29.12.06

A patrulha dos bons costumes e a denúncia do consumismo natalício: ou, visão alternativa, os portugueses são um povo generoso


Fomos bombardeados por números assustadores que ilustram o natal deste ano: 450 milhões de mensagens de telemóvel, uma pipa de massa gasta em prendas. Os números jorravam sem cessar, pintando de negro o quadro dantesco que denuncia, pela enésima vez, como estamos viciados no insidioso consumismo.

Momento certo para dar voz às patrulhas da nossa consciência: quem mais haveria de ser, a DECO exprimiu a sua “profunda preocupação” com os sinais de um povo que ostenta consumo acima das suas possibilidades. De braço dado como uma qualquer agência de comunicação emparelhada com o governo, que fabricou uma das notícias do excesso de dinheiro gasto, mostrando aos incautos cidadãos que se eles prescindissem dos presentes e ofertassem esse dinheiro ao magnânimo Estado a colecta chegava para construir o aeroporto da Ota. Está-se mesmo a perceber onde querem chegar: o tocar a rebate das consciências, convidadas a bater no peito em jeito de expiação de culpa, para que cada um se mentalize do desígnio nacional que é a construção de mais um elefante branco, Ota de seu nome. Pela parte que me toca, a estes apelos sentidos respondo com mais consumo, se os rendimentos mo permitirem.

As notícias misturadas com estatísticas podem ser vistas por um prisma oposto. Em vez do catastrofismo dos que habitualmente defenestram o capitalismo (e o consumismo é uma das piores excrescências do capitalismo, assim somos meticulosamente instruídos), descobrir os aspectos maravilhosos nas notícias difundidas. Por uma questão de método, convinha colocar duas interrogações prévias aos fautores do panorama catastrófico. Primeira, a comparação temporal destes números: há dados que permitam comparar o dinheiro gasto no natal com anos anteriores? Verificou-se um aumento ou uma diminuição, e em quantos pontos percentuais? Só para confirmar se estamos em crise, como é propalado aos quatro ventos; e se estamos em crise e continuamos presos à voragem do consumo, num salto no abismo do endividamento que parece pouco responsável. Segunda pergunta: a comparação espacial, indagar se as verbas para prendas de natal são superiores (em valores relativos) a outros países europeus. Só para perceber se este é um fenómeno isolado ou, antes, uma tendência em toda a Europa. À falta destes dados, a difusão da notícia com o tom dantesco não revela nada.

E mesmo que se viesse a confirmar que somos uma ilha de consumismo, há o lado bom que se solta das amarras dos moralistas que exorcizam o consumo. Vamos supor que nunca como dantes os portugueses abriram os cordões à bolsa, nunca se endividaram tanto para as prendas de natal. Qual é o mal, se nisso podemos ver uma manifestação de generosidade? (Ainda que os anacrónicos representantes eclesiásticos o denunciem, apontando o dedo à materialização do espírito natalício.) Não estou a sugerir que os afectos sejam mensurados pelo valor do que oferecemos. Contudo, se num arroubo momentâneo alguém perde o juízo e oferece uma prenda surpreendente à pessoa amada ou aos filhos, ainda que venha a diferir o pagamento em vários meses, como podem os trituradores da consciência alheia censurar este acto enternecedor de generosidade?

É de aplaudir que DECO exiba a sua enorme preocupação pela nossa situação financeira. Sabemos que as famílias estão endividadas até ao pescoço (em rigor, os dados dizem que estão submersas em dívidas). Mas alguém passou procuração à DECO para vir para o espaço público como zeladora da situação financeira das famílias e de cada indivíduo? Haverá, para além deste pretenso altruísmo, o verdadeiro fito: a sanha persecutória aos bancos, que arrostam a culpa da deriva consumista das pessoas, incapazes de resistirem aos créditos falsamente fáceis que os bancos “oferecem”. Estas guerras deviam evitar o envolvimento das pessoas que decidiram gastar mais dinheiro com prendas de natal, agora convocadas para a posição de aliados dos inimigos da banca. No mínimo, é indigno: sem os bancos e os créditos de várias modalidades não teria sido possível satisfazer os desejos natalícios (caprichosos ou não, não interessa).

As notícias e a enxurrada de dados estatísticos do dinheiro gasto no natal não me assustaram. Nem me puseram a acenar com a cabeça, em tom de reprovação, na denúncia do imódico consumismo. Enchi-me de contentamento: por sermos tão generosos, por estes dias de natal. Quando alguém gasta o que tem e o que não tem está a empenhar o suor do seu trabalho – do que já trabalhou e do que vai trabalhar no futuro. Há acto maior de generosidade?

28.12.06

Subsídios para o ego patrioteiro: Portugal já é um exemplo para os outros!


Eis como o garbo nacionalista teve ocasião para puxar os galões. Habituados a figurar no fim da escala, ou a encabeçar campeonatos que não orgulham, por uma vez teríamos que servir de exemplo aos demais. Logo agora que está vulgarizada a política de os países se inspirarem nas boas práticas dos seus vizinhos, sempre que elas pertencem ao domínio da boa performance. Nós, povo sorumbático que se entrega ao desporto nacional do auto-desdém, merecemos a episódica recompensa de sermos paradigmas para os outros.

Um alerta deve ser feito: os exemplos tanto podem desfilar pelas suas virtudes como pelos seus defeitos. Por outras palavras, há bons e maus exemplos. E até nos maus exemplos podemos buscar importantes lições. Os maus exemplos servem como farol que orienta para o que não devemos ser. Quantas vezes nos posicionamos perante um assunto por antítese em relação ao mau exemplo que é apresentado? Não é uma postura de negação. Nos maus exemplos podemos encontrar os subsídios para aquilo que, no momento, julgamos ser acertado. Neste sentido, os maus exemplos têm predicados que não podem ser menosprezados.

O ego nacional não deve ficar acabrunhado ao revelar o contexto no qual Portugal surge como exemplo: ontem foi revelado um estudo da Comissão Europeia que sinaliza aos novos Estados membros da União Europeia o que eles não devem fazer na transição para o euro; Portugal é oferecido como a antítese do caminho a percorrer. Detalhe importante: o estudo foi redigido por um economista português que trabalha na Comissão Europeia. Eis como somos um exemplo para os demais. Embora um mau exemplo.

Não acho que a retórica do mau aluno seja depreciativa do pulsar nacional. Nem podemos mergulhar em mais uma depressão porque fomos afiançados como o paradigma do que não deve ser feito pelos países que desejam ter uma transição suave para a nova moeda europeia. A tentação de escavar a cova do pessimismo nacional pode ser grande, concedo. Contudo, há que ver o aspecto positivo deste episódio que, na aparência, destila a vergonha pátria. Esta é a explicação: alguém tem que bater com a cabeça na parede, nem que esses erros sejam o roteiro para o que os outros não devem fazer. Neste sentido, somos um exemplo categórico para os países que aderiram recentemente à União Europeia. Eles têm pouca margem de manobra para o erro. O facto de termos reincidido no erro representa um acto de generosidade em relação a esses países. O mais elogiável altruísmo. Portugal é um laboratório vivo que mostra tudo o que não deve ser feito nos restantes países que caminham em direcção ao euro.

Ora não podemos ter vergonha de um acto de altruísmo. Nem deve a auto-estima nacional arrastar-se no lodaçal, suspeitando que somos vistos lá fora como o exemplo do mau aluno, o paradigma do que ninguém quer ser. Se ao nível pessoal somos instruídos para tirar ilações dos erros cometidos no passado, sem os dramatizarmos, sem cultivar o excessivo arrependimento, porque não decalcar o princípio para o sentir colectivo? Admito que é forte a tentação para denunciar os erros políticos do passado. Duplamente fácil: à uma, ajuizar políticas com o conforto da distância temporal é um exercício sempre facilitado. Tarefa mais difícil é conceber as políticas certas no tempo em que elas estão à espera de ser aplicadas; por outro lado, os que agora denunciam os erros em catadupa e alinhavam as letras que compõem os nomes dos culpados (com Guterres à cabeça) foram incapazes de perceber, em devido tempo, que os erros estavam a ser cometidos.

Que me interessa que Guterres seja o principal culpado, ou que Durão Barroso e Santana Lopes tenham reiterado esses erros? É tempo cujas páginas foram dobradas. A desdramatização do estudo da Comissão Europeia é o exercício que se impõe. Primeiro, para não voltarmos a mergulhar no tempo ido e julgar, fora do banco dos réus, os fautores da desgraça cujos efeitos hoje suportamos. Segundo, para que a debilitada auto-estima do colectivo não se afunde mais ainda. O estudo não deve ser o pretexto para desânimo nacional; nem sequer está em causa a vergonha de sermos vistos pelos outros como o mau exemplo a evitar. Eles não nos olham de soslaio. Pelo contrário, Guterres, Durão, Santana e toda a corte que os acompanhou são glorificados por esses países, que agora têm a certeza do que não se faz depois de entrar no euro.

Amanhã, mais um episódio que enfatiza as glórias do colectivo nacional.

27.12.06

Get the message


Hossanas aos iluminados possuídos pela verdade. Estendamos a passadeira vermelha, mais as devidas genuflexões: os guardiães da verdade dizem “presente” na hora em que as nossas dúvidas procuram uma candeia. Lá vêm eles, catedráticos ou apenas convencidos autodidactas, proferir sentenças incontestáveis.

Não há lugar a dúvidas. Elas são o sustentáculo dos humildes mortais tão longe de serem agraciados com a quase divina fonte de conhecimento. Entramos no reino das certezas. Daquelas que não merecem a mínima contestação. Sob pena de aos contestatários ser lavrado humilhante auto de apedeutismo. Intui-se a lógica: tão seguros das suas certezas, não chegam sequer a parar por um momento para interrogar os dogmas em que alicerçam o raciocínio. Os que ousam dissidir são obnóxias tumefacções infectadas com pensamento distorcido. Aos dissidentes resta o desmerecimento de não servirem para interlocutores numa discussão.

A discussão descomprometida não tem lugar entre os fautores das perenes certezas. Ou, se lugar há à discussão, sempre um poderoso artefacto à mão: com mão de ferro, pôr uma pedra sobe o assunto quando se esgotam os argumentos. À laia do “não se fala mais no assunto”. A que se junta a semântica peremptória, que coloca pontos finais onde a pontuação devia acolher vírgulas. Só não percebem que quando assim agem se entregam nos braços da derrota não assumida. Vinga, então, o imperativo categórico que não merece contestação. A pedra angular de todo o conhecimento sábio de que acham empossados. Aos que se atrevem a desafinar o diapasão, resta a chacota e o estatuto de menoridade intelectual.

Inquietam-me todas as certezas colocadas no altar do incontestável. Até compreendo que certas coisas sejam arregimentadas para o lugar das certezas inabaláveis, que em rigor (e por honestidade intelectual) deviam ser remetidas à condição de quase certezas. Por hoje é tudo tão volátil, o conhecimento tão voraz, as fontes de conhecimento que se renovam a uma cadência vertiginosa e questionam as certezas que já pertencem a ontem. Se vivemos num tempo em que os ponteiros do relógio avançam com uma velocidade inusitada, custa-me a perceber a prosápia dos detentores da verdade absoluta. E mais a entender como estão emprenhados das suas verdades, como se fosse impossível olhar noutras direcções e encontrar interrogações que levantam as dúvidas e fazem soçobrar as certezas alimentadas.

Apetece glosar uma máxima filosófica que, de tão difundida, se elevou ao patamar de lugar-comum: o socrático “só sei que nada sei”. Às vezes convém mergulhar nos clássicos e resgatar as lições que não podem ficar emolduradas no tempo passado. Do outrora vêm importantes lições. E já que os sapientes guardadores da verdade absoluta se afadigam em tornar herméticas as respectivas certezas, seria bom que reflectissem sobre a deriva irracional que os comanda; como o mundo que insistem em moldar, presos a quadros mentais herméticos, pode ser uma miopia da realidade. Sublinho: pode ser; entrando no domínio das hipóteses.

