28.4.06

Bolonhesa, ou sarrabulho?

O ensino universitário vai passar por uma revolução profunda com o processo de Bolonha. Trata-se de um novo sistema de ensino, novas metodologias que vão exigir novos hábitos a quem ensina e a quem estuda. Apregoa-se que Bolonha significa a emancipação intelectual do estudante. Aos professores competirá ensinar a pensar, ensinar a investigar, dar autonomia aos alunos para trabalharem dentro das linhas definidas para cada disciplina, com as ferramentas indicadas por quem ensina.

O processo de Bolonha causa-me algumas perplexidades. Primeira perplexidade: na mudança de hábitos de estudantes e professores. Da parte que me toca, estou certo que a adaptação ao novo modelo não será problemática. Já ensaiei as características do modelo com grupos que estudantes estrangeiros. Receio que a adaptação seja mais custosa para os estudantes. A experiência com os alunos estrangeiros foi proveitosa. Nos países de origem, estão acostumados a hábitos de trabalho que os portugueses não têm. Temo que, para estes, os tempos que se avizinham sejam de dolorosa adaptação aos ventos da mudança soprados desde Bolonha. E se vingar a tradicional falta de perseverança doméstica, que haja desistências pelo caminho a engrossar os indicadores de insucesso académico.

Porventura o futuro não será assim tão sombrio. Talvez o principal desafio que se antecipa para quem ensina seja educar os alunos para os novos hábitos de trabalho, convencê-los da bondade do sistema, mentalizá-los que Bolonha foi concebido para fazer deles pessoas bem preparadas para as exigências do competitivo mundo profissional. Fará sentido passar a mensagem de que o ensino universitário é uma nova etapa na aprendizagem. Que a transição do ensino secundário para o ensino universitário é uma ruptura de hábitos e de aplicação mental. Uma universidade formatada de acordo com Bolonha será um lugar de emancipação intelectual que exige mais responsabilidade dos alunos. Só com responsabilidade pessoal poderão encontrar a destreza intelectual que é a matéria-prima de eleição com o processo de Bolonha.

A principal perplexidade não é esta, contudo. Mais incerto é o resultado que Bolonha vai provocar no pós-universidade, na colocação no mercado de trabalho. Uma das principais inovações do processo é a transformação das licenciaturas de quatro e cinco anos em mestrados com a duração de 3+2 ou 4+1 (licenciatura mais mestrado). Um aluno que nunca reprove, que não se tenha equivocado nas opções ao longo do percurso escolar, poderá ter um mestrado na mão com vinte e três anos. Se as coisas continuarem a correr bem, dois anos mais tarde pode estar doutorado. Com vinte cinco ou vinte e seis anos de idade, uma fornada de jovens doutorados que aparecem no mercado de trabalho à procura da sua primeira ocupação (presumindo que não se dedicam à investigação universitária).

Este fenómeno terá um lado positivo: será bom para os pedagogos e os políticos puxarem lustro ao brio nacional (e ao ego pessoal), em sucessivos auto-elogios que enfatizam o sucesso do sistema de ensino. Mas terá também um lado negativo, que seja uma mera ilusão estatística. Faz-me lembrar as queixas dos burocratas nacionais que lidam mais de perto com a distribuição dos dinheiros da União Europeia. Antes do alargamento aos países do leste e do mediterrâneo, concorríamos com a Grécia e com a Espanha pela maior fatia do bolo. Com a entrada dos dez novos Estados membros, o nível médio de riqueza da União diminuiu. Portugal aproximou-se dessa média, sem se ter verificado um súbito aumento do bem-estar. Apenas se deu o milagre dos números: com a entrada de países mais pobres que nós, a ilusão estatística de estarmos mais próximos da média.

Lembro este fenómeno para tecer um paralelo com a fornada de recém-formados pelo modelo bolonhês. Para vaidade dos políticos que lidam com o assunto, os indicadores de excelência académica vão aumentar. Resta saber se o mercado de trabalho está em condições de absorver toda esta gente, se pode oferecer condições compatíveis com a formação especializada que adquiriram. Mais importante ainda, se o mercado pode dar uma resposta que satisfaça as expectativas que foram sendo sedimentadas por tantas pessoas que têm um mestrado na mão.

Preocupa-me que em poucos anos passemos do oito para o oitenta. Ontem li no Diário de Notícias que 72% da população nacional tem apenas o ensino primário. Escassez de habilitações faz um povo iletrado e nutre a escassa competitividade. Daqui a uma década as estatísticas serão mais risonhas; mas não encontraremos pessoas com excesso de habilitações, desenquadradas do mercado de trabalho? Interrogo-me se a resposta não será Bolonha, antes algo de parecido com o reprovado CPE francês.

Esta incógnita traz-me à recordação uma história contada há mais de dez anos por um professor em Coimbra. Contava que no Brasil há muitos taxistas que são licenciados em direito. Para o professor, isso não era um sintoma de doença. Era sinal de dinamismo social, do sucesso do sistema de ensino, de uma sociedade que dava sinais de elevados parâmetros de formação. Fez-se silêncio. No grupo restrito (eram aulas que mais se assemelhavam a um brainstorming entre o professor e meia dúzia de alunos), alguém perguntou ao professor se ele teria a mesma opinião caso fosse um dos licenciados em direito sentado atrás do volante de um táxi. O professor não soube dar resposta.

27.4.06

Vai longe, a discriminação positiva …



No Rio de Janeiro, há carruagens do metro e dos comboios reservadas a senhoras, para se livrarem do assédio sexual de garanhões enfastiados com o calor dos trópicos. Sinal de um tempo estranho, este em que vivemos. Quando aprendemos que a separação de sexos nas escolas é reprovável, os ventos da modernidade podem representar um regresso ao passado (ainda que os cultores desta modernidade não se apercebam do retrocesso).

Compreende-se que senhoras apoquentadas com as investidas de assanhados machos tenham protestado. A notícia não trouxe mais detalhes. Por exemplo, se houve violações enquanto as carruagens iam embaladas no seu caminho. O simples assédio verbal é suficiente para as senhoras terem feito sentir a sua incomodidade. Ninguém gostará de ser assediada por quem sobe dos tamancos e supõe transformar ausência de atributos num exemplar que rivaliza com D. Juan. Apesar da falta de detalhes, não é difícil adivinhar que esta medida terá sido tomada depois de reiteradas aproximações com a intenção de açambarcar as visadas para algo mais que uma inocente conversa.

É a solução que está errada. Em vez de patrulhar as carruagens para dissuadir o pretenso “efeito Axe” dos assediadores profissionais, as autoridades atalharam caminho para a solução radical. Doravante, as senhoras que não quiserem sentir o bafo de garanhão com hormonas alteradas refugiam-se em carruagens onde só elas têm lugar. É garantida a ausência de assédio sexual. A homenzarrada, confinada às restantes carruagens. As viagens de metro e de comboio vão passar a ser um enfado para encartados gatunos de paixões assolapadas.

A decisão terá agradado às lésbicas. Carruagens onde o sexo masculino não põe o pé em ramo verde, onde nem sequer a sua presença é permitida, são o retrato do paraíso terreno. Falta saber se as visadas pelo assédio de barbudos e mal cheirosos homens, uma vez transviadas para as carruagens cor-de-rosa, vão sentir conforto quando discernirem olhares nada cândidos das amazonas em plena caçada. Como desconheço os meandros da política brasileira, não sei se a decisão partiu do município, das autoridades estaduais ou do governo de Lula. Nem tão pouco sei se é homem ou mulher o(a) responsável pela decisão tomada. Deito-me a adivinhar que é mulher. Feminista dos sete costados e, admito, lésbica. Só assim consigo perceber que a solução tenha o travo da radicalidade e o viés da opção sexual.

