esquerda folclórica onde se aprende a arte da desobediência civil; para os mais felizardos, viagens a Cuba para aprenderem in loco as virtudes da dogmática. Isto é como os jogos de azar: quem não apostar não é contemplado pela sorte.

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