Houvesse a humildade para expandir horizontes e, em vez das certezas que não podem ser questionadas, porventura o espaço mental pudesse ser ocupado por hipóteses, dúvidas, interrogações a eito. A grande dádiva do exercício da mente não é encontrar respostas; o que enriquece é a capacidade para levantar mais e mais interrogações, sem cedência ao entorpecimento das respostas convenientes. Pode ser mais confortável construir um ninho onde repousa o substrato das verdades que são postas à margem do contestável. Mas nem sempre o confortável traz o estímulo à vida. Prefiro ir adiando a procura de respostas e sublimar as hipóteses, indagar detalhes que deixam de o ser quando são revelados e contribuem para mudar a percepção das coisas. O que há de mais proveitoso é chegar a um ponto em que olhamos para trás e admitimos que o erro dominava as percepções, que novas hipóteses se perfilam e muitas interrogações emergem. A maior conquista é sermos zeladores das nossas dúvidas e primeiros críticos das certezas que forem irrompendo.

Um dia destes, os hábeis centuriões da verdade podem tropeçar numa surpresa desagradável: ficam a falar sozinhos. E sozinhos, ficam entregues às suas certezas inabaláveis – ou uns a falar com os outros, a trocar os sedimentos dos imperativos categóricos que perfilham em uníssono. Ficarão, alegres, a falar todos no mesmo sentido. A caminho da acefalia, aprisionados pelo dogmatismo que os cega. Falta saber se não é esse o destino idealizado.

26.12.06

Um murmúrio natalício


Do silêncio mais alto que invade a noite de consoada, um arrepio. Diria que toda a gente está recolhida nos afagos familiares, rodeada das iguarias da quadra, sentindo o crepitar da lareira e o barulho tão característico do papel de embrulho furiosamente rasgado pelas crianças. Só esporadicamente um carro ou outro, na mesma itinerância entre o local que foi de consoada e o travesseiro que espera a digestão da abastança que desfilou pela mesa.

Algures parado num semáforo, o contraste dos sentidos: uma figura andrajosa erra pelas ruas, cambaleando na companhia da muita bebida que terá tragado. Sozinho, tropeça em si mesmo e nos pensamentos toldados pela embriaguez. Balbucia umas palavras, imperceptíveis. Apoia-se no muro de uma casa, depois de uma curva mais pronunciada do corpo, quase em desequilíbrio. Prossegue o caminho errante, porventura sem saber que aquela noite era a celebração do natal. Acordará na manhã seguinte, estremunhado e com uma terrível dor de cabeça, sem saber que dia anunciava o calendário. Se alguém lhe dissesse, em plena rua, “bom natal”, interrogar-se-ia em que dia estava, o que era o natal, o que significava “bom natal” para alguém como ele, sozinho no mundo.

O semáforo ficou verde e o homem andrajoso perdeu-se no horizonte do retrovisor. Retive a sua imagem: as roupas velhas e sujas, um sapato sem cordões, a barba mal amanhada. Entregue ao frio da noite, cambaleando sem destino pelas ruas desertas. Que percurso teria sido calcorreado por aquele homem até se ter cruzado no meu caminho, na véspera de natal que findava com as pessoas que, mais adiante, se dirigiam para a missa do galo, rompendo a nudez das ruas com o aproximar da meia-noite. Mistérios insondáveis na felicidade a que cada um se entrega. O desamor da vida persegue outros, desencontrados com as pétalas perfumadas que trazem o singelo odor da harmonia, do carinho, o bem maior de se saber pessoa querida para outros e sentir a confortável sensação de nutrir tais sentimentos por alguém. A contingência da solidão é o divórcio com estas tão simples, mas ao mesmo tempo incomensuráveis, condições. No errante descaminho daquele homem perdido, a insignificância do natal.

Regresso a mim. Que seja covardia, ou este desejo de me desligar dos males alheios, como se as dores de consciência fossem apenas a ausência da felicidade própria. Desligado por instantes do meu mundo, pela imagem perturbante do homem desafiando a solidão do frio das ruas, ou os breves minutos para perceber que sou incapaz de resolver males alheios. Por mais duras que sejam estas palavras, há algo de profiláctico nos exemplos de sofrimento com que deparamos: os ventos do derrotismo empurrados para outros quadrantes, ao tomar consciência da demissão da felicidade com que fomos abençoados quando a autofagia de nós mesmos grita bem alto, quando nem percebemos todas as graças que vieram repousar à nossa porta.

Este é o natal que interessa celebrar. Arranjar tempo para dar valor ao que somos, a tudo o que foi sendo laboriosamente construído. Os dramáticos exemplos à nossa volta, mais perto do que imaginamos, mostram os privilégios que temos entre os dedos. Ainda que seja grande a tentação para os desvalorizar, ou não fôssemos atraídos pela deriva de ambicionar o que não temos, na eterna insatisfação que se apodera.

O vermelho no semáforo foi providencial. Um choque térmico para despertar da letargia que episodicamente vinga. Alguém dirá que a indulgência veio com o mal alheio. Que será indigno resgatar os privilégios da felicidade através da oposição com a desdita de um homem que passeava a solidão em véspera de natal. Não quero ser vampiro da desgraça alheia. Nem o meu bem-estar exigiu sacrifícios ao homem bêbedo que cambaleava rua fora. Inquietante imagem, decerto, mas estranhamente balsâmica: acontece, por vezes, quando tropeçamos no mal alheio para discernir a vida principesca com que fomos agraciados. Naquele momento, senti um doce murmúrio do natal estritamente pessoal. A entrega às nuvens sombrias que teimam em vogar sobre a minha cabeça não passa de uma ilusão, um espartilho que o cansaço do bem-estar vem impor. Sem que faça sentido.

O natal é também isto: a sagração do que somos, da ternura que recebemos e da que temos a mercê de dar, o dom supremo de não viver mergulhado numa asfixiante solidão.

25.12.06

De que cor é o natal?


Há um lugar-comum quando se diz: o natal pertence às crianças. Mas não deixa de ser verdade. A conclusão só se agiganta quando chegamos à idade adulta e passamos a ser testemunhas da vibrante felicidade que contagia as crianças pelas vésperas de natal. Por mim falo: a memória parece ter atraiçoado as recordações dos meus natais meninos. Exulto ao saber que não há-de ter sido diferente.

Se o natal é coutada dos pequenos, com que cores o pintam? Não é da monocromia dominante que traja o pai natal. O natal é feito de uma imensa paleta de cores. Uma por cada criança, para a policromia crescer no altar das sensações. Poderá a angústia povoar o espírito, quando por uns instantes acometem imagens de crianças pobres espalhadas pelo mundo fora, principalmente em África, que desconhecem o natal. Que até desconhecem o que é viver para além do amanhã. A mortificação ideal, aquela que ascende à tona quando a época convoca actos de solidariedade, e põe na mira imagens de crianças famintas a quem o natal está vedado. Nem sequer o natal consumista, apogeu das crianças das sociedades afluentes: apenas o natal sinónimo de felicidade que vem espalhada pelos dedos mágicos de alguém que garanta vida condigna.

Nestas paragens, o natal não tem cor, não existe para além do calendário. Um buraco negro, uma nódoa no registo da humanidade – e que interessa indagar as culpas se o tempo, entretanto, vai passando e mais corpos infantis definham no sórdido trajecto até à morte? Esse é um mundo que nos chega a casa, nas sociedades afluentes, pela televisão. Serve para a tal mortificação da consciência, que em breve se arruma num canto bem fechado para não perturbar a felicidade dos entes queridos, nem a felicidade que lhes é devida quando se celebra o natal.

É então que as dores de consciência se apascentam no mais alto egoísmo. Um egoísmo salutar, por paradoxal que pareça. Eu não posso, cada um de nós não pode, mover o remo contra a imparável maré empurrada por um vento que sopra do lado contrário. É verdade que o natal é sombrio em muitas paragens, uma triste televisão a preto e branco que não rouba sequer um sorriso das caras sofridas das crianças pobres. Cada um de nós é um minúsculo grão de areia incapaz de trazer cor ao natal dessas crianças. Esse dom existe quando olhamos para as crianças que se acolhem entre cada um de nós. Colorimos o natal delas: melhor dizendo, damos-lhes para as mãos os tubos com as aguarelas, mais a paleta onde misturam as cores para então pintarem o natal ao seu jeito. A alegria que irradiam é o melhor desejo de natal que me podem formular.

Apologia do consumismo? Que importa. Nem sequer me perturba a acusação de fazermos cedências aos ventos do consumismo inconsequente, com as muitas prendas que ofertamos às crianças, as muitas que ao fim de pouco tempo entram no domínio da inutilidade. Não me perturba ser réu da acusação colectiva que recai sobre os pais contemporâneos: acusados de alimentarem a fobia consumista das crianças. A educação da consciência ficará para mais tarde, quando o intelecto começar a ser formado e a compreensão se tornar inteligível – quando, por então, houver lugar a chocar as crianças com as imagens que percorrem a África profunda em busca do degredo do natal, que não chega a tocar com os seus dedos mágicos nas crianças carenciadas.

Até lá, permita-se que as crianças vivam a ilusão do natal, com a sua policromia extasiante, os quilos de papel de embrulho mais as toneladas de cartão dos brinquedos que vão parar às incineradoras. Permita-se que as crianças vivam o seu natal, sem terem os progenitores que aturar as dores de consciência de patrulhadores de serviço sempre na linha da frente a denunciarem o iníquo, o imoral, o desperdício que atenta contra o ambiente. São aves famintas sabe-se lá de quê, na tentativa de azougar o natal tal como o conhecemos (suspeito que nunca foram felizes em crianças, ou querem passar uma esponja pelos natais que então lhes trouxeram felicidade). Não pela simbologia religiosa, mais dada a crentes adultos que celebram o momento alto que esteve na origem da sua crença; mas pelo dourado lugar a que só as crianças pertencem, ainda descomprometidas de espartilhos religiosos que hão-de açambarcar a sua individualidade, cerceando as cores que jorram, tão intensas, do natal que idealizam.

Se edificar a alegria das crianças é uma concessão ao capitalismo que se apoderou do natal, eu digo: bendito capitalismo! E não é o que digo às aves agoirentas que querem roubar as cores garridas com que as crianças pintam o natal.

22.12.06

O asno do juiz (carta aberta ao juiz que ilibou do crime de violência familiar um homossexual que agrediu o seu parceiro)


Excelentíssimo senhor juiz: tomei conhecimento, pela imprensa, que V. Exa. não aceitou os argumentos de um homossexual agredido pelo seu parceiro, recusando punir a agressão pelo crime de violência familiar. Argumentou que a lei não reconhece casamentos entre pessoas do mesmo sexo e que só faz sentido falar de violência familiar no seio de um matrimónio. É nestas alturas que me envergonho de ter a mesma licenciatura que V. Exa.

Desafio-o, venerável magistrado, a seguir o meu raciocínio. Pode ser que se faça luz e os seus quadros mentais retrógrados sejam remetidos para a prateleira onde jazem os anacronismos desta vida. Como prolegómeno, queria esclarecê-lo que sou heterossexual convicto. Não sou activista dos direitos dos homossexuais, nem afino pelo diapasão de certas correntes políticas que encaram a defesa de causas fracturantes como uma estratégia oportunista para crescer no panorama eleitoral. Só para perceber que a minha inquietação com a sua sentença é descomprometida de causas. Creio que esse distanciamento me confere mais imparcialidade para ajuizar V. Exa., caso não considere do seu altar que o afronto.