A defesa exacerbada dos direitos das mulheres está em moda. Com redobrada intensidade, procura-se forjar a igualdade dos sexos. O caminho fica aplanado para a discriminação positiva: se elas foram vítimas de tratamentos desiguais que privilegiaram o sexo masculino, é chegado o momento de inverter o rumo da história. Os erros do passado são corrigidos através da discriminação positiva. Que, contudo, não deixa de ser uma discriminação, com a aleivosia que qualquer discriminação carrega.

A insólita medida do Rio de Janeiro leva aos píncaros a dedicada moda da discriminação positiva em favor do sexo feminino. Sem se dar conta do grotesco: recuar na história, quando as meninas e os meninos não se misturavam na escola, senhoras e senhores ficavam em alas diferentes da igreja, as senhoras não podiam frequentar locais com conotação masculina e vice-versa. Há progressos que, desmontados, são involuções. É a cegueira que ofusca o discernimento. De tanto quererem remar para a frente, as feministas descompassadas perdem o norte, já não sabem onde é a proa e onde está a ré. Quando dão conta, estão atrás da casa da partida.

No meio do afã feminista, o contraste da mensagem publicitária. Repetidas vezes, teima em instrumentalizar a mulher, que não se liberta do rótulo de objecto. O exemplo da deliciosa menina da ultra-leve bilha de gás da Galp é a imagem mais recente. Das feministas excitadas, apenas o silêncio. Nem uma denúncia da mulher objecto presente na campanha de publicidade. Elas não protestam contra o efeito da campanha – esfomeados machos que espumam de apetite, imaginando a menina a transportar a bilha de gás até a sua casa (e o melhor é a descrição ficar por aqui). Em vez disso, as embaixadoras da discriminação positiva refastelam-se no sofá e partilham o mesmo imaginário com a excitada homenzarrada que lambe os beiços quando a escultural funcionária da Galp (haverá?) passa no ecrã. Só assim consigo perceber a relapsa omissão das comissões feministas.

26.4.06

Também não trazia cravo à lapela. Serei um ominoso “fascista”?




Traje especial para ocasiões solenes – ensinam-nos na meninice. Excelsa fatiota para dias de festança rija. Acompanhando o ritual, sinais que demarcam festividades espalhadas pelo calendário. Para as esquerdas, sempre bem pensantes, o cravo à lapela é um must de cada vez que se soleniza o 25 de Abril. E lá os vemos, uns por convicção, outros por colagem oportunista. Os primeiros, ainda convencidos que são a caução do genuíno 25 de Abril (comunistas e abencerragens). Os segundos (socialistas) percebem que ser de esquerda está na moda, percebem que o sinal identitário do 25 de Abril é o cravo e embarcam no folclore que dá rios de dinheiro às floristas.

Pela primeira vez, um presidente da república que não chegou a Belém vindo de um apeadeiro da tradicional esquerda. Especulava-se: irá o algarvio professor de finanças romper com a tradição dos antecessores? Nunca se lhe vira cravo à lapela, o que logo o conota com essa coisa nefanda, a direita. Havia uma certeza: qualquer que fosse a decisão de sua excelência, teríamos ruptura com o passado. Envergando o cravo, rompia com os hábitos da “família política” onde fez tirocínio; acaso aparecesse sem o apêndice floral ao lado da gravata, rompia com o hábito a que os anteriores presidentes nos habituaram.

Cavaco não contribuiu para a lucrativa actividade das floristas. Para desconforto da esquerda que penhorou, como exclusivo seu, as comemorações da revolução de Abril. Mesmo que essas esquerdas não tenham percebido (ou não tenha sido conveniente perceber) que o discurso do senhor presidente ressoou a Sampaio (sem o sampaiês). Um discurso que qualquer esquerdista moderado não teria pejo em aplaudir de pé. Acaso ainda tivesse dúvidas no momento da votação, desfazia-as ontem, ao escutar as palavras de Cavaco. Certifiquei-me que não poderia votar numa pessoa de esquerda.

Incomoda-me o unanimismo forçado que voa desde certos quadrantes. Convencionou-se que só de cravo à lapela é que se presta homenagem à revolução de Abril. Os dissidentes do apêndice floral são apontados a dedo, subtilmente denunciados como saudosistas do passado que cessou em 25 de Abril de 1974. É curioso que sejam as mesmas pessoas que zombam do acidental Bush Jr., os mesmos que denunciaram o simplismo da dicotomia pregada após os ataques do 11 de Setembro. Na ocasião, Bush Jr. sentenciou: “quem não está connosco (no combate ao terrorismo) está contra nós”. As vozes que se ergueram contra o simplismo de Bush Jr. tinham razão. Só se lamenta que escorreguem na casca da banana da incoerência e tenham o mesmo raciocínio a propósito do 25 de Abril. É lapidar a imagem que passam: quem trouxer cravos à lapela homenageia a revolução (dita dos cravos); quem o não fizer é um saudosista do “fascismo”. Parece que não há meio-termo.

E ele existe. Há quem seja cultor da liberdade (a liberty, na tradição liberal que distingue liberty de freedom) e não se reveja no artificialismo serôdio do símbolo do cravo. Como há quem se recuse a dar para o peditório de folclóricas manifestações – como a “obrigação” de mostrar um farfalhudo e garrido cravo pregado à lapela. É sintomática a reacção de desaprovação das esquerdas mais radicais, quando olham de soslaio para os que não envergam cravo. Sintomática do seu entendimento de liberdade, revelado na falta de tolerância em relação aos que dissidem da folclórica manifestação.

A simbologia do cravo vem acompanhada de outros comportamentos forçados, uma espécie de código de conduta para o bien faire dos sucessivos 25 de Abril. O que seria de alguém que propusesse o fim das bafientas comemorações da revolução? Teria às costas o pesado fardo fascizante, quando muito não se livrava da acusação de branqueamento do passado que merece enaltecimento, de passar uma esponja pela memória que cimenta a identidade colectiva, da desvalorização de uma revolução que marcou o reencontro com a liberdade. O sentir pessoal: é repetitivo assistir, nem que seja por breves minutos – os da distracção do olhar que escorrega para a televisão –, ao ritual de sempre: discursos solenes, a louvação da liberdade em termos tais que até parece que o fantasma do “fascismo” está ali à esquina, as patéticas caminhadas pela Avenida da Liberdade entoando os pregões da ordem, palavras poluídas vindas de quem não sabe praticar a liberdade.

Tenho para mim que elogiar a liberdade restituída pelo 25 de Abril, a cada 25 de Abril que passa, é um exercício de vacuidade. Chega o dia e o sentir colectivo é relembrado nas homenagens que devemos prestar aos arquitectos da revolução. Depois andamos trezentos e sessenta e quatro dias a atropelar – dia sim, dia não – a liberdade dos outros. O 25 de Abril de todos os anos parece uma catarse colectiva, uma expiação das escorregadelas para a intolerância nos outros trezentos e sessenta e quatro dias.

25.4.06

O pecado mora ao lado – o novo casino de Lisboa



Admirado ficaria se a inauguração do casino de Lisboa não tivesse levantado um coro de protestos. Têm origem nos quadrantes do costume: sectores que tanto gritam pela liberdade, tanto lutaram por derrotar a ditadura, e que, no entanto, se esquecem de praticar a tolerância em relação a ideias e formas de vida diferentes das que defendem; também de outros sectores, mais dados aos esoterismos, partiram críticas enfurecidas porque um casino é o zénite da alienação da pessoa.

O jogo não me diz nada (para além dos quatro euros semanais que gasto no totoloto, na vã esperança do enriquecimento fácil…). Entrei um punhado de vezes em casinos, sempre no bingo. Uma vez acompanhei um amigo que quis torrar “uns tostões” nas slot machines. Em meia hora torrou bem mais que uns tostões. Percebi que as slot machines são devoradoras de moedas. E observei o comportamento viciante de alguns jogadores, olhos esbugalhados na máquina, como se mais nada existisse para além dele, jogador compulsivo, e a máquina que ia devorando as moedas.

