29.11.06

A sedução do autoritarismo


Descontando o incómodo causado no PSD (que só na sua ingenuidade podia esperar que Cavaco fosse oposição ao governo) e a divertida bazófia do CDS (que sossegou Cavaco prometendo-lhe “cooperação estratégica”), o noivado entre o presidente da república e o primeiro-ministro era o desfecho esperado. São almas gémeas: no feitio, na forma como encaram a governação (o pragmatismo em vez da ideologia). Até nas afinidades ideológicas, pois Cavaco é a ala esquerda do PSD e Sócrates a ala direita do PS, num encontro a meio caminho entre quem vem de quadrantes teoricamente diferentes.

Mais que a análise política e o tacticismo do xadrez político que tem entretido os comentadores, interessa-me perceber o coup de foudre que deitou na mesma cama Cavaco e Sócrates. E, sobretudo, as razões que filiam o povo na atracção pelos políticos que empregam o pragmatismo e usam o punho de ferro na governação.

Que Cavaco foi um primeiro-ministro autoritário, os anais da História não o desmentem. Serviu-se de duas maiorias absolutas para passear a sua sebastiânica aura durante dez longos anos de governação. Desse tempo resgatam-se as memórias de governação autista, sobretudo no segundo mandato. De como Cavaco se exasperava com as “forças de bloqueio” que lhe mordiam os calcanhares e incomodavam a marcha triunfante que julgava fácil pelo beneplácito da maioria absoluta.

Sócrates rivaliza em autoritarismo. Também caucionado por uma maioria absoluta que lhe caiu no regaço, dá mostras de um autoritarismo ao nível do exibido por Cavaco. Pelo andar da carruagem, suspeito que vai conseguir vencer o campeonato do autoritarismo. Só vai a meio do primeiro mandato e já exibe mais arrogância do que a ostentada por Cavaco durante o seu segundo mandato. Deleito-me com a arrogância e o desplante com que os adversários são tratados por Sócrates. É um largo sorriso que esboço quando o vejo, irado, a replicar aos que dele discordam. Intuo nele o propósito de terminar uma discussão quando ela lhe corre mal, ao jeito de quem diz, sem proferir estas palavras, “e não se fala mais disso porque, afinal, quem manda sou eu”.

“Quem manda sou eu” – o argumento derradeiro que os detentores do poder usam quando se esgota a razão e são derrotados pelos adversários. Cavaco reagia assim, o que o fazia esconder-se dos debates com os adversários (até porque Guterres era mestre na retórica). Sócrates é um émulo de Cavaco. Brilha quando não tem adversários que lhe façam frente. As encenações cirurgicamente arquitectadas, quando o governo anuncia mais uma obra ou medida com pompa e circunstância, nunca têm contraditório da comunicação social. Ela está necessariamente domesticada para não ofuscar o brilho autoritário do primeiro-ministro.

Por entre este cardápio de diletantismo da governação, o povo sanciona. Um povo amestrado, que baixa a cabeça quando os timoneiros conduzem a nau com mão de ferro. Quarenta e oito anos de ditadura salazarista deixaram marcas duradouras no tecido sociológico que somos. Um povo que não se consegue desprender da menoridade, sempre ansioso por uma tutela exercida por alguém que saiba de onde vem e para onde vai (ou, pelo menos, nos tente convencer que está seguro do rumo a seguir…). Quando podíamos ter a bússola nas mãos, entregamo-la aos timoneiros que prometem mão de ferro a dirigir a nau. Demitimo-nos da responsabilidade individual, tementes da incapacidade para levarmos, à nossa maneira, a nau pelo trajecto certo. Embevecidos pelos capitães que sabem sempre de onde sopram os ventos certeiros, aplaudimos os aprendizes de tiranetes, aqueles que só não almejam a tirania porque juraram fidelidade à democracia pelo menos formal em que foram escolhidos.

Um povo assim é um povo eternamente menor. Faz-me lembrar alguém que atingiu a idade adulta, acabado de sair da adolescência, e que contudo continua dependente da figura paternal. Sem saber que terrenos pisar, receoso de assumir a responsabilidade pelos seus actos, perpetua a tutela paternal. Nesta demissão da responsabilidade individual, não admira que continuemos a contemplar o Estado como se fosse uma vaca sagrada, o saco onde estão armazenados todos os milagres que solucionam os problemas em que tropeçamos. Os políticos que cultivam esta imagem do Estado paternal que afaga as dúvidas existenciais dos súbditos têm a passadeira estendida para o sucesso.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Não obstante as críticas, Cavaco teve sucessos objectivos na sua governação, embora não a subscreva na totalidade.
Quanto ao resto, o pior é que o nosso país político parece um pêndulo, que balança entre o líder austero e autoritário que faz (bem ou mal) como Cavaco e Sócrates, e os soft, que se desfazem em diálogos e sorrisos, mas que nada decidem e pouco fazem, maxime, Guterres.
Tal vez um dia o pêndulo se centre.