Digníssimo magistrado: o senhor e eu sabemos que se algo caracteriza um jurista é a capacidade para descobrir interpretações sinuosas das leis. Decerto saberá melhor que eu – até pelos pareceres de ilustres catedráticos que lhe passam pela secretária, com as inevitáveis cambalhotas argumentativas consoante os interesses de quem lhes paga – que um jurista é capaz de puxar a brasa à sua sardinha vendo nas palavras um sentido que mais ninguém consegue discernir. E que o fazem com o maior dos despudores, como se as pessoas que se intrigam com o iluminado exercício hermenêutico exibissem a sua ignorância atroz.

Poderá V. Exa. esforçar-se por se agarrar à lei na recusa de qualificar como violência familiar uma agressão entre duas pessoas que partilham a vida familiar, alegando que só pode haver violência familiar se estiver legalmente constituído o matrimónio. Saiba que é V. Exa. que professa a maior das ignorâncias. Porventura vive enclausurado numa torre de marfim, isolado da vida real. Contudo, lá fora a vida decorre de forma diferente, desfasada das suas preferências. Há pessoas do mesmo sexo que decidem viver em conjunto. Que a lei deste país ainda não reconheça o direito de serem cônjuges, creio que é uma questão de tempo. Mesmo que isso venha ao arrepio da sua sensibilidade. Caso não saiba, há pessoas de sexo diferente que vivem debaixo do mesmo tecto, com património comum, sem estarem casadas. Pergunto-lhe: nesse caso, se o homem agride a mulher (ou vice-versa), também não se trata de violência familiar?

Saber de leis não é apenas uma questão de semântica. Se o fosse, os linguistas seriam os melhores juristas. Ao contrário de V. Exa., estou afastado do direito há muito tempo (mais de quinze anos). Contudo não esqueço os alicerces ensinados nos bancos da universidade. Não esqueço que o direito é uma realidade social, adaptável ao que se passa na sociedade. E, senhor juiz, por mais que lhe custe há homens que preferem homens a mulheres. Não serão como o senhor e eu, que gostamos mais de mulheres. Ora como não há lei que proíba os homossexuais de o serem, não faz sentido adaptar as leis que se aplicam à vida matrimonial aos casais homossexuais? Mais outra interrogação: por mais que lhe cause estranheza, se há uma agressão entre duas pessoas do mesmo sexo que vivem debaixo do mesmo tecto (e se o fizeram, não terá sido por amor?), essa agressão não corresponde a todas as características da violência familiar?

Para rematar esta carta aberta, regresso aos tempos de estudante de direito. Resgato outro ensinamento fundamental: os juízes devem aplicar a lei sem a contagiar com as suas preferências pessoais. Ou a lei passa a estar exposta às arbitrariedades dos juízes. Imagino que lhe repugne a ideia de dois homens a viverem juntos. Isso existe, senhor juiz. E se dois homens decidem andar atrelados, quando se esbofeteiam entramos no domínio da violência familiar. Rejeitá-lo fica-lhe mal. Perpassa a ideia de miopia intelectual de V. Exa. Ou isso, ou ignorância em estado bruto. V. Exa. terá a liberdade de escolher uma das hipóteses. Ou de se libertar delas quando perceber que deve respeitar as opções individuais, ainda que sejam uma contrariedade pessoal.

O mundo não é o que idealizamos, senhor juiz. É apenas o filme que passa diante dos nossos olhos, gostemos ou não. Como aplicador da lei, é indigno do seu estatuto pervertê-la de harmonia com a imagem do mundo que gravou nos seus quadros mentais. Mas, no fundo, é bom que o direito continue a destilar abjecções como V. Exa. Quanto mais não seja, para reforçar a opção de me ter afastado para os antípodas do direito.

21.12.06

As hagiografias suspeitas

Tremenda mania a nossa. Como se fosse um pêndulo que oscila sobre as nossas cabeças, sempre lembrando que somos de uma humana condição, longe da auréola que coroa as figuras beatificadas pela igreja. Tementes do julgamento final que nos há-de abrir os portões do paraíso celeste, esforçamo-nos por alcançar o diadema aceitável para ultrapassar as ameias que separam do almejado paraíso. Gostaríamos de ser santos. Do alto da nossa incapacidade, espelho da humilde condição humana, condescendemos quando alguém se apresenta retratado como santo. É aí que as hagiografias se destacam.

O estilo hagiográfico remete para as messiânicas figuras dotadas de um especial dom providencial. Eles foram os escolhidos, os timoneiros para levar a barca por águas tranquilas até aportar em cais seguro. A hagiografia enaltece os dons quase divinos da personagem retratada. Constrói os caminhos que hão-de arregimentar um séquito de fiéis seguidores, cegados pela auréola especial que encima a cabeça predestinada. É seguido, cegamente, como nos rituais religiosos os dogmas não concebem interrogações.

Há hagiografias de pessoas que já morreram. São as hagiografias fáceis. Correspondem a uma tendência irreprimível da espécie humana: os mortos são merecedores de todos os panegíricos. Aos mortos perdoam-se todos os desvios em vida, como se a morte apagasse registos malévolos, subitamente obliterados do futuro. Mas há hagiografias em vida. Diria, epitáfios antecipados. Só egos inflamados aceitam hagiografias de si mesmos enquanto convivem com o mundo dos vivos. Causa-me espécie a necessidade de se sentirem adulados pelo séquito e, como se isso não bastasse, caucionem hagiografias saídas da pena de um admirador. É que hagiografias em vida têm a ressonância de uma despedida do mundo dos vivos, como se afinal quem patrocina a hagiografia estivesse cansado de conviver com o pretenso santo ali retratado.

Para desgosto das figuras que se emprestam à hagiográfica condição, não se conseguem desprender da veste de simples mortal, com tantos defeitos que colocam obstáculos no caminho. O que basta para toldar a hagiografia, que afinal não é de um santo que se trata. Apenas um culto da personalidade. Como o registo histórico exemplifica com abundância, sobretudo entre ditadores sanguinários que se achavam homens providenciais, mostrando o sacerdócio do seu consulado totalitário. Olhar para trás, recuar no tempo e recuperar exemplos de personagens alucinadas, convencidas do seu estatuto sobre-humano. Tantos os escolhidos para liderar as massas, convencidos que os dissidentes deviam ser reprimidos para não perturbarem a tranquila marcha rumo ao progresso.

O registo hagiográfico cauciona a miopia de análise, imersa num perturbante autismo. Só virtudes, uma tremenda confusão entre méritos reais e ficções que transformam a historiografia oficial em feitos que não passam de encenações a jeito para a hagiografia. Desconfio de todas as hagiografias. Das que são feitas post mortem e sobretudo das que são encomendadas em vida dos santos que por aqui se misturam com os comuns mortais. Não acredito em Homens providenciais, aspergidos com dons divinos que os colocam num altar supremo que nós, comuns mortais, nunca podemos alcançar.

Interrogo-me se as hagiografias de figuras vivas não são um pretexto para desviar as atenções do lado obscuro que se pretende esconder. Quem muito enaltece méritos há-de ter um canto escondido da sua vida que é um cortejo de perversões, um chorrilho de pequenos e grandes pecados que imediatamente impedem a ascensão à beatífica condição reclamada pela hagiografia. Os retratados por hagiografias (em vida) não se dão conta do perturbante altar em que são colocados, ao lado de controversos ditadores que sentiram uma compulsão vertiginosa pelo estilo hagiográfico, porventura para ofuscar da memória crimes e desmandos que chegariam para negar a santificada condição que aparece em letra de forma.

As hagiografias: um exercício de recomposição da consciência, como se houvesse a necessidade de lavar a consciência dos atropelos cometidos no passado; ou apenas a compulsão do ensimesmamento, egos do tamanho do universo que gostariam de emparelhar com os santos lá na galeria onde são endeusados. Como não acredito que haja predestinados, nem pessoas com dotes sobre-humanos, a minha suspeita em relação às hagiografias fala mais alto.

20.12.06

Complexo da farda (remake): os porteiros de discotecas


Frustração pessoal: não tenho físico para porteiro de discoteca. No escasso registo pessoal de vida nocturna, deleitava-me com a prosápia dos porteiros de discoteca, a altivez de quem escolhe a dedo a clientela com franquia ao interior do estabelecimento. Do alto dos dois metros e mais de cem quilos amedrontavam os candidatos a clientes amontoados à porta. Calavam possíveis protestos, que os bíceps avantajados e o enorme poder que tinham entre mãos (ficar à porta tempo infindável ou cair nas boas graças e ter acesso ao plateau) punham a ordeira clientela em respeito.

Era vê-los, vaidosos e altivos, como alvos das atenções. A turba aferrada na fila espetava o dedo no ar, com esperança que fossem os próximos escolhidos. A mais pura arbitrariedade. Estar numa fila não garantia prioridades. O que contava era o supremo poder dos porteiros, a sua escolha arbitrária. E a turba esperava, paciente. Ansiosa, que os minutos passados lá fora eram tempo perdido de diversão luxuriosa. Mas perseverava, engrossando a fila ao mesmo tempo que crescia o poder dos porteiros.

Para os aspirantes da nova ciência - aquela ciência que ganha terreno nas universidades e que faz do assunto mais banal tema para teses de mestrado e de doutoramento - uma proposta de investigação: aliar o útil ao agradável, percorrer uma amostra de estabelecimentos de diversão nocturna, de norte a sul. Indagar sobre a "política de selecção da clientela" praticada nas discotecas. Entrar nos meandros da gestão destes estabelecimentos, interrogar os proprietários e os porteiros tentando desemaranhar as linhas de orientação que os primeiros passam aos segundos quanto à selecção de clientes. Perceber se os porteiros têm neurónios suficientes para compreender as orientações dos seus patrões, se o que praticam se afasta das orientações da gerência. Verter em ciência o exercício de poder dos porteiros. Com a ajuda a psicólogos para decifrar o comportamento dos porteiros (tornando o estudo inter-disciplinar). É uma agenda de pesquisa promissora.

Do baú das recordações recupero a vaidade dos porteiros, que sussurravam entre si enquanto deixavam à beira da apoplexia pobres almas ansiosas por entrar na discoteca. Dava gosto ver os porteiros a escolherem o próximo contemplado, depois de largos minutos de espera paciente da multidão enfileirada. Era um momento de êxtase, mais para os porteiros do que para os felizes escolhidos. Nesse momento, percebia nos porteiros o exercício da magnanimidade. Ou melhor, queriam que os candidatos a clientes entendessem que aquela tarefa era, para os porteiros, o acto maior de generosidade que a humanidade pode conhecer. Regozijam-se ao terem perante si uma multidão que clama pelo piedoso acto de serem os próximos escolhidos para o turbilhão de cores psicadélicas e sons alucionogénicos que desfilam no interior da discoteca.

Este regozijo interior é a medida do empossamento de poder dos porteiros. A atestar pela arrogância com que tratam a turba apinhada à porta da discoteca, a altivez com que, mastodontes, protegem a porta do estabelecimento contra as investidas de figuras indesejáveis. São a caução da boa frequência do estabelecimento, o que reforça o poder que detêm. Um filtro decisivo para que "a casa" tenha uma boa clientela, o que atrai ainda mais clientela. Da mesma forma que um restaurante consolida fama pelo maître de cuisine, pela boa gastronomia que oferece a quem ali se amesendar, os porteiros são a chancela do sucesso da discoteca. Mais que os DJ. Nos dias que correm, interessa mais quem se vê na entourage que o conteúdo consumido. O sucesso avalia-se pela densidade de beautiful people, não pela decoração de interiores ou pela música que passa - muito menos interessa saber se o whisky é marado ou de boa qualidade. Como filtros, os porteiros são peças chave na engrenagem do negócio. O que intensifica o poder que detêm.

Eis a democratização proporcionada pelo negócio, como o capitalismo é um enorme oceano de oportunidades. Eis como figuras pouco dotadas intelectualmente conseguem ascender a posições que lhes conferem um poder substancial. Sem este segmento de negócio, decerto muitos mastodontes que parqueiam às portas de discotecas andariam pelo bas-fond, entregues à criminalidade, pela sua inutilidade para outras tarefas que exigem destreza.