São conhecidas as histórias de fortunas desbaratadas no vício do jogo. E histórias, mais dramáticas, de pessoas sem fortuna que perdem os poucos haveres numa mesa de jogo. Um vício, como qualquer outro. O que me parece lamentável é o desfile dos penhores da consciência colectiva. Denunciam o jogo, porque é um alçapão para incautos que entram cegados pelo néon da fortuna e saem acabrunhados ao cabo de mais uma noite de insucesso, de fortuna adiada – sempre adiada. Os novos sacerdotes da moralidade colectiva esquecem-se do aspecto mais importante: do livre arbítrio que cada pessoa dispõe. Enquanto os viciados no jogo não virem um tribunal declarar a sua inabilitação por prodigalidade, quem pode julgar os comportamentos alheios?

Os detractores de casinos alistados no folclore esotérico são curiosos fenómenos de um lirismo saloio, uma fauna que vive no mundo errado, encerrados no espartilho de um mundo imaginário que só existe dentro das suas cabeças. Há dias, uma opinadora do Primeiro de Janeiro fazia escorrer tinta sobre a pecaminosa frequência de casinos. Uma nova espécie de metafísica dos costumes, que passa ao lado de cânones religiosos, mas que não hesita em apontar o caminho certo para a redenção humana. Os casinos alienam a pessoa. Exaurem a espiritualidade dos Homens. São mais um tributo ao desvario da materialização da espécie. Nos casinos, os Homens entregam-se aos valores materiais, na despersonalização dos seres imputada aos demoníacos casinos.

Podemos opinar livremente. Podemos não gostar de certa actividade. Eu não acho piada ao curling, desporto de Inverno com direito a entrada nos jogos olímpicos, onde os praticantes esfregam furiosamente um disco que desliza numa pista de gelo. Ou posso achar a astrologia um embuste. Procuro respeitar os que se excitam com o curling e os que norteiam a sua vida em função dos sinais enviados pelos astros. Não admito a extinção do curling ou que os astrólogos devam ser perseguidos até à extinção. Ao ler os manifestos exacerbados dos esotéricos adversários do casino de Lisboa, fico com a impressão que não desdenhariam a hipótese (acaso o poder lhes caísse nas mãos) de encerrar esse e todos os demais casinos.

Em nome da suposta moralidade que querem impor, sacerdotes impregnados da pureza ideológica e cultores de esoterismos avulsos não percebem que invadem a esfera individual. Qual é a superioridade (moral, intelectual?) para criticarem quem se encosta com assiduidade nas cadeiras dos casinos? Acaso sabem que o dinheiro torrado apenas pertence a quem o gasta? Com certeza que os sacerdotes da nova moralidade não aceitariam intrusões, viessem de onde viessem, discutindo a forma como eles gastam os seus rendimentos. Eles, todavia, afadigam-se em denunciar as pecaminosas maneiras de gastar dinheiro: no jogo, no tabaco, na prostituição, em automóveis de ostentação, em jóias de vaidade, em bilhetes para jogos de futebol, etc.

E dou comigo a pensar: terá sido para isto que se fez o 25 de Abril, uma revolução de liberdade? Sinto que é uma liberdade condicionada, uma liberdade que tem que passar o crivo dos sacerdotes da moralidade correcta. Ora, isto é tudo menos liberdade. Nunca imaginei que pudesse estar de acordo com Vasco Lourenço: a liberdade prometida pela revolução de Abril ainda está por cumprir. Não basta a mirífica liberdade de escolher quem governa. Esse é só um exercício sazonal de liberdade.

24.4.06

Videogames da violência

Há uma cena do último filme de Spike Lee (“Infiltrado”) que me captou a atenção. Uma cena secundária no contexto do enredo, mas que retrata o apetite de certos cineastas para enfatizarem mensagens politicamente correctas através do cinema.

Quatro bandidos assaltam um banco e fazem cinquenta reféns. As primeiras impressões do cabecilha do bando são as de uma personagem violenta, gélida, insensível, até desumana. A certa altura, o assaltante aproxima-se da única criança refém – um rapaz negro, aparentando dez anos. O rapaz está entretido com a sua Playstation portátil. O bandido passa-lhe para as mãos uma fatia de pizza e recebe, em troca, a Playstation. Ele continua o jogo que a criança interrompeu para saciar a fome. Pergunta-lhe o objectivo do jogo. O rapaz responde-lhe: “é uma luta dentre gangs de rua, e quanto mais pessoas matares mais pontos recolhes”.

Enquanto o diálogo decorre, passam imagens do videogame. O bandido joga na posição de bandido que sitia um polícia e dispara a matar. A perícia não foi total: o polícia jazia ferido, encostado à parede, escorrendo sangue do ombro. Havia que dar o golpe de misericórdia, retratado com a violência que alguns filmes do género cultivam de forma subliminar. O golpe fatal desfigura o polícia. É aqui que o realizador aproveita para passar a primeira imagem humana e sensível do cabecilha do grupo. Com a suavidade de um pedagogo, devolve a Playstation ao rapaz e anuncia que vai ter uma conversa séria com o pai, sitiado noutra sala. O bandido tinha ficado impressionado com a violência gratuita do videogame. Achava-a nefasta para o desenvolvimento da criança. E, apesar de estar no lugar de um inumano assaltante que prolongava o terror mental dos reféns, ainda havia espaço na sua consciência para ficar perplexo com o videogame.

Não me é difícil concordar com a mensagem veiculada pelo filme. A profusão de violência gratuita em jogos para crianças e adolescentes é assustadora. Mas não se pode acusar a indústria de jogos para computador e consolas como a exclusiva culpada da deriva de violência. Os desenhos animados que preenchem o imaginário das crianças são um repositório de lutas e armas e sangue e morte. É a natureza humana que faz da espécie canibal de si mesma: adultos mestres na violência sem sentido, que as crianças, na fase da aprendizagem que vem com o crescimento, começam a interiorizar. Banaliza-se a violência e, pior que tudo, banaliza-se a morte. A banalização da morte tem o seu expoente máximo nos jogos de consolas e computadores: o herói que manipulamos através das teclas da consola tem sempre várias vidas. Como se fosse verdade que os gatos têm sete vidas, também nestes jogos as vidas são recicláveis.

O que me inquieta são os mecanismos de formação da personalidade e as imagens inculcadas pelas crianças agarradas a consolas com estes jogos que são uma orgia de violência. Até que ponto se apercebem do valor da vida – da própria vida e, mais importante ainda, da vida dos que os rodeiam? Até que ponto o cérebro gravita em função de imagens de violência, como se apenas a violência fosse o imaginário destas crianças? Elas crescem. Passam a compreender os fenómenos numa dimensão que perde a fantasia dos jogos, ganhando as cores da realidade. O que me deixa inquieto é a impressão que as personalidades ficam moldadas nas horas a fio gastas à frente das consolas, a matar os vilões (ou os polícias, em versões modernas em que os polícias são os alvos a abater), a morrer mas logo de seguida a recuperar uma das vidas creditada pelos pontos já arrecadados.

Só não concordo que o assunto seja mais um pretexto para o exercício da moralidade colectiva em toda a sua pujança. Posso não gostar do tipo de jogos que cultiva a violência fácil. Mas não posso embarcar na missão colectiva que denuncia esses jogos, num lobbying que pressiona a retirada das estantes nas lojas da especialidade. Cabe aos pais o discernimento para exercerem a censura necessária. Para vedarem (ou não) o acesso destes videogames às consolas dos seus filhos. Porque, uma vez mais, a educação dos filhos é mister dos pais, não do país.

21.4.06

A recriação da ciência

Conheço uma personagem que defende em voz alta que, nas universidades, o talento é mais importante que a competência. É o mote para explorar o abastardamento da ciência que o presente conhece. A democratização do conhecimento exportou-se para a universidade. Tudo e mais alguma coisa é elevado ao altar do conhecimento científico, com a passadeira estendida para cursos, licenciaturas, mestrados, até doutoramentos. A relação causal é cristalina: porque a competência foi ultrapassada pelo “talento”, verifica-se a enxurrada de “novas ciências” com acolhimento nas universidades.

