6.12.06

Uma boa razão para extinguir a tropa: acabavam os golpes de Estado


Um golpe de ingenuidade: pensar que o mundo possa viver sem exércitos. Ocorre-me a utopia a propósito de mais um golpe de Estado. Num país remoto, as ilhas Fiji, um general qualquer acordou mal disposto e reuniu os apaniguados para resolver uma crise política. Pegaram em armas a aprisionaram o primeiro-ministro que tinha sido eleito – algo que, com eles, tropa fandanga, decerto não aconteceu. Sorte a do primeiro-ministro das ilhas Fiji: os golpes de Estado nos países do terceiro mundo frequentemente acabam com cabeças decepadas.

Não é a primeira vez que destilo por aqui a profunda antipatia com a tropa. Já esgrimi argumentos contra os exércitos, que têm as mãos ensanguentadas em guerras incontáveis. Já ironizei com os vetustos militares que, à falta de umas guerras para andarem entretidos a disparar uns tiros e a matar alguns inimigos – coisa de somenos importância, esta de tirar uma vida humana – agora se entretêm a congeminar cenários fantasiosos, simulando exercícios militares carregados de inutilidade. Se estes argumentos não fossem motivações suficientes para banir a tropa do planeta, ontem lembrei-me de mais um ao ver as imagens do golpe de Estado nas ilhas Fiji: sem exércitos, a probabilidade de golpes de Estado seria menor.

(Sei que alguns se agarram ao exemplo caseiro para desmentir a minha profecia catastrófica. A interrogação seria loquaz: teria sido possível enterrar a ditadura sem os militares de Abril? Três observações. Primeira, permitam-me discordar da tese oficial que endeusa os militares de Abril. Permitam-me acreditar que esses militares tinham escassa doutrinação política e que as suas motivações eram do foro corporativo. Que eles não estavam muito incomodados com a ausência de liberdades nem com a opressão da ditadura, até porque a educação castrense convive bem com esses desvios. Segunda observação: as generalizações têm o inconveniente de falharem os episódios que são a excepção à regra. A História conheceu golpes de Estado virtuosos? Com certeza. Mas foram a excepção à regra. Em terceiro lugar, o passado também é pródigo em golpes de Estado que destronaram déspotas sem a participação da tropa, apenas com a mobilização da sociedade civil e da classe política. Alguns exemplos: a queda da ditadura de Franco em Espanha, a derrocada do comunismo na antiga União Soviética, a revolução laranja na Ucrânia.)

Não gosto de militares, da sua rigidez mental, do culto da disciplina férrea, como se as ordens fossem sempre para cumprir por uma massa necessariamente acéfala. A lógica castrense causa-me náuseas. E, repito, os militares têm as mãos manchadas de sangue pelas muitas guerras que fizeram ao longo da História. Podem-me dizer que os países precisam dos exércitos para serem soberanos. Que, sem exércitos, ficariam expostos a invasões de outros países, logo deixando de ser soberanos.

Não sei se os tempos modernos em que vivemos interessam alguma coisa para contrariar o anacronismo em que mergulha quem assim pensa. E também não sei se é racional enterrar rios de dinheiro na defesa, com variações de país para país, destapando outras necessidades mais relevantes para o bem-estar das pessoas. Absurdo é constatar a elevada fatia de recursos que os países subdesenvolvidos dedicam à defesa. Muitas vezes para o engrandecimento nacional, ou para o tiranete se sentir protegido contra as investidas dos opositores. Ironicamente, são essas tropas, que se julgavam fiéis ao poder político, que tiram o tapete e destronam o tiranete ou decidem instalar outro tiranete.

Não gosto de fardamentos. Não me sinto seguro ao saber que a tropa tem nas mãos um arsenal que lhe confere um poder desmesurado, o monopólio da violência. Nem me sossega a labiríntica estrutura mental dos militares: quem pode confiar em pessoas que não hesitam em disparar uma arma que vai matar alguém, detonar um morteiro que leva consigo vários militares que se encontram do outro lado da barricada? Quem pode confiar nestes sanguinários espécimes que não têm qualquer respeito pelo valor da vida humana? Regressando ao tema dos golpes de Estado, quem pode confiar na análise da tropa que quer sair dos espartanos quartéis e meter o dedo na política?

O exercício é especulativo e, bem o sei, muito utópico: interrogar se este não seria um mundo mais seguro se os exércitos nunca tivessem sido inventados. Um mundo sem os fautores das guerras, onde não teríamos que conviver com a incerteza dos maus fígados da tropa que faz levantamentos contra os políticos e, pegando nas armas, sem critério riscam governantes do mapa.

Uma pausa: o pessimismo antropológico não sopra ventos simpáticos para o exercício especulativo. Poderia não haver exércitos, que a estupidez humana se encarregaria de usar as armas em prol da morte e da destruição.

2 comentários:

Anónimo disse...

A falta que a tropa fez ao autor...
Militarão

Rui Miguel Ribeiro disse...

Ah, meu caro! Cá vem o "desmancha-prazeres belicoso" acordar-te do teu devaneio! Só faltou o poster com a criança a colocar um cravo vermelho no cano da espingarda automática! :-)
Não vou entrar na velha questão da soberania e da razão de existir das forças armadas. Venho só lembrar-te que existe, em muitos países do mundo, uma coisa chamada subordinação do poder militar ao poder político e que a maioria dos grandes conflitos da era contemporânea foram desencadeados pelos dirigentes políticos e não pelas chefias militares.
Quanto aos golpes de estado, são hoje raros e muitos mais parecem saídos de uma opereta (o que não quer dizer que os aprove, como é óbvio).