19.12.06

Os “boys”: esses injustiçados, esses incompreendidos

Se há coisa que me inquieta são as apreciações eivadas de injustiça. Pode ser por distorção na análise, o que torna a injustiça desculpável (a lente está desfocada). De outras vezes, apenas intencionalidade e aleivosia: os outros são ajuizados com o estigma de quadros mentais predefinidos, o que prejudica a objectividade e cerceia a razão.

Eis a pergunta do momento: crucificar os carreiristas que se empoleiram para abraçarem uma migalha nas sinecuras do Estado generoso e gigantesco? Colocado de forma mais prosaica: censurar os “boys” que se banqueteiam no lauto manjar do orçamento de Estado? Vem isto a propósito do esforço de um dos líderes da oposição para vergastar o intocável governo em funções. A notícia fala por si: “o líder do PSD, Marques Mendes, diz-se “revoltado” com a anunciada criação de uma empresa para gerir a reforma da Administração Pública que, acusa, vai “aumentar o número de administradores e estruturas”, colocando “mais boys a comer à mesa do Orçamento””.

(Não, não interessa a incoerência que se solta com a verve do líder transitório do PSD. Nem tão pouco resgatar da memória testemunhos credíveis que atribuem ao actual inquilino do Palácio de Belém, ainda enquanto primeiro-ministro, a engorda do monstro que hoje é o Estado que nos sufoca e cerca. Vou descontar estes aspectos, para não achar risível o histerismo do líder do PSD perante uma (mais uma) largueza despesista da providencial “esquerda moderna”.)

E que tal defender as regalias que vão parar ao prato dos “boys” que ostentam cartão de sócio? Os que se indignam são invejosos que gostariam de estar na privilegiada posição dos “boys”. De uma maneira ou de outra, o orçamento de Estado alimenta muitos “boys” e “girls” que fazem da política tirocínio e nela se reformam, sem mais nada saberem fazer. Quando o protesto ecoa na boca do líder do maior partido da oposição, daquele partido que tantos anos deteve o poder e que aspira a derrubar os actuais donos do poder, só uma sonora gargalhada.

Coitados dos “boys”. Empenham a vida na dedicada militância partidária; não o fazem sem interesse futuro. A vida nos partidos não é um sacerdócio. Os militantes não são almas caridosas, dando o seu melhor apenas para que os da sua cor possam encher o bandulho das sinecuras que o poder oferta. Desenganem-se os líricos que acreditam numa política de causas, ou numa política porque é a melhor para o país. Os políticos e os militantes dos partidos não são escuteiros. Sabem, decerto melhor que os ingénuos que continuam fora do circuito partidário, como se distribuem as benesses quando o poder toca aos “nossos” (deles). Muita serventia, muita genuflexão, muitos contactos privilegiados, muitos pedidos especiais – e, em contrapartida, exibem a folha de serviço(s) em prol do partido. É então chegado o momento de esfregar as mãos com a recompensa pela dedicada militância. É só destapar o tacho.

Além do mais, os “boys” são uma casta de iluminados. Pessoas muito competentes, que sempre se distinguiram pelo brilho intelectual, intensidade do discurso, qualidade literária. Merecem uma compensação à altura das excelsas qualidades que exibem, que os diferenciam dos comuns mortais. Estes, ou não passam da cepa torta da militância partidária, ou são asnos que teimam em ficar à margem da vida dos partidos. Pior para eles.

Os “boys” estimulam a economia nacional. Basta ver o exemplo denunciado pela língua viperina do líder do PSD: vão ser criadas duas novas empresas para gerir a administração pública. Para Marques Mendes, é o pretexto para mais uma coutada a “boys” e “girls” empunhando o cartão de sócio do PS. Decerto gente que está desempregada, ou a ser utilizada em tarefas que são um subaproveitamento das suas incontestáveis aptidões. Há gente que vai ser retirada das estatísticas do desemprego. Já se percebe, só por aqui, quão virtuosa é a ideia do governo. Se adicionarmos o muito que vão consumir com os seus principescos salários e o bem-estar que vão distribuir pelos entes queridos, estamos no caminho para perceber como um tacho para um “boy” multiplica a felicidade por três, quatro, cinco – tantos os membros do agregado familiar. Sem contar com os efeitos multiplicadores (que o economista Keynes, herói nunca esquecido da “nova esquerda”, tão bem ensinou): mais consumo significa mais lucros para as empresas; implica ainda mais emprego, pois as empresas vão ter que contratar mais trabalhadores para poderem aumentar a produção; e estes trabalhadores, por sua vez, vão aumentar o consumo – e assim sucessivamente, até ao infinito (como se a nau pudesse navegar até ao infinito…).

Não esqueçamos o serviço inestimável que estes “boys” prestam à comunidade. Decidem, ou aconselham decisões, com a refulgência das suas inatas qualidades intelectuais e o padrão de competência inatingível pelo comum dos mortais. Até acho que eles estão mal pagos. Pelo bem que proporcionam, deviam ter remunerações bem superiores. Há que o não esquecer: quem deles mal disser está na posição de desdenhar o alheio. E já sabemos o que se diz de quem desdenha. Hossanas, pois, aos “boys” e “girls” socialistas. Um grande bem-haja a todos eles, mais a quem tem a febril imaginação para inventar mordomias que os mantêm ocupados e lautamente remunerados. Que seríamos de nós sem eles? Uma árida terra, aposto.

18.12.06

O circo do natal, os animaizinhos amestrados e o contentamento das criancinhas


Talvez o espírito natalício quebrasse o gelo que assimila a insensibilidade perante a quadra. Talvez cantasse em dó maior as melodias que povoam a época natalícia. Porventura enlevar-me pela doce maré, com a obrigatória visita ao circo. E utilizar muitas vezes palavras em diminutivo, que por uns dias somos um simulacro da concórdia e o coração amanteigado faz as vezes de mordomo dos dias de natal. E o circo: uma procissão necessária, sem a qual o natal não sabe a natal.

Nem sempre cumprimos o mister mais fácil. Nem sempre conforta fazer de conta que a realidade foi varrida para debaixo do tapete, por uns dias que seja. Não vou mergulhar nas injustiças, ou na pobreza, na fome, nas doenças que levam a vida de infantes quando tanta vida prometida restava por diante. Sei que estes estão entre os problemas maiores da humanidade. Como sei que sozinho sou incapaz de dobrar o cabo e sacudir estas vergonhas para o canto do passado. Serei leviano, mas as palavras que hoje escrevo vêm influenciadas por uma minudência (quem sabe?): os circos, um código de sinais para entretenimento das crianças, chegado o tempo natalício.

Porém o circo choca-me. Nada contra palhaços e trapezistas. Choca-me pelo tratamento indigno dado a animais ferozes que ali aparecem, perante a audiência boquiaberta, como feras amestradas. Um atentado contra a natureza selvagem destes animais. Um tigre majestoso salta para cima do banquinho e obedece cegamente aos urros e gestos do tratador. Que sacrifícios terá o animal suportado até aparecer em público como um inofensivo gatinho com um tamanho gigantesco? E, insisto, um tigre ou um leão de farta juba a reagirem de forma pavloviana às ordens de uma tratador, é a negação do que estes animais são, reis da selva, predadores orgulhosos. Pode ser impressão minha, mas percebo a tristeza no olhar destes animais de cada vez que entram em cena para mais uma performance abrilhantada pelos aplausos dos espectadores e um naco de carne de sobremesa.

Dirão: o circo existe porque as crianças gostam de circo. O circo anda de braço dado com o natal. E o natal é, sobretudo, crianças. Deixemos o circo existir como sempre existiu, com as feras amansadas a fazerem números circenses para os petizes encantados. É para isso que os animais irracionais servem: caucionam a superioridade da espécie humana. E quando toca a agradar às criancinhas, nada pode obstar à alegria que as faça esboçar um largo e prolongado sorriso, nada compensa o brilho dos olhos ao contemplarem o néon mágico do circo.

Então que não se fale de uma educação responsável nos valores que reclamam um qualquer sagrado altar. Esqueçamos a educação ambiental, pelo menos enquanto deixarmos que os circos sejam o que são. Não preconizo proibições. Aposto numa educação responsável que ensine às crianças que os animais não são coisas nem escravos para absoluto deleite da estupidificada espécie humana. Não me admiraria se um enérgico militante da causa ambiental levasse a prole ao circo e, ele também, se deslumbrasse com o domínio que o Homem exerce sobre as bestas mais poderosas à face do planeta. Tão habituado às incongruências destes verdes que o são apenas na casca, não ficaria surpreendido.

Estes animais pertencem aos seus habitats naturais. Aprisioná-los em jaulas exíguas, fazê-los viajar de cidade em cidade na itinerância rotineira do circo, é uma violência que explica muita da ignorância humana. Nem quero imaginar as malícias por que passam enquanto são treinados. Dói-me vê-los a passear na arena, saltando ordeiramente de banquinho em banquinho, elevando as mãos ao sinal do tratador, fazendo piruetas entre aros ardentes. Já os vi enjaulados no exterior da caravana circense, para atrair as atenções do povaréu. Expostos à curiosidade humana, não têm direito ao sossego que o infortúnio da sua captura lhes retirou. São apenas aberrações que o povo olha, sem comiseração nem sensibilidade, porque os animais são de segunda ordem de grandeza. Deus fê-los assim, para serem submetidos à vontade do Homem. Os dogmas não se questionam.

É perante episódios destes que me apetece fazer coro com Victor Hugo: “quanto mais conheço os Homens, mais gosto de animais”.

15.12.06

"Eu curo com as minhas mãos"


Na sala de espera, antes de entrar para a marquesa do dentista, espectador de um programa matinal de variedades. O desfile de bizarrias e coitadinhos, as desgraças espalhadas pelo território, no exercício da comiseração do público. Porque o público sente a consciência aliviada quando se apieda pelas desgraças alheias. Um golpe supremo de egoísmo, mascarado de generosidade que a gentinha julga aspergir.

O som estava emudecido. No ecrã, uma velha com óculos de fundo de garrafa falava, excitada. A entrevistada monopolizava as atenções, interrompia as perguntas dos entrevistadores. A mulher tresandava uma energia diabólica. No rodapé da imagem iam passando palavras que resumiam a entrevista. Foi então que se revelaram os predicados que a tinham levado ao estrelato momentâneo: “eu curo com as minhas mãos”, ia passando, uma e outra vez, no rodapé da televisão.

A velha com ar ensandecido era uma curandeira. Aposto que daquelas que vai religiosamente todos os anos ao congresso de medicina popular de Vilar de Perdizes, para mostrar as façanhas de que é capaz. A certa altura começaram a desfilar no informativo rodapé os atributos pessoais da curandeira. Curava de tudo um pouco, de achaques corriqueiros a doenças que nem os médicos conseguem curar. Até em doenças de pessoas já desenganadas ela operava milagres. E tudo só com as suas mãos, possuídas de um toque mágico que espanta as doenças que teimavam em cirandar as pessoas já cansadas da medicina tradicional. A ciência perante o impasse, porta aberta para as mãos milagreiras da velha curandeira.

A velha alucinada atirava perdigotos visíveis do outro lado da televisão, regurgitados pela boca desdentada, encimada por um lábio carnudo que alojava indisfarçável buço a caminho de bigodaço. Gesticulava uma energia imparável, tão imparável que os entrevistadores se impacientavam por a não conseguirem calar. Devia falar das mezinhas usadas para curar as maleitas do povo ignaro, do mesmo povo ignaro que vai ordeiramente à igreja e no dia seguinte bate à porta do consultório da curandeira. A fantástica capacidade do povo se entregar a paradoxos sem o perceber: hoje a crença religiosa tão arreigada, amanhã a crendice popular tão contestada pela hierarquia eclesiástica. E, no fundo, esta entrega do povo a curandeiros populares desmiolados não é a síntese da religiosidade do povo, uma religiosidade que prima pela superstição e não pela genuinidade dogmática?