Vou começar pela tontice do “talento”. Ponto de partida: nada contra os talentos. Podem-se exprimir de mil e uma formas. Nas artes, são a pedra de toque. No meio universitário, a sobrevalorização dos talentos e o amesquinhamento das competências cheira-me a elogio da preguiça, ao triunfo dos que não conseguiram singrar no reino das “competências tradicionais”. Estes “artistas” ambicionaram vegetar numa universidade. Tanto porfiaram que conseguiram vencer: barrado o caminho numa área do saber – por engarrafamento de massa cinzenta –, foram fautores de uma recriação da ciência, para que os seus “talentos” (dir-se-ia, com indulgência, “competências alternativas”) fossem acolhidos na casa universitária.

Quando qualquer saber, qualquer conhecimento comezinho, invade a universidade e conquista o rótulo de ciência, rendo-me às evidências: o talento derrotou a competência. Quando a astrologia merece honrarias de conferências universitárias, ou a contabilidade ascende ao patamar de mestrado, ou esoterismos vários têm lugar reservado nas universidades, fico inquieto. E atónito, com a profusão de pós-graduações inventivas que se multiplicam nas universidades. O diagnóstico é lapidar: o talento venceu, a ciência foi recriada, diria, reinventada. Este termo é o que descreve melhor o destempero. É a invenção da ciência, como se bastasse a vontade de meia dúzia de crânios tresmalhados das áreas tradicionais para fazer nascer uma nova ciência. A ciência inventada, no que de menos agradável encerra a palavra “invenção”.

Qualquer dia, doutoramentos sobre a vida sexual dos sapos, sobre os hábitos alimentares dos zulus da Suazilândia, sobre o misticismo do fado de taberna, sobre a arte de exterminar pulgas em animais domésticos, quem sabe, sobre a arte maior das tunas. Alguns dirão que é sintoma de intensidade intelectual, um fervilhante clima universitário. Dirão que a multiplicação de novos saberes, elevados à condição de ciência, é prova da democratização da ciência. Deixará de estar hermeticamente fechada num armário bafiento, presa às regras manipuladas por um escol de iluminados que se fechou numa torre de Babel, impenetrável. Que a ciência se libertará desses espartilhos e ficará acessível a todos, alunos e docentes.

O argumento da democratização da ciência não me convence. Cai na armadilha de confundir conhecimento com ciência, quando nem sempre os dois coincidem. Ou será que os conhecimentos de futebol de Gabriel Alves, embrulhados num discurso com cambiantes intelectualóides, farão dele um catedrático de qualquer coisa? Por este andar, um dia destes existirá em catedrático dentro de cada mortal. Não estou convencido que seja coisa boa. Já não se falará de democratização da ciência, apenas de abastardamento da ciência.

Que fique claro que não sou o velho do Restelo que defende a peito o conservadorismo dos saberes universitários. Apenas me custa que do oito passemos ao oitenta – eu diria ao oitocentos, para tornar o retrato mais fidedigno. Temo que a universidade deixe de ser um lugar de excelência e venha a ser invadido por charlatães que se convencem – e convencem uma audiência que vai engrossando – que são especialistas num conhecimento que transformam em ciência. Também aqui se coloca o problema do ovo e da galinha: ou saber quando deve, e porquê, um conhecimento entrar nos alvores da ciência. Em retrospectiva, a economia só muito tarde se emancipou como ciência e domínio universitário.

Perturba-me verificar que esoterismos, astrologias e outras coisas ditirâmbicas começam a penetrar nas universidades. Não posso fechar a porta à possibilidade da sua vulgarização daqui a umas décadas. Então, adivinho (e especulo), a universidade terá deixado de ser o que tanto ambicionou. A excelência, apenas uma ténue luz no fim do túnel que encerra o tempo passado.

20.4.06

A caminho da ditadura ambientalista


Um dirigente de uma qualquer associação de defesa do ambiente acusou Durão Barroso de hipocrisia por se fazer transportar num automóvel que ultrapassa, a dobrar, a emissão de gases permitida. A alface de serviço terá alguma razão: as normas de emissão de gases poluentes foram aprovadas pela Comissão Europeia, a instituição presidida por José Barroso. Fica-lhe mal a gula automobilística. Aplicando um velho adágio nacional, “em casa de ferreiro, espeto de pau”.

A meio caminho entre a oportunidade da denúncia do dirigente alforreca e os sinais enviados por essa mensagem, está a doentia preservação do meio ambiente, mais uma vereda para a imposição de comportamentos. Para liquidar aos poucos a liberdade individual de que vamos abdicando em nome dos dogmas politicamente correctos. Mas quem pode negar razão às acusações do brócolo dirigente, se José Manuel Barroso não dá o exemplo que dele se esperava, como presidente da instituição responsável pelo activismo ambientalista da União Europeia?

Mais importante que a oportunidade da denúncia, é entender o oportunismo da queixa. O dirigente espinafre olhou para o presidente da Comissão, alvo fácil por culpa própria, mas esqueceu-se de apontar o dedo a todos aqueles que cometem o “pecado” de comprar bólides que são sorvedouros de combustível. O dirigente curgete podia denunciar o antigo presidente do Sporting, Dias da Cunha, por guiar ora um Porsche, ora um Subaru Impreza WRX, veículos que consomem mais combustível que o carrão de serviço de José Barroso (um Audi A8, se não me engano). Felizmente, Dias da Cunha deixou de ser presidente do Sporting. Perdeu a visibilidade mediática que fazia dele um alvo de eleição dos ambientalistas, sempre prontos a apontar o dedo a quem passa das marcas nos desmandos ecológicos (ou isso, ou uma solidariedade esverdeada entre o clube que veste de verde e os dirigentes que defendem o verde ambiente…).

A solução é fácil, e encheria de contentamento os apaniguados do ambientalismo: proibir a venda de automóveis que consumam acima de x litros aos 100 quilómetros. Só teriam que derrubar o poderoso lobby das empresas do sector, tarefa menor perante a onda imparável de verde ambientalismo que vem cobrindo o mundo. E porque não levar ao limite a solução? Proibia-se a produção de automóveis novos, esperando que os que circulam fossem sendo abatidos à medida que atingissem o limiar da vida útil. A prazo, o nirvana ambientalista: estradas desertas, diminuição da emissão de gases poluentes para a atmosfera, até consequências colaterais tão agradáveis como a extinção da sinistralidade rodoviária. Um mundo perfeito. Até porque os Estados Unidos já não teriam que arcar com o incómodo das intervenções militares no exterior com mil e um pretextos a encobrirem os interesses do petróleo.

É intrigante como os grelos dirigentes acusam alguém de hipocrisia ambiental e não olham para o próprio umbigo. Protestam contra fulano e sicrano por conduzirem automóveis que são esponjas de gasolina. Lamenta-se que deixem passar em branco as empresas de transportes que usam camiões que gastam cinquenta litros de gasóleo por cada cem quilómetros andados. (E o gasóleo é mais negativo, do ponto de vista de emissões de gases poluentes, que a gasolina.)

Acho que percebi a conexão. Há-de se descobrir que os vegetais dirigentes da causa ambientalista são mercenários encapotados ao serviço do execrável capitalismo. Inevitavelmente, será um excitado seguidor do Prof. Boaventura, votante assíduo do Bloco de Esquerda e agitador da militância anti-globalização, que irá descobrir a pólvora. A bombástica revelação há-de desnudar a realidade: os marcianos dirigentes estão ao serviço do capitalismo, porque só esbracejam contra a arraia-miúda (os condutores de Porsches e afins) quando o crime ambiental é cometido pelas empresas que transportam as mercadorias que disseminam o maldito capitalismo. Contra estes camiões TIR que gastam cinquenta litros aos cem, só um silêncio comprometedor, uma cumplicidade que fala bem alto. Vendilhões do capital, dependentes de vícios pequeno-burgueses, é o que são os esverdeados guardiães do ambiente para consumo doméstico!

