9.11.06

Os bancos, o demónio em instituição

O governo, na sua esquizofrenia ideológica, quis-nos convencer que é mesmo de esquerda. Regressemos à retórica: dizem que são de “esquerda moderna”. Só ainda não disseram o que é ser de esquerda moderna. Parece-me que ser de esquerda moderna não passa de um conjunto de tiques: o ar refrescante, jovial, mesmo dos mais envelhecidos; a tímida atracção pelas causas fracturantes que outros, mais radicais, empunham como bandeiras; o discurso social, a igualdade e a justiça, que dá tantos votos entre os carenciados e os líricos; e, ao mesmo tempo, uma prática que se distancia dos dogmas da esquerda empedernida, que ainda dorme com os fantasmas do marxismo. A esquerda moderna faz-me lembrar aqueles que cultivam a máxima “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

Como a gente que nos governa tem sido acusada de uma deriva de direita – mesmo entre alguns correligionários que fogem à tendência dominante e criticam o rumo seguido – havia que enviar uns sinais que transpirassem algum esquerdismo para apaziguar as hostes e calar os mais radicais à (extrema) esquerda. Os bancos são um alvo apetecido. Simbolizam o capitalismo diabolizado pelas esquerdas que, por estes dias, destilam uma aguda azia antecipando o que se comemora no dia de hoje (o décimo sétimo aniversário da queda do muro de Berlim). O ataque aos bancos teve dois actos separados por poucos dias. Primeiro, as novas regras de arredondamento das taxas de juro dos empréstimos à habitação. Depois, o anúncio de que os bancos vão passar a pagar mais impostos.

Não me interessa o que se esconde detrás desta estratégia do governo. Decerto, apenas imperativos de imagem, mais uma vez. Espantoso é o coro que veio escudar as decisões do governo. Aposto que era esta a intenção dos estrategas de imagem do governo e da turba socialista: encostar os bancos à parede, por serem um alvo fácil da inveja do povo rasteiro.

Ao anunciar que os privilégios dos bancos vão ser cortados, o governo sabia que os bancos iam reagir. Ninguém gosta de ver privilégios cerceados. Quando os representantes dos bancos vêm para a praça pública defender os seus interesses, estão no exercício de um legítimo direito. O modo não foi sensato. Por vezes perde-se a razão pelas infelizes palavras proferidas. O presidente da associação portuguesa de bancos teve o seu momento infeliz ao comparar estas medidas com peronismo retardado. Por mais incompetente e desnorteado que este governo seja, é excessivo acusá-lo de peronismo.

(Aliás, esta acusação só veio acicatar a esquizofrenia política dos nossos queridos governantes. Coitados, emparedados de um lado e do outro: à esquerda, acusam de praticarem “políticas de direita” – vá-se lá saber o que isto significa; do outro lado, escutam a acusação de peronismo. O centrão político tem destes males.)

O coro que se levantou contra os bancos é sintomático da inveja e da ingratidão que faz de nós um povo pequenino. Uma voz quase em uníssono, colando-se às absurdas posições da extrema-esquerda. Por estes dias somos um povo de extrema-esquerda, para gáudio da Soeiro Pereira Gomes e dos folclóricos espécimes do Bloco. Eis o raciocínio esclarecido: os bancos têm lucros avultados. Exploram os cidadãos que não têm recursos para adquirir habitação própria. Hipnotizam as incautas pessoas obrigadas a contrair empréstimos para saciar a fobia consumista. Se não houvesse crédito ao consumo, as pessoas resistiam às tentações do consumo supérfluo. A culpa é dos bancos: emprestam dinheiro, levam-nos ao endividamento sufocante e lucram pornograficamente com isso. Impõe-se vergastar os bancos com regras que retirem privilégios imorais, forçá-los a pagar mais impostos para que os lucros que os engordam sejam menores.

Inveja em estado puro. Ingratidão sem sublimação: não fossem os empréstimos da banca, quantos de nós seríamos proprietários das habitações em que residimos? (Ou, então, a propriedade será um pecado?) Os bancos são acusados de seduzirem as pessoas na tentação do consumo fácil, porque agora tudo e mais alguma coisa se compra com as imensas possibilidades do crédito fácil. É o costume: a invocação da ausência de livre arbítrio de cada pessoa, como se fôssemos autómatos comandados pela vontade demoníaca dos bancos.

Ao testemunhar este coro impregnado de moralidade anti-capitalista, só me apetece agradecer aos bancos por tudo o que me proporcionaram. Pago juros pela generosidade dos bancos (que assim não é generosidade; será, na tortuosa mente dos proponentes desta teoria da conspiração, apenas a exploração de desprevenidos consumistas)? Dou o meu contributo para engordar a lucrativa actividade dos bancos? É certo. Mas é se o próprio banco do Estado também tem lucros, ao gozar de privilégios legais que falsificam a concorrência, isto só prova que a história está mal contada. Porventura o paraíso seria permitir ao banco do Estado o monopólio da actividade e decretar por lei – como se decreta, por patéticas palavras ministeriais, o fim da crise – a proibição da usura lucrativa.

Então seríamos todos mais felizes. Ainda mais felizes porque o Estado estaria falido, acrescento daqui.

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