Lembro-me de amigos contarem histórias passadas nas serranias perdidas do Gerês. Como um deles, destemido, se entretinha a apanhar pequenas cobras fugindo entre os arbustos ou nadando nos ribeiros. Quando desciam até à aldeia mais próxima, havia umas velhas vestidas de negro que trocavam os répteis por galinhas. Mais tarde souberam que as velhas usavam as cobras para bruxedos vários, na crendice popular de que os répteis eram portadores de mágicos poderes que curavam todo o género de maleitas.

A velha que não parava de espingardar o seu discurso na televisão curava com as mãos. Dir-se-ia que é sucessora dos poderes mágicos de Cristo, que também curava com as mãos. Daí a atracção do povo, porventura crente que estes curandeiros herdaram um quinhão dos poderes sobrenaturais do Cristo que veneram. Não sei se estes rivais da medicina tradicional incomodam os médicos. Porventura não é muita a clientela que os curandeiros desviam dos consultórios dos médicos. Talvez se contorçam de alergia ao verem as mezinhas propostas pelos curandeiros populares, ou apenas se riam pelo disparate que desafia a racionalidade da ciência que os treinou. O reino dos curandeiros transporta-nos para outra dimensão, bem longe da racionalidade e da ciência. É o aleatório que vinga, a inspiração sobrenatural que uns predestinados julgam ter. Com a ajuda de ervas seleccionadas e de magnetismos só ao alcance dos predestinados, vão granjeando uma corte de seguidores que a eles recorre sempre que a hipocondríaca veia sussurra a convicção de que estão doentes. Sim, a convicção da doença. Pergunto-me em quantos casos não é apenas a ilusão que fala mais alto, deixando que os curandeiros vençam na sua arte de prestidigitação.

Uma mistura de profunda ignorância popular com o poder da mente. A mesma mente que se convence que está doente entrega-se à persuasão das mezinhas dos bruxos. E tão depressa a mente se adoenta com mais uma maleita determinada pela tendência hipocondríaca, como depressa as prescrições dos curandeiros têm um efeito surpreendente no varrimento da enfermidade. A ignorância popular é o terreno de eleição para a indústria dos curandeiros alternativos. Enquanto a ignorância estiver profundamente arreigada no povo, havemos de ter muitos bruxos de norte a sul. Curandeiros que se banqueteiam à mesa da ignorância popular e, convenientemente, a perpetuam.

14.12.06

Há ditadores virtuosos?


Resposta lapidar: não. Mil vezes não. Independentemente dos atentados aos direitos humanos que tenham perpetrado; independentemente dos anos que se perpetuaram no poder, asfixiando as vozes dissidentes, torturando os oposicionistas, exilando quem ousava falar noutra escala ideológica; e independentemente da sua filiação, à esquerda ou à direita. Todos os ditadores são facínoras do livre arbítrio. Não colhem – nunca podem colher – os pretextos em seu favor: a defesa do povo contra o capitalismo selvagem (ditadores que se encostam à esquerda); a defesa da pátria contra os fantasmas do comunismo (ditadores situados à direita).

Fico aturdido com alguns sectores da direita que verteram lágrimas pela morte de Pinochet. São os mesmos que se indignam (e com razão) quando testemunham o ternurento tratamento que ditadores de esquerda recebem por uma imprensa de memória selectiva. Alguns destes representantes da nossa direita decidiram tecer loas ao antigo ditador chileno só para provocar os sectores bem pensantes da esquerda. É a interpretação que me ocorre. Ou é um truque de retórica, para apanhar numa armadilha o politicamente correcto de esquerda, ou não percebo a lógica destes sectores de direita que teceram um manto de piedade na morte de Pinochet.

As mortes de que o torcionário ditador foi responsável não se apagam da memória. Os anos que passou no poder, com a sonegação da liberdade de expressão, as torturas sistemáticas, os exílios em massa, fazem parte da História. Atropelos inadmissíveis aos direitos humanos. Alguns, comiserados com o decesso do ditador, vieram lembrar que ele evitou a instalação do comunismo no Chile. O que bastava para entrar nos anais da História como personagem recomendável. Lamento discordar: continuo a teimar que os meios não justificam os fins. Menos ainda quando, para atingir o fim, é necessário espezinhar vidas humanas, num ritual sacrificial que ecoa a ensandecimento.

Também os cultores da realpolitik não me convencem na sua tentativa de apaziguar a memória colectiva com Pinochet. Tentam justificar o apoio dos Estados Unidos ao golpe sangrento protagonizado por Pinochet, bem como a caução à política de silenciamento e morte de quem se opunha ao regime ditatorial. À falta de melhores argumentos, soltam os imperativos da realpolitik. É um argumento que me deixa aterrado. Este é o argumento derradeiro porque todos os demais se esgotaram, vencidos na discussão. Que, pelo caminho, vidas humanas tenham sido ceifadas, detalhe insignificante no altar supremo da realpolitik. Quem assim fala não hesita em denunciar os fundamentalistas islâmicos que desvalorizam a vida humana quando cometem os hediondos atentados que semeiam a morte e o terror. Só não percebo como podem esgrimir este argumento se, pelo culto da sagrada realpolitik, resvalam para a mesma desvalorização da vida humana.

É nestas alturas, quando a evocação de ditadores de direita traz palavras elogiosas, que aumentam as minhas suspeitas em relação ao jaez da direita caseira. Desconfio que muita da nossa direita é mesmo saudosista dos idos da ditadura salazarista. Podem ter sido convertidos ao jogo da democracia, muitos decerto por conveniência. Escorregam para a sua verdadeira essência quando soltam uma lágrima furtiva no último adeus a mais um facínora que ficou conhecido como ditador de direita.

Outros, também de direita mas genuínos democratas, embarcam num jogo perigoso quando elogiam o ditador de direita que se despediu da vida. Alegam que à esquerda há quem elogie ditadores de esquerda, alguns ainda no poder. Criticam a incoerência dos esquerdistas que sancionam os ditadores da sua preferência e depois atacam furiosamente ditadores de direita. Têm razão quando denunciam a incongruência desta gente que se arroga ao monopólio da razão. Perdem-na quando usam as mesmas armas dos esquerdistas que criticam. São da mesma igualha ao descobrirem o fio à meada do virtuosismo de ditadores de direita.

A humanidade tem motivos para festejar de cada vez que um ditador é derrubado do poder, de cada vez que alguém que em tempos foi ditador diz adeus à vida. Seja qual for a sua proveniência ideológica, seja qual for o quadrante político onde se insere.

13.12.06

Oxalá como os outros



Somos um povo com uma humildade enternecedora. Cientes das nossas fraquezas, olhamos para os estrangeiros como modelos que queremos imitar. Existe maior admissão das incapacidades próprias do que a busca do sucesso alheio como farol que há-de guiar os nossos empreendimentos futuros? Contrastamos com outros povos que ostentam, garbosos, a sua pertença nacional. Os chauvinistas, empunhando uma superioridade divina em relação aos demais povos. Connosco, o contrário. Desmerecemos os nossos atributos. Na resignação da desdita nacional, olhamos para fora das fronteiras em busca da inspiração para sermos o que, por nós, não conseguimos alcançar.

Às segundas-feiras tentamos ser irlandeses. Às terças-feiras vamos esgadanhar inspiração aos suecos. Às quartas-feiras fazemos um esforço para copiar os finlandeses. Às quintas-feiras fixamos o olhar no exemplo dinamarquês. E às sextas-feiras a inspiração atravessa o Atlântico, para repousar no paradigma norte-americano. Aos fins-de-semana regressamos à lusitana condição, merecido o descanso dos justos. Tudo com o beneplácito governamental, que não se cansa de gabar os exemplos alheios, enviando sinais claros que devemos beber a inspiração nestes exemplos de sucesso.

Na Irlanda procuramos as pistas do milagre económico. Vamos importar da Suécia os traços que permitem salvar o endeusado modelo social europeu, tão caro à social-democracia bem pensante. A Finlândia é um exemplo de sucesso tecnológico, como um pequeno país consegue aproveitar as sinergias de que dispõe para singrar num segmento muito específico. A influência do sucesso Nokia. É mais recente a atracção pela Dinamarca, o lugar de onde o primeiro-ministro copiou a ideia da “flexi-segurança” (ou a quadratura do círculo de quem tenta conciliar o modelo social europeu com mais flexibilidade no mercado do trabalho). O exemplo mais recente foi dado pelo ministro que tutela a ciência, a investigação e as universidades. O ministro quer que os estudantes universitários comecem a trabalhar a tempo parcial enquanto estudam. Os Estados Unidos foram o exemplo que serviu de inspiração.

Não está em causa o mérito das propostas que querem fazer de Portugal um émulo de outros países. Nem a desidentificação nacional, através deste mosaico de nacionalidades que passaria a ser a força motriz da nossa grandeza. Assim como assim, está na moda o exercício das boas práticas como guia de orientação para a governação dos países: devem seguir as pisadas daqueles que inovam a oferecem um bom desempenho. Nem está em causa a largueza de vistas deste primeiro-ministro, mais o seu cosmopolitismo que faz dele uma figura tão arejada, tão modernaça. O que se equaciona é a desdita de um povo que tem que pescar os bons exemplos que vêm lá de fora para ser alguém na vida, para sair do torpor em que vive aprisionado de há largo tempo.

Talvez mais importante que arpoar o anzol no primeiro exemplo de sucesso que apareça pela frente, seja perceber se temos condições para encaixar no modelo que teve sucesso algures. É utópico acreditar que, com um estalar de dedos, deixamos de ser o que sempre fomos para nos moldarmos às exigências de um modelo que teve sucesso no estrangeiro. Há características enraizadas na nossa maneira de ser. Não é por acaso que se fala da idiossincrasia dos povos. O grande problema que derrota o optimismo dos governantes é este: os modelos tiveram sucesso nos outros países porque os seus povos encaixaram nas exigências desses modelos. Por cá, o pretendido sucesso da importação de modelos alheios esbarra na idiossincrasia nacional. Para desgosto de quem nos governa, que acredita nas soluções milagrosas importadas de alhures. Há frases que ficam imortalizadas no tempo, são lições para quem engaveta a memória (e o conhecimento) num quarto escuro. Voltaire tinha razão quando dizia “a educação desenvolve as qualidades, mas não as cria”.

Para terminar, duas notas de perplexidade nesta fobia de imitação do alheio. Primeira, quem nos governa demite-se de fazer o seu trabalho. Desliza para o facilitismo do sucesso alheio, sem perceber que o êxito dos outros não se coaduna com as nossas idiossincrasias. Assim se manifesta a incompetência. Segunda nota, ao enfatizar a necessidade de copiarmos o êxito alheio, este governo sinaliza a descrença nas capacidades indígenas. Ainda que esta seja a realidade, não fica bem aos eleitos cuspirem no prato que lhes deram a comer.

12.12.06

Eleições que o charme ganha (ou: eu também gostava de ser socialista, mas não consigo)


A Internacional Socialista está tomada por um entusiasmo contagiante, com aquiescência da imprensa que não se cansa de varrer a passadeira vermelha para as causas da auto-proclamada “esquerda moderna”. O motivo é a descoberta de uma candidata que promete uma vitória fácil nas próximas eleições presidenciais francesas – Ségolène Royal. Uma lufada de ar fresco. Uma mãe de família que traz para a política o glamour da beleza discreta. Uma pedrada no charco no cinzentismo machista que tomou as rédeas da política. E outros lugares comuns similares.

Há uma diarreia de crónicas arrebatadas com a viçosa candidata que promete resgatar a França para o feudo do arcaico republicanismo socialista (de onde, dirão os apaniguados, nunca devia ter saído, não fosse o incómodo das eleições e a ignorância do povo). Para começar, uma advertência pessoal: não sendo eleitor em França, é-me indiferente o resultado das eleições. Não há-de ser o candidato vencedor a imprimir o rumo da governação que me afecta. Quando muito, apenas o fará indirectamente, através da influência que exercer na União Europeia. Adiante lá irei.