Um exercício hipotético: gostava que a intimidade dos arautos do ambientalismo fosse invadida. Para perceber se todos andam de transportes colectivos (e, de preferência, evitando autocarros poluentes); se todos fazem a separação do lixo (nem que para isso tenham que gastar imensa água lavando os plásticos sujos antes de os depositarem no receptáculo correspondente); se aqueles que se deixam invadir pelo comodismo do automóvel, andam em pequenos utilitários com baixo consumo de gasolina; ou até se engrossaram a moda dos automóveis híbridos, que conjugam um motor eléctrico com um motor a combustão, num contributo para um ambiente mais saudável. E gostava, depois, de fazer o balanço dos hábitos dos militantes do ambientalismo. Apostando que, como em tantas coisas na vida, falaria mais alto a divisa “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

19.4.06

A saga de ser deputado

Vai grande o rebuliço com a falta de quórum na Assembleia da República, quando mais de metade dos parlamentares decidiram antecipar o fim-de-semana alargado pascal. Há por aí muitas virgens ofendidas na censura dos deputados faltosos, sobretudo daqueles que se deram ao luxo de entrar no hemiciclo, assinar o livro de ponto e alar para paragens mais agradáveis. Francamente, não vejo onde esteja a surpresa. Haveria pasmo, outrossim, acaso no deve e haver se registasse um reduzido abstencionismo laboral entre a classe dos deputados.

Ser deputado é tarefa ingrata. Os olhos estão todos deitados sobre as eminências pardas. Qualquer passo em falso e têm a comunicação social à perna, uma comunicação social sedenta de escândalos que vendem papel. Quando o sangue é derramado por deputados, tanto melhor. Porque o exemplo deve vir de cima, aos deputados é exigido recato, decoro, competência, labor, uma entrega que personifique bitola acima da média. E ainda que dois terços dos deputados sejam anónimas figuras – porque os holofotes mediáticos apenas repousam em meia dúzia, os artistas da companhia – é frequente sabermos que fulano ou sicrana ocupam um lugar no parlamento quando se destacam pelas piores razões.

Dizer que as funções parlamentares perderam importância – aqui como em todos os lugares que se dizem democracias parlamentares – é lugar comum já estudado. Cada vez mais os parlamentos ocupam um lugar simbólico. Se legislam, na maior parte das vezes limitam-se a plebiscitar iniciativas legislativas entregues pelo governo. Nos casos em que existe maioria de um partido no parlamento, este serve de correia de transmissão do governo. Os deputados têm consciência que não passam de verbos de encher. Se algum deles aprendeu a importância do parlamento nos clássicos manuais, depressa se desengana. A teoria está divorciada da realidade.

A sinecura dá-lhes mordomias que o desempenho não justifica. Há quem defenda que os titulares de cargos públicos com tanta solenidade deviam receber remunerações bem mais elevadas. Seria a forma de atrair os melhores ao exercício de funções públicas, o truque para melhorar a performance dos eleitos. Ao mesmo tempo, a passadeira para a mediocridade ser vassourada do parlamento.

Não duvido da bondade da ideia, mas tenho reservas quanto à sua eficácia. O problema não é de quem acampou no parlamento, sem se perceber os critérios que franqueiam as portas a medíocres personagens escolhidas pelo método esconso da constituição das listas partidárias. O problema está na desvalorização do parlamento, cá como lá fora. Está documentado: as decisões com implicações no bem-estar das pessoas passam ao lado dos governos, mesmo dos países poderosos. São os mercados, a globalização vituperada por tantos, que determinam a marcha da carruagem. Se nem os governos, sozinhos, conseguem influenciar essa marcha, que dizer dos parlamentos, actores pequeninos neste cenário?

Pelo caminho, continuamos a perder tempo com as diatribes dos deputados. Podem-me dizer: eles são bem pagos, muito acima do salário médio, pagos com os impostos que todos somos obrigados a entregar nos braços do Estado. E que será indigno de um representante de um órgão de soberania receber o pecúlio do seu salário quando produz pouco e falta amiúde. Compreendo a indignação pela discriminação positiva que favorece os deputados. O comum dos mortais não se pode dar ao luxo de faltar tanto ao trabalho, arriscando a receber um salário amputado no final do mês. (Descontemos os funcionários públicos, com mil e um expedientes para faltar hoje e amanhã sem que o salário seja beliscado.) Honestamente, não acho que sejam tão fortes as razões para a indignação: se são peças decorativas, se é de escassa importância a função, tanto me dá que tenham elevada ou reduzida assiduidade. A solução é óbvia: em vez de lhes aumentar o salário, o contrário.

Tarefa ingrata, a de ser deputado. Alvos de todas as atenções, sem espaço para a mínima escorregadela; algumas benesses levadas no vento (já nem podem viajar em classe executiva nos aviões…); e, adivinho, a suprema frustração de se sentiram peças decorativas, apanhados no meio de jogos florais da pequena política partidária, apanhados na revoada da globalização que diminui o seu protagonismo. Não seria sinecura para mim.

18.4.06

Páscoa e crucificações

Para um ateu, a páscoa é destituída de significado. Em rigor, não vem desprovida de significado: há a componente material, as prendas aos afilhados que tiveram a desdita de escolher como padrinho alguém que anda tresmalhado dos caminhos de deus. Vou ao baú das recordações e vasculho nos cantos mais escondidos, tentando encontrar restos de memórias pascais. Tirando o paganismo materialista da páscoa, ainda menos lembranças que o natal. Só o almoço em família, os ovos de páscoa, as amêndoas, o cortejo pascal que descobri aos vinte e três anos numa estrada perto da Póvoa de Varzim.

Consigo encontrar uma memória que se repete todos os anos no volátil calendário pascal. As crucificações que retratam a via-sacra que Cristo terá percorrido até morrer, pregado de mãos e pés numa tábua tosca. Crentes com fé exacerbada e aguçado espírito de sacrifício prometem a si mesmos que passam pela mesma mortificação de Cristo. Revisitam a historiografia oficial do cristianismo, numa procissão que é um acto compungido para eles, pregados a uma cruz, vendo como o sangue escorre das mãos e dos pés atados por pregos às tábuas da cruz.

A modernidade civilizacional do ocidente temperou os excessos da fé. Desde que recordo de ver imagens de crucificações vivas, tenho a ideia que elas ocorrem em lugares longínquos, algures nas Filipinas onde a devoção religiosa atinge um fervor inusitado. Não será pela Europa, onde o cristianismo fermentou com fulgor, que se assiste às pungentes manifestações de pessoas que se deixam pregar a uma cruz, como se fossem as encarnações vivas de um Cristo que terá morrido há mais de dois mil anos. É algures num lugar escondido na geografia, onde os paladinos da civilização avançada (a nossa, supostamente) diriam, sem hesitar, que isso acontece porque se trata de um lugar atrasado no ranking das civilizações.

Pouco me interessa saber quem possui a civilização mais avançada. Ou discutir a sociologia do fenómeno, tentando perceber a aversão dos fiéis ocidentais à crucificação. Folheio a memória: as dolorosas crucificações como a imagem mais viva que retenho da quadra pascal. Pela impressão que as imagens me causam. Sabendo que há sempre pessoas dispostas ao sacrifício de verem mãos e pés cravados numa cruz de madeira. E impressiona-me ver as caras daqueles nativos quando se entregam ao ritual sacrificial. A tranquilidade que esconde a dor terrível que devem sentir quando os pregos penetram na carne das mãos e dos pés, quando o sangue se começa a escapar, espalhando um rasto perseguido pelos devotos que seguem na procissão.

