26.12.06

Um murmúrio natalício


Do silêncio mais alto que invade a noite de consoada, um arrepio. Diria que toda a gente está recolhida nos afagos familiares, rodeada das iguarias da quadra, sentindo o crepitar da lareira e o barulho tão característico do papel de embrulho furiosamente rasgado pelas crianças. Só esporadicamente um carro ou outro, na mesma itinerância entre o local que foi de consoada e o travesseiro que espera a digestão da abastança que desfilou pela mesa.

Algures parado num semáforo, o contraste dos sentidos: uma figura andrajosa erra pelas ruas, cambaleando na companhia da muita bebida que terá tragado. Sozinho, tropeça em si mesmo e nos pensamentos toldados pela embriaguez. Balbucia umas palavras, imperceptíveis. Apoia-se no muro de uma casa, depois de uma curva mais pronunciada do corpo, quase em desequilíbrio. Prossegue o caminho errante, porventura sem saber que aquela noite era a celebração do natal. Acordará na manhã seguinte, estremunhado e com uma terrível dor de cabeça, sem saber que dia anunciava o calendário. Se alguém lhe dissesse, em plena rua, “bom natal”, interrogar-se-ia em que dia estava, o que era o natal, o que significava “bom natal” para alguém como ele, sozinho no mundo.

O semáforo ficou verde e o homem andrajoso perdeu-se no horizonte do retrovisor. Retive a sua imagem: as roupas velhas e sujas, um sapato sem cordões, a barba mal amanhada. Entregue ao frio da noite, cambaleando sem destino pelas ruas desertas. Que percurso teria sido calcorreado por aquele homem até se ter cruzado no meu caminho, na véspera de natal que findava com as pessoas que, mais adiante, se dirigiam para a missa do galo, rompendo a nudez das ruas com o aproximar da meia-noite. Mistérios insondáveis na felicidade a que cada um se entrega. O desamor da vida persegue outros, desencontrados com as pétalas perfumadas que trazem o singelo odor da harmonia, do carinho, o bem maior de se saber pessoa querida para outros e sentir a confortável sensação de nutrir tais sentimentos por alguém. A contingência da solidão é o divórcio com estas tão simples, mas ao mesmo tempo incomensuráveis, condições. No errante descaminho daquele homem perdido, a insignificância do natal.

Regresso a mim. Que seja covardia, ou este desejo de me desligar dos males alheios, como se as dores de consciência fossem apenas a ausência da felicidade própria. Desligado por instantes do meu mundo, pela imagem perturbante do homem desafiando a solidão do frio das ruas, ou os breves minutos para perceber que sou incapaz de resolver males alheios. Por mais duras que sejam estas palavras, há algo de profiláctico nos exemplos de sofrimento com que deparamos: os ventos do derrotismo empurrados para outros quadrantes, ao tomar consciência da demissão da felicidade com que fomos abençoados quando a autofagia de nós mesmos grita bem alto, quando nem percebemos todas as graças que vieram repousar à nossa porta.

Este é o natal que interessa celebrar. Arranjar tempo para dar valor ao que somos, a tudo o que foi sendo laboriosamente construído. Os dramáticos exemplos à nossa volta, mais perto do que imaginamos, mostram os privilégios que temos entre os dedos. Ainda que seja grande a tentação para os desvalorizar, ou não fôssemos atraídos pela deriva de ambicionar o que não temos, na eterna insatisfação que se apodera.

O vermelho no semáforo foi providencial. Um choque térmico para despertar da letargia que episodicamente vinga. Alguém dirá que a indulgência veio com o mal alheio. Que será indigno resgatar os privilégios da felicidade através da oposição com a desdita de um homem que passeava a solidão em véspera de natal. Não quero ser vampiro da desgraça alheia. Nem o meu bem-estar exigiu sacrifícios ao homem bêbedo que cambaleava rua fora. Inquietante imagem, decerto, mas estranhamente balsâmica: acontece, por vezes, quando tropeçamos no mal alheio para discernir a vida principesca com que fomos agraciados. Naquele momento, senti um doce murmúrio do natal estritamente pessoal. A entrega às nuvens sombrias que teimam em vogar sobre a minha cabeça não passa de uma ilusão, um espartilho que o cansaço do bem-estar vem impor. Sem que faça sentido.

O natal é também isto: a sagração do que somos, da ternura que recebemos e da que temos a mercê de dar, o dom supremo de não viver mergulhado numa asfixiante solidão.

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