Sendo-me indiferente a vitória de Ségolène ou do rival da direita (Sarkozy, convenientemente diabolizado pela imprensa, no afã de fazer o caminho para a candidata preferida), debato-me com a altivez incongruente dos socialistas. Eles estão cientes da vitória antecipada, tantos os cânticos de sucesso já entoados na geografia de interesses europeia. Seria sensato esperar pela maçada do sufrágio, onde os eleitores hão-de confirmar (ou não) a onda triunfante que tinge a Europa do cor-de-rosa optimista e muito moderno da Internacional Socialista. A menos que estejam a contar com a colaboração estratégica da comunicação social, instruída para educar o povo no voto certo.

Os sinais do sucesso extemporâneo são deliciosos. Reveladores da fatuidade que aprisiona os socialistas. Muita imagem para pouca substância, de mão dada com uma retórica ultrapassada pelo tempo e pelos acontecimentos. São os novos românticos que erguem as velas da nau justa contra os ventos da globalização, desses ventos que ameaçam vergar o tão amado Estado Social que eles consideram (erradamente) ser sua invenção. Eis o primeiro indicador da vitória antecipada: Ségolène é o mostruário da modernidade impante na política. A anunciada ascensão de uma mulher ao mais alto cargo da república. Vitória para os activistas da igualdade de género (voto cativado, portanto). Ségolène é, não se cansam de nos dizer, uma mulher bela. E a política precisa de beleza, da tranquila beleza feminina.

Frisam o elemento estético, relembrando a fealdade de Margaret Thatcher. Por uma vez, tenho que lhes dar razão. Só ainda não percebi por que arte a estética é garantia de boa governação. Por este andar, modelos e actrizes que passeiam a sua estonteante beleza têm um futuro garantido na política. Acima da média em termos de beleza, basta-lhes uma equipa de competentes assessores que componha a imagem pública e fabrique os discursos. É sucesso na certa. Afinal, os socialistas também contribuem para a minha boa disposição. São uns pândegos.

Porventura seria ajuizado mostrar a candidata socialista antes de o ser, ainda no papel de sombria ministra de qualquer coisa sem importância num dos últimos governos socialistas: ou seja, antes dos liftings e operações plásticas que rejuvenesceram a candidata uns vinte anos. Não é preciso mais nada: o império da estética e os truques para o refrescante embelezamento são o tónico dos socialistas. O embrulho pode ser atraente. Pena que o conteúdo seja apenas uma enorme vacuidade.

Segundo sinal do entusiasmo contagiante: as ideias de Ségolène, uma frescura desarmante. Uma nau que rema contra a maré do conformismo, a nova lutadora contra o desapiedado capital que asfixia os desprotegidos. Dir-se-ia, uma candura que desperta paixões assolapadas nos desalinhados da realidade. Há dias, aqui no Porto, discursou no congresso da Internacional Socialista. Atirou-se ferozmente ao Banco Central Europeu, criticando as sucessivas subidas da taxa de juro. Diagnóstico: um misto de ignorância e de populismo barato.

Ignorância, por passar ao lado das regras do jogo: o Banco Central Europeu limita-se a agir nos termos do mandato confiado pelos políticos que estiveram no poder antes de Ségolène. (A senhora não aprendeu nada com Jospin, um camarada que foi primeiro-ministro, que caiu no mesmo alçapão e saiu de cena antes do tempo). Demagogia, porque é conveniente atacar o Banco Central sabendo que o aumento dos juros é um garrote que asfixia o orçamento das famílias. Que interessa se, no para além do amanhã que se discerne, a subida dos juros for a medida acertada? Os políticos são mestres na arte de governar à bolina, apenas com o amanhã imediato como horizonte.

Frescura, diferença, esperança, rompimento, justiça social – eis algumas das palavras ecoadas como elogio de Ségolène. Só vejo mais do mesmo: antiquado e bafiento socialismo, na sua pior espécie – o socialismo republicano francês. Pela parte que me toca, uma terrível mágoa: muito me esforço, mas não consigo ser socialista. Nem com as artimanhas mil que vão tirando como passes de famoso prestigiador.

11.12.06

Com o far west à porta


Este é um lugar espantoso para se viver. Um microcosmos de revelações bombásticas. Que havia suspeitas de um regime de coronéis ligado ao principal clube de futebol da cidade, com terror espalhado entre aqueles que ousam incomodar as excelências instaladas, não é novidade. O que se soube agora raia os limites do impensável: estes “senhores”, investigados por corrupção e outros desmandos, acharam por bem perseguir e intimidar juízes e investigadores ligados ao processo. Eis o odioso exercício de poder à boa maneira terceiro-mundista, com lacaios do crime pondo as mãos no fogo pelos mandantes. Um caciquismo ímpar.

Não só é um lugar espantoso; é, sobretudo, um lugar perigoso. Os métodos mafiosos estão aí como prova. Este é um sítio onde a dissidência em relação à figura que abençoa os demais pode valer feridas difíceis de sarar, depois de uma tareia que faz lembrar o pior dos jagunços brasileiros. Se ainda houvesse dúvidas acerca da máfia que nos rodeia, as últimas revelações são esclarecedoras. Um sub-mundo com gente da pior ralé, a carne para canhão das encomendas dos mandantes, mastins obedientes que só sabem que devem respeito à patriarcal figura que espalha os seus tentáculos por todo o lado. Não me custa adivinhar o incómodo desta gente porque na “sua” cidade há pessoas que não se revêem nos métodos, na retórica inconsequente, no bairrismo provinciano que soa a falso, apenas um cimento para arregimentar os fiéis que caminham cegos por onde os mandantes ordenam.

Por todo o lado há bolsas que resistem aos princípios vulgares da convivência civilizada. Mas a incivilidade, a brutalidade infamante, os métodos aviltantes chocam mais quando são nossos vizinhos. Porventura haverá exagero quando se associa a palavra “máfia” a esta gente impune. Pode não haver o mesmo registo de violência, nem as mortes sanguinárias. É uma máfia adaptada ao contexto local, com métodos que apenas não chegam tão longe como os que celebrizaram a máfia italiana. Enoja-me saber que posso cruzar com gente desta igualha num café, num autocarro, num cinema. Podem as proclamações de modernidade política ecoar nas bocas dos governantes, que enquanto estas bolsas mafiosas se passearem garbosas dos seus desmandos impunes seremos um Estado de direito diminuído, alijados da modernidade.

Perseguir juízes e investigadores da polícia judiciária com o processo “apito dourado” entre mãos é uma cartada de mestre. Muitos hão-de assim pensar, mais para os lados dos fiéis adeptos da agremiação envolvida. Assim pensam porque conquista terreno a ideia de que todos os meios são legítimos para os fins projectados. Se os privilégios dos mandantes mafiosos são ameaçados por uma investigação policial com a cobertura da magistratura, a lógica dos fins que não olham a meios cauciona o terror sobre quem investiga e interroga os suspeitos. Pode ser que se amedrontem e olhem para o lado, esqueçam os papéis comprometedores numa empoeirada gaveta, que não ouçam as escutas telefónicas tão lapidares. Questionar o império de gente que se achava acima de todas as suspeitas, desta gente que estaria convencida que o longo braço da justiça só tocava os outros, autoriza a intimidação. Eis o estado a que chegámos: polícias e juízes postos na linha pelos meliantes. Um exército privado?

Um ponto de ordem: ficamos surpreendidos com esta intimidação? Esta gente está habituada a manipular quem detém o poder de julgamento, mas no foro desportivo. A intimidação a juízes e investigadores é um passo adiante nos métodos de que se fizeram catedráticos. É, porém, um passo de gigante. Se já havia notícia da cumplicidade entre o futebol e a política, o futebol quis mostrar a sua força ao poder judicial, colocá-lo no sítio: o de estrita obediência à coutada citadina da eminente figura.

De repente, a realidade aclara-se. Esta cidade remete para o ambiente de uma qualquer república das bananas, onde o capo domina tudo, até os sucedâneos de políticos que se limitam a figurar na condição de autores materiais do mandante. Os últimos tempos têm sido de sorte madrasta para a eminente figura. O tapete vai fugindo debaixo dos seus pés. Deixou de contar com a reiterada aquiescência dos socialistas que por aqui governaram tempo a mais. Depois foram denúncias – quem sabe se feitas por alguém que já comeu na sua mão, mas foi esquecido no banquete que distribui o bodo aos pobres – que trouxeram o cenário impensável: o patriarca, com escolta de gente pouco recomendável, a chegar a tribunal para ser constituído arguido.

Lá virão os indefectíveis tentar arranjar pretextos em defesa do cardeal (que não devia ser incomodado pelo poder judicial). Lá virão lembrar que ele já não é arguido em quase nenhum dos processos em que se encontrava indiciado. Mas é aqui que pergunto se as intimidações não terão chegado ao pretendido.

8.12.06

O Porto já tem a sua Lili Caneças



Leitura de casa de banho: publicações de fait divers, muita fotografia e pouco texto. Tanto pode ser a revista da Câmara Municipal do Porto como os boletins publicitários dos hipermercados. Desta vez foi a revista da autarquia. Já tinha reparado, em edições anteriores que não foram direitas para o lixo, que a publicação mistura informação municipal (ou propaganda do edil, conforme a visão) com abundantes páginas coloridas com a extasiante “vida social” da cidade. E foi nestas páginas coloridas que a vista foi agredida por fotografias de uma cara que aparecia constantemente, página sim página sim, qual praga vírica.

Uma pausa para duas palavras de contextualização: quando a revista da Câmara Municipal do Porto passa pelas mãos sou, inadvertidamente, consumidor de imprensa cor-de-rosa. Não exagero se disser que quase metade das páginas põe os munícipes ao corrente dos relevantes aspectos da “vida social” que se passa na cidade. Um banho do resplandecente néon social, para alimentar os sonhos de ascensão social de muitos que se colocam em bicos de pés por uma mísera fotografia que seja na revista mais obscura. Para estes pobres de espírito, será o pináculo de uma vida inteira.

O tal rosto que enxameia sucessivas edições da revista, em páginas repetidas – por vezes aparecendo duas vezes na mesma página! – é de alguém de dá pelo nome de Batata Cerqueira Gomes. A bizarria começa pelo nome. Suspeito que “Batata” seja uma alcunha. Seria educativo elucidar as massas sobre a origem da leguminosa alusão da alcunha. Tarefa para quem escrever a biografia da mediática personagem. O atordoamento começa aqui. Fosse uma anónima criatura, sem os focos da ribalta voltados sobre si, e a leguminosa alcunha levaria o comum dos mortais a um esgar de gozo. Mas a personagem é um ex libris do cortejo de vaidades sociais da cidade, logo “Batata” é “bem” – usando o linguajar a que esta gente está acostumada.

Como estou noutro planeta, desconheço os meandros da emergência social. Nunca tinha ouvido falar em tal pessoa. A ver pela frequência impressionante com que aparece nas páginas da revista da Câmara Municipal do Porto, das três uma: ou é muito amigo de Rui Rio, ou é alguém que deve ter muitos amigos no interessante universo da “vida social” portuense, ou sou eu que vivo deslocado da realidade. Tivesse ainda a revista comigo, iria contar o número de vezes que aquela cara era retratada. De cor, mais de meia dúzia de fotografias. E logo me ocorreu a analogia com o famoso Emplastro, aquele patusco que considera Pinto da Costa como um pai e que se gruda nas costas dos repórteres em directos para os noticiários da televisão, dançando de um lado para o outro para aparecer na imagem. Batata Cerqueira Gomes é o emplastro da revista da Câmara Municipal do Porto.