Para um ateu, esta exibição de fé é grotesca. Uma mortificação estúpida, quantas vezes no cumprimento de promessas pessoais que pagam dádivas que, acreditam, têm o selo divino. Uma ordenada manifestação de fé colectiva, no ardor dos devotos que partilham a dor com aquele que se entrega ao sacrifício da cruz. Para um ateu, nada disto fará sentido, por entre a descrença na história do cristianismo e a fé ausente. Mas um ateu só cumpre a sua exigência de tolerância se respeitar as exibições de fé dos outros. Sejam as crucificações que enchem a carne de chagas dolorosas, as peregrinações a Meca, ou as cabeçadas no muro das lamentações.

Um ateu olha com admiração para todas estas manifestações de fé. Sem que isso seja uma contradição com a irradiação ateia. Apenas uma salutar inveja de quem consegue ter fé num deus, acreditar nos dogmas de uma religião, ter a certeza que a morte franqueia uma nova forma de vida, desmaterializada. O ateu é aquele que não consegue forjar uma crença, permanecendo fiel a si mesmo, na teimosia de uma honestidade angustiante. E se um ateu olha com admiração para as manifestações de fé alheias, não pode haver quem veja nisso a auto-negação do ateísmo. Apenas que a fé, qualquer fé, passou ao lado do ateu.

Para ele, seria fácil adjectivar as fervorosas exibições de fé em todos os credos. Como seria cómodo apontar o dedo e denunciar a estupidez humana de quem se entrega ao ritual da crucificação. Seria, ao mesmo tempo, a forma mais estéril de ajuizar comportamentos que lhe são exteriores. Sem os dons da adivinhação dos pensamentos alheios, estaria a cair no alçapão da incoerência. A esgravatar bem fundo a tumba da intolerância. Em vez disso, olha com assombro para o sacrifício a que se entregam os devotos pregados na cruz. Sabendo que ele seria incapaz de passar por tamanha provação. Até porque os desafios da sua não fé lhe facilitam a tarefa.

17.4.06

Os coitadinhos

Não são os mendigos que erram pelas ruas, com o estômago vazio e a vida desapiedada de horizontes. Nem os incautos do desamor, de encontro marcado com a solidão. Não são as atormentadas vidas mergulhadas em asfixiantes dilemas da existência. Ou pessoas causticadas pelo sacrifício, de que as rugas profundas e um olhar tristonho e perdido no horizonte são o espelho vivo. Ou, se calhar, todos são a imagem da auto-comiseração.

Há quem goste de o fazer: papel de vítima, aproveitando a mais pequena oportunidade para decretar tempestade em copo de água. Dão valor a pequenos percalços, pequenos nadas que num ápice se transformam num drama que cativa a atenção alheia. À espera da primeira oportunidade para serem os alvos da piedade alheia. Sentem-se bem no papel, ao saberem que os outros, por momentos apaziguados com a sua atormentada existência, dedicam uns instantes a mostrar comiseração. Há quem goste de se saber coitado na maneira de ver dos outros que o rodeiam.

As vítimas de ocasião tranquilizam-se quando percebem que a tormenta destruiu o seu bem-estar. Haverá o preço a pagar pelos danos, o tempo que medeia até o bem-estar se recompor. Até lá, os afagos de comiseração moralizam. É uma espécie de solidariedade negativa – ainda que sejamos educados para a solidariedade sem adjectivação. O mal não está em exercer piedade. Está no embuste que convoca o exercício dessa piedade. Como numa lógica de roda dentada, todos andamos de braço dado no miserabilismo que em momentos nos toca. Agora uns, as vítimas na calha para a choradeira das carpideiras de serviço, sabendo que algures no tempo futuro quem carpe as mágoas de hoje será investido no papel de vítima. Somos reciprocamente solidários com a adversidade alheia, um investimento no amanhã em que a adversidade há-de bater à nossa porta. Num gigantesco movimento, uma mão asfixiante que nos empurra – fautores da piedade mais os seus alvos – para uma deprimida e descolorida existência.

Há dias contaram-me um episódio, durante um velório, que se passou com o familiar do falecido. Bem cedo pela manhã, quando chegou ao local do velório, só lá estava um desconhecido. Ao ver o familiar do morto aproximar-se, o desconhecido desfez-se em condolências e votos de coragem. Quis ser o ombro amigo de alguém que jamais tinha visto: “agora há que ir em frente. Coragem! É a vida”. E sumiu-se com uma lágrima não disfarçada ao canto do olho. Sem perceber que a última frase continha em si a negação daquele momento. Velava-se um morto, como concluir o voto de coragem com o despropositado “é a vida”? Não é a vida, era o sinal da morte que ali se curava. O profissional dos velórios entretanto sumiu sem mais dar sinal, esperando que o dia seguinte, os dias seguintes, trouxessem mais cadáveres entregues ao caixão no ritual da derradeira homenagem.

O clamor pela compaixão alheia é a imagem do amor-próprio ausente. Houve quem dissesse que preferia ser odiado a saber que os outros tinham pena de si. Haverá nesta afirmação um excesso de orgulho estéril. Descontando essa exuberância de sentimentos, há algo de verdadeiro no predicamento. Mesmo quando a desgraça bateu à porta do homenageado pela piedade colectiva, muito mais quando damos de caras com os profissionais da lamentação, que aproveitam a onda sedativa de indulgência para tapar as fraquezas com a peneira da piedade alheia.

Ainda compreendo o clamor pela comiseração quando a dor atinge profundamente alguém, por perda de um ente querido ou por desdita maior que traga essa pessoa condoída. Já acho deplorável que muita gente queira um afago piedoso quando as desgraças são sobrevalorizadas. Apenas mais uma manifestação da falta de auto-estima, o prémio à mediocridade distribuído por quem choraminga pelos cantos sem se esforçar por mudar o rumo de vida.

Falta-me perceber se a tendência para sermos coitadinhos faz parte da essência humana ou é idiossincrasia de um povo. Quando me recordo das velhinhas que trazem luto até ao fim dos seus dias porque perderam o marido há largos anos, quando penso na dor lancinante e duradoura que um luto provoca, na antítese da frieza com que os povos mais a norte lidam com a partida de um ente querido, desconfio que se trata de idiossincrasia. A entrega sombria à morte, ou a negação da vida sempre curta chorada sem fim no fado da nossa existência.

14.4.06

Bodo pascal 2006: Internet em excesso é pecado

A hierarquia eclesiástica tinha que se fazer notar em época tão importante para os crentes. Tinha que enviar uma mensagem para fidelizar os devotos. Aproveitando o evento pascal, quando as ovelhas do rebanho estão mais sensíveis aos chamamentos da igreja, do Vaticano veio a prédica para formatar o pensamento dos fiéis: Internet é pecado. Regresso à notícia. Verifico que o título é uma simplificação da mensagem de um cardeal norte-americano. O que o cura quis dizer é que tempo a mais na Internet (como à frente da televisão) é pecado.

Primeiro, a retórica do pecado. Diria, a opressão da igreja em todo o seu esplendor. Uma igreja que manieta a consciência de temerosos crentes. Uma fé pelo medo. A finalidade última – a ascensão ao reino celestial – pode estar comprometida. No momento da contabilidade final, quando no passivo forem pesados os pecados e no activo contados os actos enaltecidos por anjos e santos, a condenação à via-sacra do inferno se a remissão dos pecados não tiver a condescendência do julgador final. Os crentes, saciados de vida e ansiando pela outra dimensão, vão vivendo agrilhoados à vida temerária, com o cutelo do pecado sempre a pesar sobre as suas cabeças. A vida, no catolicismo, é uma persistente camisa-de-forças que tolhe a liberdade pessoal.