Um conselho aos aspirantes que anseiam subir na escala da “vida social”: vão às festas mais “in” que o tal Batata marca presença; procurem-no, cirandem a personagem e, quando os fotógrafos aparecerem, deslizem distraidamente para o espaço contíguo. É grande a probabilidade de aparecerem num cantinho da fotografia, para depois mostrarem aos amigos e à família que já são figuras públicas. Se o descaramento vier com a desinibição etílica, tentem fazer-se “amigos” da personagem. Pode ser que vos toque um quinhão do estrelato social, essa coisa tão importante, que preenche a vacuidade mental da turba. Um ícone “social”, à escala regional, deixará a sua marca nos anais da História, com a passadeira estendida pela coorte. Uma espécie de Lili Caneças para consumo regional. Ou apenas a imagem de um provincianismo de braço dado com doses maciças de indigência intelectual. Um vómito.

Já sei o que fazer: quando a revista da Câmara Municipal do Porto chegar a casa, nem sequer lhe dispo o invólucro de plástico. Sem parar nos apeadeiros da vista, destinada a engrossar o sector “papel” do recipiente do lixo reciclável. Ao menos não fico assarapantado com a elevação da “vida social”, nem tomo conhecimento que Batata Cerqueira Gomes embelezou com a sua presença esta, aquela e mais aqueloutra festa.

7.12.06

Nem que cedo seja tarde demais


O relógio avança, impiedoso. Encurta o tempo útil que a vida conhece. Cada segundo que passa, mesmo os muitos segundos que nem sequer se dá conta que foram esvaídos, é matéria inerte emoldurada num retrato dos tempos idos. Apenas nostalgia, naqueles dias em que a revisitação do passado entrega o presente nos braços da letargia. A consciência de que o tempo definha, inexorável.

Ao mesmo tempo, a urgência em chegar mais cedo às rotinas. Uns minutos mais cedo, fosse a poupança de tempo legar um balão de oxigénio que prolonga o tempo útil da existência. E, contudo, a perplexidade vagueia com uma interrogação lancinante: apressar os ritmos será chegar mais cedo também ao destino final, num encadeamento acelerado que traz o desfecho extemporâneo? Os olhos são a imagem da voragem dos sentidos, devoram a informação que plana em cima da cabeça, as artes que se entregam no regaço, as sensações inexprimíveis que os sentimentos nutridos por outros acalentam. Há, na pressa de viver, a urgência em morrer?

Por vezes, a inquietação de sentir que a urgência do modo não é elixir. Os passos apressados, o encurtamento dos minutos, a catadupa de coisas agendadas – tudo arroteia o agreste terreno para depois perceber que muito mais há-de ficar por ver, por fazer, por dizer. Então a angústia nomeia uma larga avenida no labirinto das emoções. Uma confluência de sentimentos ambíguos – doce e amargo, a cor e o negro embaciado que tolda a imagem, tudo o mais no seu profundo contraste. Sucessão de passos acelerados e de quedas em profundos precipícios, tão profundos que o corpo parece planar na imensidão do vazio, sem lugar para a queda amortecer.

Tudo se passa no interior de um pesadelo. Enquanto o corpo se debate na vertiginosa queda, o tempo parece ter parado. Desfilam as imagens nevrálgicas do passado, os momentos que compensa relembrar e aqueles que a memória quer cegar. Toda uma experiência de vida compulsada nos escassos momentos do mergulho no precipício. O corpo nunca chega a estatelar-se. O sonho termina antes, mesmo antes do chão ameaçador se fazer campa voraz.

Ao despertar, o sabor ácido do arrependimento. Do muito que não foi feito e de como o tempo já não regressa para resgatar. Do que ficou imortalizado no lugar das memórias não pode haver lugar ao arrependimento. Mesmo que, num esforço maior, recuse olhar para trás do ombro, destapando os fartos cobertores que sedimentam tempos idos, o desconforto ao saber que os ponteiros do relógio anunciam a contagem decrescente. Em vez da tranquila contagem do tempo, sem pressa para degustar a vida como ela é, a urgência do modo. A pressa de viver com receio que ao chegar ao terminal tanto tenha ficado por conhecer. Lá, onde o tempo se compacta para extrair toda a sumarenta existência, sobra a angústia do que parece cedo traga o entardecer das coisas.

O grande paradoxo. Desorientado na encruzilhada fatal. Ora cedo, ora com a perturbante sensação de que já é tarde, ou que a chegada se fez fora do tempo. Os lamentos são apenas choros inconsequentes pelo tempo que não volta a acontecer. Módicos fragmentos dos episódios esparsos, um atrás de outro ceifando os arbustos desalinhados que estorvam a passagem. No calor tórrido do sol no pino do Verão, faúlhas de incêndios que consomem o arvoredo vomitadas das distantes labaredas, poisando no cabelo, cortando a respiração. E o calor abrasador que destila o suor – o suor de quem vive em correria, querendo chegar cedo aos lugares onde só tarde se arriba.

Esse calor dos sentidos tolda o discernimento. É a febre de viver apressadamente que desfaz a tranquilidade, como navio à deriva levado pelo mar tempestuoso contra as rochas que escondem a praia. Fica a dor do embate nas rochas, o rescaldo da urgência do tempo que esquece que só os ponteiros do relógio ditam a sua marcha, não os simulacros que intuem a aceleração do tempo sem perceber que o pavio assim se encurta. Fica uma intensa dor, como se na boca eclodisse uma pedra incandescente: a urgência de cedo chegar imprime a antecipação do final que se anseia sempre adiado. Cedo, ou a sombra do tardio ocaso.

6.12.06

Uma boa razão para extinguir a tropa: acabavam os golpes de Estado


Um golpe de ingenuidade: pensar que o mundo possa viver sem exércitos. Ocorre-me a utopia a propósito de mais um golpe de Estado. Num país remoto, as ilhas Fiji, um general qualquer acordou mal disposto e reuniu os apaniguados para resolver uma crise política. Pegaram em armas a aprisionaram o primeiro-ministro que tinha sido eleito – algo que, com eles, tropa fandanga, decerto não aconteceu. Sorte a do primeiro-ministro das ilhas Fiji: os golpes de Estado nos países do terceiro mundo frequentemente acabam com cabeças decepadas.

Não é a primeira vez que destilo por aqui a profunda antipatia com a tropa. Já esgrimi argumentos contra os exércitos, que têm as mãos ensanguentadas em guerras incontáveis. Já ironizei com os vetustos militares que, à falta de umas guerras para andarem entretidos a disparar uns tiros e a matar alguns inimigos – coisa de somenos importância, esta de tirar uma vida humana – agora se entretêm a congeminar cenários fantasiosos, simulando exercícios militares carregados de inutilidade. Se estes argumentos não fossem motivações suficientes para banir a tropa do planeta, ontem lembrei-me de mais um ao ver as imagens do golpe de Estado nas ilhas Fiji: sem exércitos, a probabilidade de golpes de Estado seria menor.

(Sei que alguns se agarram ao exemplo caseiro para desmentir a minha profecia catastrófica. A interrogação seria loquaz: teria sido possível enterrar a ditadura sem os militares de Abril? Três observações. Primeira, permitam-me discordar da tese oficial que endeusa os militares de Abril. Permitam-me acreditar que esses militares tinham escassa doutrinação política e que as suas motivações eram do foro corporativo. Que eles não estavam muito incomodados com a ausência de liberdades nem com a opressão da ditadura, até porque a educação castrense convive bem com esses desvios. Segunda observação: as generalizações têm o inconveniente de falharem os episódios que são a excepção à regra. A História conheceu golpes de Estado virtuosos? Com certeza. Mas foram a excepção à regra. Em terceiro lugar, o passado também é pródigo em golpes de Estado que destronaram déspotas sem a participação da tropa, apenas com a mobilização da sociedade civil e da classe política. Alguns exemplos: a queda da ditadura de Franco em Espanha, a derrocada do comunismo na antiga União Soviética, a revolução laranja na Ucrânia.)

Não gosto de militares, da sua rigidez mental, do culto da disciplina férrea, como se as ordens fossem sempre para cumprir por uma massa necessariamente acéfala. A lógica castrense causa-me náuseas. E, repito, os militares têm as mãos manchadas de sangue pelas muitas guerras que fizeram ao longo da História. Podem-me dizer que os países precisam dos exércitos para serem soberanos. Que, sem exércitos, ficariam expostos a invasões de outros países, logo deixando de ser soberanos.

Não sei se os tempos modernos em que vivemos interessam alguma coisa para contrariar o anacronismo em que mergulha quem assim pensa. E também não sei se é racional enterrar rios de dinheiro na defesa, com variações de país para país, destapando outras necessidades mais relevantes para o bem-estar das pessoas. Absurdo é constatar a elevada fatia de recursos que os países subdesenvolvidos dedicam à defesa. Muitas vezes para o engrandecimento nacional, ou para o tiranete se sentir protegido contra as investidas dos opositores. Ironicamente, são essas tropas, que se julgavam fiéis ao poder político, que tiram o tapete e destronam o tiranete ou decidem instalar outro tiranete.

Não gosto de fardamentos. Não me sinto seguro ao saber que a tropa tem nas mãos um arsenal que lhe confere um poder desmesurado, o monopólio da violência. Nem me sossega a labiríntica estrutura mental dos militares: quem pode confiar em pessoas que não hesitam em disparar uma arma que vai matar alguém, detonar um morteiro que leva consigo vários militares que se encontram do outro lado da barricada? Quem pode confiar nestes sanguinários espécimes que não têm qualquer respeito pelo valor da vida humana? Regressando ao tema dos golpes de Estado, quem pode confiar na análise da tropa que quer sair dos espartanos quartéis e meter o dedo na política?

O exercício é especulativo e, bem o sei, muito utópico: interrogar se este não seria um mundo mais seguro se os exércitos nunca tivessem sido inventados. Um mundo sem os fautores das guerras, onde não teríamos que conviver com a incerteza dos maus fígados da tropa que faz levantamentos contra os políticos e, pegando nas armas, sem critério riscam governantes do mapa.

Uma pausa: o pessimismo antropológico não sopra ventos simpáticos para o exercício especulativo. Poderia não haver exércitos, que a estupidez humana se encarregaria de usar as armas em prol da morte e da destruição.

5.12.06

A vida é bela no reino dos polícias da moral e dos bons costumes

Temos dias desinspirados, em que saldamos a jornada dizendo que seria preferível nem ter saído de casa. Quer-me parecer que isto aconteceu a Miguel Sousa Tavares (MST) quando acordou para o dia em que escreveu o artigo publicado no Expresso do passado sábado. Arremete com impetuosidade contra uma campanha publicitária da TV Cabo. Proclama imperativos categóricos que me põem a pensar o que seria de nós caso fôssemos governados por uma cabeça deste calibre.

A descrição do gravíssimo evento é feita em termos desabridos: “Está nas ruas uma campanha publicitária de “outdoors” da TV-Cabo que é uma verdadeira infâmia. (…) Expuseram cartazes onde um filho anunciava ao pai que se tinha ido embora de casa porque ali não havia TV-Cabo: “Tchau, pai, vou bazar. Sem TV-Cabo, que estavas à espera?” (…) É inútil gastar tinta a explicar o que é evidente: que esta campanha (…) ofende os valores mínimos do casamento, da família e da vida em sociedade.

É caso para perguntar se a mensagem publicitária é para ser levada tão a sério. É caso para indagar se os sinais enviados pelos outdoors hipnotizam as massas de modo a fazer com que filhos abandonem os lares paternais porque não há TV Cabo. Ou se são a ignição fatal para divórcios quando o chefe de família resiste estoicamente à instalação do progresso em forma de televisão com profusão de canais à escolha. Porventura só MST – e uns quantos polícias da moral e dos bons costumes – para acreditar que a turba é tão acéfala que se deixa ir no engodo da mensagem publicitária, seja ela inteligente ou apenas um caso de indigência mental.

É caso para ir mais fundo na análise: não contribui a TV Cabo, com a miríade de canais, para a desagregação familiar, quando cada membro da família se encerra diante de uma televisão por excesso de escolha de canais (e não coincidência de gostos)? Se está tão preocupado com o sagrado valor do matrimónio, e zela tão pressuroso pelo cimento familiar que agrega os filhos ao remanso do lar paternal até avançada idade, MST devia ser mais ousado: propor a proibição da TV Cabo. Seria o regresso aos saudosos tempos dos dois canais e da profusa escolha que então tínhamos.

Isto porque MST não tem pudor em exigir intervenções exemplares do Estado para pôr cobro à pouca-vergonha dos exageros publicitários. Não hesita em clamar que “a TV-Cabo deve pagar esta ousadia com uma multa que seja suficientemente grande para a fazer lamentar o quanto ofendeu (…); a agência de publicidade que promove a campanha deveria pagar em euros (…) a sua leviandade ética; e o cérebro que concebeu esta coisa reles e mesquinha deveria ser publicamente exposto e convidado a pedir desculpas públicas, sob pena de ter de mudar de profissão.

Eis-nos perante um adepto da lapidação pública. Que venha uma polícia de costumes a vigiar tudo o que se faz na publicidade, para não ser pisado o limite do eticamente aceitável. Só se lamenta que não haja forma objectiva de determinar o que é eticamente aceitável. A menos que depositemos a tarefa nas mãos de um iluminado que fará nossas as suas convicções, as suas preferências. Há quem goste de apascentar um rebanho ordeiro. E há quem se veja na posição de ovelha amansada, pastoreada por um cérebro iluminado que zela pela moral e bons costumes. A síntese de tudo isto: um lugar muito perigoso para viver.

Uma tempestade num copo de água, assim se resume o episódio. A campanha publicitária da TV Cabo não passa de um exemplo da imaginação posta ao serviço do mau gosto. Até não será difícil discernir traços de indigência mental, consoante as luas estejam orientadas na cabeça de quem se depara com o anúncio. Discordo outra vez das certezas categóricas com que MST nos brinda – a ressoar as sentenças de políticos e sindicalistas, quando colocam na sua boca a opinião dos portugueses, como se falassem em nome de todos os portugueses. Ajuíza a publicidade que temos: “com raras excepções, a concepção das mensagens publicitárias é indigente (…). O efeito habitual produzido nos destinatários é o oposto ao pretendido – a rejeição.” Por assim ser, é que as empresas continuam a gastar rios de dinheiro em publicidade; talvez porque a mensagem publicitária – para o bem ou para o mal – continua a chegar aos destinatários, ou a muitos deles, e a influenciar as suas preferências. Por vezes, o wishful thinking é desmentido pelos factos. Não o reconhecer é cegueira, mais uma vez.

Fazer deste anúncio a tempestade que MST fez é excessivo. Sobrevaloriza a importância de um spot publicitário. Poderei estar ao lado de MST na percepção da menoridade intelectual de largas franjas dos consumidores de publicidade. O que não chega para preconizar o patrulhamento de valores sugerido por MST. Desconfio quando os outros querem julgar aquilo que os anónimos e indiferenciados cidadãos devem comer com os olhos.

4.12.06

Cinco versões alternativas sobre as iluminações de natal


Versão 1: a velhinha inebriada com a quadra pelo sentido familiar que ela contém
A vidinha alegra-se quando as ruas se ornamentam com as iluminações de natal. Toda aquela luz é um mágico raio que penetra nos corações das pessoas. Perdem a maldade dos outros meses do ano. As iluminações de natal perfumam um outro sentido à vida. Já pressinto a magia da quadra, entusiasmada com o ritual que me encerra horas a fio na cozinha na preparação das iguarias que toda a família degusta com prazer. As iluminações são o aviso para todos nos dispormos para o natal em família. Sem elas, as pessoas estariam desprevenidas para o natal. Pelas iluminações, fazemos o estágio que põe o espírito de salmoura para a festa do natal. Fazem a depuração das más influências que nos dominam nos outros meses do ano.

Versão 2: o grunho satânico de uma banda de heavy metal
O natal é uma falácia. Não é o que se conta às criancinhas. É um simulacro. O natal está apoderado pelo demónio, que por estes dias aparece travestido de figura repleta de bonomia. As luzes são um farol do fogo que arde no inferno, desse fogo onde todos os mortais se vão incensar quando disserem adeus à vida. Não há muito a dizer do natal. Uma época para esquecer. As pessoas fazem de conta que são boas. O natal é só uma máscara sazonal que tinge o mundo com uma fuligem sardónica, com as pessoas no papel de actores daquilo que não são. As iluminações de natal são o código da transfiguração. Sem que se perceba que a transfiguração não desprende as pessoas da maldade que actua todos os dias.

Versão 3: a criancinha consumista que espera ansiosamente as prendas junto à árvore de natal
Eu não sei o que é um calendário. Os meus pais dizem que tem doze meses, que há quatro estações, que os dias crescem entre o começo do Inverno e o começo do Verão e minguam ao contrário. Do calendário só conheço dois dias: quando faço anos e o 24 de Dezembro que me traz muitas prendas. Como ando desatento ao calendário, sei que o natal está quase a chegar quando ando pelas ruas e as vejo com iluminações especiais. As lâmpadas em cima das nossas cabeças dizem que estamos quase lá, no natal. Com as lâmpadas escreve-se “feliz natal”, para que todos saibam que chegou o momento de ir às lojas e comprar, comprar muito para dar felicidade às crianças. Eu gosto quando as ruas se enchem da luz do natal. Até deixo de fazer diabruras, não vá o saco de prendas ficar pequenino só para me castigar.

Versão 4: o militante anti-globalização
Toda a gente sabe que as iluminações de natal marcam o conluio entre os comerciantes e os autarcas. Para empurrar para as lojas a manada acéfala e embriagada com o consumismo. As iluminações de natal sinalizam a quadra dominada pelo capitalismo selvagem. Os psicólogos têm a explicação para o fenómeno: quando as pessoas andam pelas ruas debruadas com as iluminações natalícias, querem comprar. E quando vão comprar acabam sempre por comprar muito mais. Os comerciantes e as grandes marcas das pérfidas multinacionais esfregam as mãos de contentamento. É só contabilizar os lucros que os engordam, enquanto as pessoas se entregam nos prazeres materiais e perdem o norte da essência humana. Este é um natal com muita luz, mas uma luz artificial, que vem das lâmpadas que custam dinheiro supérfluo. Um natal que, tal como a luz, é uma coisa artificial. A culpa é do capitalismo. Desapega as pessoas do seu lado humano, fazendo delas autómatos que comprazem os gananciosos capitalistas. Não sei se seria de proibir o natal.

Versão 5: o comerciante
Com o natal ganho num mês mais do que nos outros onze somados. Aquilo que vendo faz a felicidade das pessoas que vivem o natal através da troca de prendas. Quero lá saber que o padre da paróquia apele aos sentimentos cristãos: que façamos do natal uma época de menos entrega aos valores materiais e de mais partilha de sentimentos com os entes queridos, diz ele. Suspeito que é cultor da teologia da libertação que faz furor lá pela América Latina. Não me convence: o negócio fala mais alto. Tenho que ser pragmático. Limito-me a contribuir para que as pessoas vivam o natal como gostam, a trocar muitas prendas. Em tempos li que os psicólogos têm uma teoria para os comportamentos pavlovianos das pessoas. Com iluminações alusivas à quadra, estão mais dispostas a abrir os cordões à bolsa. Por isso é que a nossa associação consegue convencer o presidente da câmara a enterrar rios de dinheiro nas iluminações natalícias. O edil sabe que tem que fazer os habitantes felizes.

1.12.06

“Chavezito” e a proibição do pai natal na Venezuela


Uma vez que acabámos de entrar em Dezembro, mês natalício, vem a propósito contar uma história alusiva da época. Aliás, um episódio que nega a existência da figura tutelar do natal – o pai natal. Aposto que um pouco de esforço mental chega para descobrir que a história só podia ter ocorrido num lugar governado por um ditador que cultiva a tralha ideológica leninista, pois essas personagens não resistem à doce tentação de refazer a História ao sabor das suas conveniências pessoais.

Ora como vão rareando os lugares onde o comunismo ou seus sucedâneos imperam, a tarefa fica facilitada. Mais uma pista: aconteceu na região que nos últimos anos tem resvalado para uma deriva totalitária, com mais e mais países a entregarem o poder nas mãos de aprendizes de ditadores que simpatizam com Marx, Lenine, Estaline e companhia. Essa região é a América Latina, onde o louco Fidel Castro, agora que se apresta a deixar o reino dos vivos, lega um séquito de herdeiros em diversos países: a Venezuela do aprendiz Hugo Chavez, a Bolívia do patético Evo Morales, a Nicarágua do reciclado Daniel Ortega, por último o Equador onde esta semana um tal Rafael Correa venceu as eleições. A proibição do pai natal sucedeu na Venezuela.

Estou à vontade para falar deste assunto. Como será óbvio, não acredito no pai natal. Sou da opinião que as criancinhas devem ser desenganadas da existência da barbuda figura o mais cedo possível. Mas as minhas convicções são um registo individual, que não se impõem ao livre arbítrio das outras pessoas. Se não tenho simpatia pela quadra natalícia, o problema é só meu. Não devo contagiar os outros com um problema que apenas me diz respeito. Hugo Chavez, o protótipo do ditador moderno, actua às avessas. O tiranete decidiu banir a figura do pai natal. Bem ao jeito daqueles impiedosos déspotas que proíbem porque lhes apetece.

Desgraçadas das crianças venezuelanas que esperam um ano inteiro pelo pai natal. Este ano o pai natal está impedido, por decreto presidencial, de entrar no espaço aéreo da Venezuela. A força aérea está de prevenção, não vá uma rena desorientada penetrar nos céus da Venezuela. Os caças terão instruções para abaterem as renas tripuladas por teimosos pais natais. É a declaração de guerra da Venezuela ao pai natal, lá na longínqua Lapónia. Por entre as diatribes do inefável Chavez, a ilusão natalícia das crianças sofre um rude golpe. Chavez não se importa: quando estas crianças chegarem à idade adulta, já não serão eleitores. Daqui a pouco mais de dez anos, Chavez ter-se-á entronizado definitivamente ditador iluminado da Venezuela, de uma vez por todas livre do incómodo das eleições. O tiranete não terá que se confrontar com o ressentimento daqueles que foram, na infância, castradas do pai natal.

Este mundo é um local adorável para viver, porque o absurdo semeado pelas sete partidas do mundo traz até nós a boa disposição. Lamentavelmente, a boa disposição de uns é sinónimo de tristeza de outros, daqueles que se submetem ao despautério de quem os tiraniza. Chavez, se não existisse, tinha que ser inventado. Mas há quem o leve a sério. Quem simpatize com ele, mesmo por estas bandas onde o saudosismo do império vermelho de outrora ainda consome muitas lágrimas enxugadas.

Não bastava o déspota ter banido o pai natal, logo a seguir surgiram uns bonecos que o retratam. Como a figura em si não deve nada à estética, os bonecos são horrendos. Fazem-me lembrar os deploráveis Power Rangers que tornam os petizes criaturas precocemente entregues nos braços na violência. O Chavezito – a figura que aparece na imagem – é o sucedâneo do pai natal impingido às infelizes crianças venezuelanas. A mensagem é nítida: sai de cena o pai natal, entra o grande timoneiro Chavez, em forma de boneco. Para gáudio dos petizes, que devem ser instruídos que o ditador é o fautor do bem e que o pai natal é uma invenção do grotesco capitalismo. Mais vale um Chavezito na mão que muitos pais natais a voar.

Apetece glosar o lema de uma campanha publicitária: “há coisas fantásticas, não há”? Agora me recordo que, há algum tempo, Chavez aparecia numa fotografia acompanhado de Sócrates. É caso para perguntar se não serão as nossas criancinhas as próximas vítimas da súbita obliteração do pai natal…