Em segundo lugar, os sacerdotes – desde padres a cardeais no alto da hierarquia – semeiam uma cultura de dependência pessoal. Arvoram-se na consciência que os mortais não têm. São uma espécie de semáforo que se acende, no vermelho, quando os limites do admissível são transgredidos. Ajuízam os outros, mas eles são imunes ao julgamento alheio. Dirão, quantas vezes, que são julgados pela entidade divina que representam na terra. Permanecem num estatuto de levitação sobre os que estão fora do sacerdócio. Como se os anos de seminário lhes trouxessem a aura que não está acessível aos demais.

Terceira observação: quando é que um católico interioriza que ultrapassou o limiar do admissível em termos de consumo de Internet? Os cultores da teologia dirão que o pecado é uma medida que respeita a cada pessoa. Que cada mortal tem a liberdade para passar a linha do permitido. Lá está, do permitido por uma ordem que invade a consciência, que impõe comportamentos (a quem presta tributo à religião). Para os católicos que levam a religião a sério, as sanções para pecados irremissíveis são piores que pesadas sanções dos tribunais dos homens.

Volto às interrogações: a partir de que fasquia temporal entra o tempo gasto na Internet na dimensão pecaminosa? Dez minutos, meia hora, uma hora? E toda a informação consultada na Internet tem o mesmo peso quando é chegado o momento de fazer as contas do pecado? Quando alguém consulta coisas fúteis na Internet, pode encontrar medida de compensação dedicando algum tempo a informação religiosa, que passa uma esponja pelas heréticas tarefas?

A igreja católica persiste na teimosia de moldar comportamentos. Não se pode arrogar à condição de igreja da liberdade, pelos espartilhos que impõe aos fiéis. A hierarquia eclesiástica tem sempre uma palavra a dizer quando estão em causa comportamentos que mexem com a consciência individual. Ainda não compreendeu que se trata da consciência de cada indivíduo. Por mais que queira fazer da multidão de crentes um rebanho indiferenciado, fala mais alto o jugo da individualidade que impede a padronização de atitudes. É uma igreja que teima em afirmar um clima de subtil terror mental: o respeito pelos dogmas, ou o pecado irremissível barrando as portas do céu prometido.

Contaram-me que numa freguesia (ou devo dizer paróquia?) de Ponte de Lima, onde as tradições pascais estão profundamente enraizadas, o padre avisou que a visita de páscoa aos lares dos paroquianos será paga a peso de ouro: um dia de trabalho a cada família visitada. Exorbitante é o dízimo! O padre sabe que as pessoas, umbilicalmente ligadas à tradição, não se importam de pagar astronómica quantia. É pegar ou largar. Em meios pequenos, sabe-se logo quem abriu as portas de casa ao cortejo pascal e não respeitou o dízimo. É meio caminho andado para o dedo apontado pelos vizinhos, na denúncia certeira do padre da aldeia. Se forem visitadas algumas centenas de famílias, é grande o pecúlio do padre em dia de páscoa.

O episódio desmente o que a igreja insiste em veicular: que ela é a igreja dos pobres. Pelo contrário, a igreja ainda não entrou no tempo do socialismo. Devia ter aprendido que a modernidade é tirar aos ricos para dar aos pobres. Afinal os curas ainda não perceberam que Cristo foi o primeiro marxista. Se o padre daquela freguesia de Ponte de Lima cobra um dia de salário a todas as famílias, está a pedir um sacrifício relativamente maior aos menos endinheirados, para quem um dia de salário custa mais a ganhar do que aos mais afortunados.

A páscoa tem um preço exorbitante. E viola a Constituição da República Portuguesa.

13.4.06

Os (não) limites da imaginação humana


A imagem de ovelhas vestidas com uma capa azul faz lembrar as madames que encasacam os cãezinhos quando os passeiam, rua fora, no agreste frio invernal. Ou os cavalos de puro-sangue treinados para triunfar provas de hipismo. Também os equídeos têm direito a fatiota aprumada. Insólito é pensar num rebanho de ovelhas que carrega roupagem vistosa. As ovelhas não estão no mesmo patamar de garbo dos puddles e caniches das dondocas, ou dos cavalos que merecem tratos de polé de entusiastas do hipismo.

Na Holanda, país da mudança, o estatuto das ovelhas está a mudar. Começam a rivalizar com canídeos e equídeos de costas quentes pela fatiota trajada. Não que as ovelhas tenham ascendido na escala social, ao lugar de animais de companhia (privilégio dos cães). Nem foi descoberto desporto onde as ovelhas são protagonistas (como acontece com cavalos pagos a preço de ouro). Os ovinos passaram a merecer resguardo por imperativos da publicidade.

Na notícia do Público que funcionava como legenda desta fotografia estava a informação de que também as vacas começam a merecer a preferência dos publicitários. Quem circular numa estrada holandesa não se admire se der de caras com ovelhas ou vacas trajando fatiotas com dísticos alusivos a uma empresa que aceitou embarcar na inovativa forma de publicitar. Os condutores podem ser apanhados de surpresa, podem mesmo esfregar os olhos pensando que estão entorpecidos, que entraram no período das miragens. É mesmo verdade: as ovelhas e as vacas holandesas servem de veículos publicitários enquanto ruminam a erva mordiscada nos verdes pastos dos Países Baixos.

Já estou a adivinhar os arautos do anti-capitalismo, braço dado com os defensores dos direitos dos animais, no uníssono vitupério da imaginativa publicidade. Dirão que hoje tudo vale para levar os consumidores no engodo. Acusarão as agências de publicidade de serem os insidiosos agentes de uma globalização que se apodera de nós, por todos os poros. Hão-de denunciar a manobra, vendo nela o expoente da alienação em que os consumidores são venenosamente convidados a embarcar quando se deixam seduzir pelas mensagens publicitárias.

Os amigos dos animais hão-de estar na linha da frente dos protestos. Reclamando contra o grotesco da publicidade adejando animais no remanso dos pastos. Dirão, é uma manobra que humilha os animais. Que já bastava a bestialidade humana, que alimenta a esperança de vida das reses, não imaginando elas que num funesto dia hão-de ser sacrificadas no matadouro para mais tarde os despojos dos seus cadáveres serem servidos em opíparas refeições. Não bastava a desdita que se abateu sobre estas espécies, agora são obrigadas a levar uma vida patética, ostentando o vestuário ridículo, cores berrantes, para captar a atenção de potenciais destinatários dos produtos publicitados. As reses no extremo da coisificação.

Quem assim lavrar protestos é alma emparedada na sua pequenez. Alma que desvia o olhar de um dos atributos mais nobres da espécie humana: a imaginação. Foi a imaginação fértil que gerou artistas nas mais variadas artes. A publicidade, sem curar de rivalizar com as sete artes, é um domínio de eleição para o exercício da imaginação humana. Onde ela tem importante tirocínio. E como evoluímos em razão directa da prodigalidade da imaginação, é só aplausos que se soltam quando exemplos como este são trazidos ao conhecimento.

Aniquilar a imaginação é embrutecer a humanidade. Condená-la a uma vegetativa forma de vida. A modalidade hodierna de obscurantismo. Onde, decerto, afocinham com prazer os paladinos da alter-globalização e coisas quejandas. E se até os árbitros de futebol já funcionam como veículos de publicidade (os equipamentos perderam a monocromia e ganharam a vivacidade colorida dos dísticos de empresas pregados nas camisolas negras), porque estranhar as vestes publicitárias que escondem a nudez de ovinos e bovinos? Acaso uma ovelha é menos que um árbitro?

Já era conhecimento adquirido: bovinos e árbitros de futebol estavam no mesmo patamar, a julgar pelos impropérios pouco simpáticos para as progenitoras dos árbitros de futebol (avacalhadas na sua existência) e para os próprios árbitros, quando os adeptos denunciam a condição de maridos traídos pelas legítimas caras metade. Se árbitros e bovinos estão irmanados como veículos de publicidade, seria discriminatório negar a condição aos ovinos. Por cá, nas zonas montanhosas da Serra da Estrela e de Trás-os-Montes, germina um movimento de protesto entre os caprinos: não querem ficar à margem desta moda.

12.4.06

De repente, acordei marxista?


Não, não foi mais uma crónica de J. C. Espada que me transformou num marxista. Nem sequer as patetices de um Berlusconi blasé cheio de incontinência verbal. Ou as beatices de João César das Neves. Ou as manhas da direita trauliteira, saudosa dos tempos do salazarismo, daquela direita que convive mal com um regime multipartidário. Ou ainda deploráveis declarações de um ignaro patrão da indústria nacional, daqueles que ao abrir a boca me fazem perceber porque existem sindicatos. Nem sequer despertei de um sono tranquilo sabendo-me, subitamente, um marxista dos sete costados (nesse caso estaria a despertar de um sono para mergulhar num pesadelo).

Já não é a primeira vez que me provocam, sugerindo que utilizo uma retórica própria do marxismo. Em tempos uma colega advertiu-me: “Paulo, olhe que “mais-valia” é um termo típico da linguagem marxista”. Fiquei atónito. Sem saber, estava a empregar palavras que fazem parte do catálogo marxista. Para quem se situa nos antípodas do marxismo, era sintoma preocupante. Inscrevi o esclarecimento na agenda mental onde arrumamos as tarefas para o futuro. Queria-me informar se “mais-valia” é um legado do marxismo. Outras tarefas tiveram prioridade. Aquela ficou esquecida na poeira do tempo. Nunca tirei a limpo se andava, sem saber, a falar o idioma do marxismo. Ou se era apenas uma provocação de alguém que sabia a minha exuberância na antítese do marxismo.

Há dias, novo episódio. Numa troca de e-mails com outra colega – também ela ciente que, para mim, Marx está na prateleira das personalidades dispensáveis. Pedia-me para dar opinião sobre um certo assunto (sem relação com a história das ideias políticas). Respondi com a opinião do momento. Como ela rematava o e-mail pedindo “diga o que achar melhor! E não faça ao contrário só porque percebeu o que eu acho melhor”, retorqui, num esboço falhado de ironia, “esta é mesmo a minha opinião, que até coincide com a sua (nada mau, para quem tem um aguçado espírito de contradição...)”. Na volta do correio, fui confrontando com o seguinte: “e quem tinha “espírito de contradição” não era o Marx? Depois conversaremos para acertar estratégias; ou fazer a síntese, para manter a toada marxista...Boa noite”.

Fui-me deitar com os fantasmas. Não fosse o sono o sagrado altar do descanso e andaria embrulhado nos lençóis, imerso numa terrível insónia, tentando perceber a contradição interna em que estava agrilhoado. Percebi que não havia motivos de preocupação. Não era um marxista retardado. Ou um marxista sem o saber. Tudo não passava de um chiste provocatório, de pessoas que sabem a urticária que Marx e seus apóstolos me causam.

Mesmo assim quis apaziguar a consciência. Não fossem todos estes anos de azia anti-marxista um equívoco. Não fosse ter acordado para o mundo disposto a vê-lo de outro ângulo, um ângulo diametralmente oposto àquele que por tanto tempo habitei. Fiquei inquieto. Teria feito uma travessia no deserto, convencido de certas ideias – as ideias que fui cultivando, com as inspirações de certas leituras e o afastamento de ideias veiculadas noutras leituras – para acordar para uma forma diferente de ver o mundo? Seria uma viragem de cento e oitenta graus, de que há exemplo em personalidades afamadas como Durão Barroso, Pacheco Pereira, o director do Público, José Manuel Fernandes, J. C. Espada ou, num percurso oposto, Freitas do Amaral?

Desenganei-me, sem precisar de consultar a bola de cristal. Acredito nas minhas colegas, quando advertem que certos termos me fizeram resvalar para a retórica marxista. Não é o hábito que faz o monge, nestas coisas das ideias políticas. Elas terão lido Marx. Eu conheço Marx por portas travessas – que não me dei ao trabalho de ler “O Capital”. O que aconteceria se todos fôssemos levados a pesar, ao milímetro, as palavras que usamos?

Continuo, teimoso, a discordar de Marx. Louvo a sua existência como teorizador. Não dou para o peditório que o quer elevar ao Olimpo das personalidades que enriqueceram o património da humanidade. Com a chancela da sua inspiração intelectual foram cometidas muitas atrocidades. Marx tem o seu lugar no meu imaginário: é o ponto cardeal que me indica o caminho a não percorrer.

11.4.06

A pesporrência dos burocratas iluminados: a caminho do manual escolar único?

Ontem tinha findado o primeiro acto desta tragicomédia, a governação a que temos direito. Hoje a peça continua. Desce o pano, começa o segundo acto. Mais bazófia de mentes superiormente iluminadas, que nos concedem a graça da sua inteligência ao nosso serviço. Guardiães do bem-fazer, é o que são. Desinteressadas almas, apenas a missão – o espírito de sacrifício – do serviço público. Sem outro interesse para além desse altruísta gesto.

No segundo acto da tragicomédia entram em cena inenarráveis criaturas especializadas em pedagogia. Circulam há largos anos nos corredores do ministério da educação. Consideram-se na vanguarda do pensamento. Educadores por excelência, desdobram-se em mil e uma experiências. Lamentavelmente, a fobia experimentadora leva-os a esquecer que as crianças que se arrastam pelos bancos da escola são as cobaias. Depois, estes praticantes da pedagogia "experimentativa" metem a cabeça na areia, como se avestruzes fossem, quando alguém mostra as estatísticas da iliteracia, as estatísticas que nos colocam em lugares nada orgulhosos quanto à qualidade do ensino.

De vez em quando, os pedagogos cintilantes saem da toca. É a ânsia de mostrar serviço. Puxam lustro ao ego sedento de protagonismo. Há que não esquecer: personalidades lustrosas têm um projecto de vida, deixar o seu nome marcado na história colectiva. Que nem seja pelos piores motivos, ainda que convencidos estejam que legam um contributo inestimável. Na hora de fazer balanços, olham para os lados, para cima, para baixo. Nunca para o seu umbigo, que esse passa ao lado da culpa, coitada, destinada a morrer solteira.

Há dias, notícias de mais intromissões desnecessárias do governo e dos seus acólitos – os burocratas bem pensantes habituados a mal agir: uma comissão para apreciar a qualidade dos manuais escolares. Os manuais que falharem no crivo das eminências pardas arregimentadas à volta de uma mesa onde flutua uma carregada nuvem de nicotina (correcção: jamais será possível retratar estas reuniões com o ambiente carregado de maços de tabaco avidamente sorvidos pelos dedicados funcionários; até isso será proibido), os que falharem na avaliação ficam condenados a vegetar nas prateleiras esquecidas de uma qualquer biblioteca. Não terão o condão de sobrecarregar as mochilas dos alunos.

O defeito será meu, incréu das virtudes de sábias intervenções de almas caridosas que colocam ao serviço da comunidade o seu elevado saber. O defeito será meu, que continuo na ingénua confiança nas virtudes do mercado. Não percebo o afã interventor deste governo. Mexe por tudo e por nada, mexe em tudo o que se mexa. Sem compreender que às vezes a melhor maneira de agir é a omissão, deixar aos agentes que interagem no mercado a definição, livre e voluntária, das condições de funcionamento do mercado. O princípio aplica-se ao mercado dos manuais escolares. Porque hão-de iluminados burocratas do ministério da educação sobrepor-se ao conhecimento dos professores? Haverá aqui uma manifestação de desconfiança dos burocratas do ministério em relação aos seus pares, aos comuns professores que ensinam nas escolas?

Gosto de acreditar que não sou dado a teorias conspirativas. E, no entanto, desconfio desta absurda ideia do governo. Que ninguém se admire se, anos mais tarde, alguns dos pedantes burocratas que aprovam manuais escolares começarem a exibir súbitos e inesperados sinais exteriores de riqueza. Dando de barato que esta gente não consegue angariar a riqueza por via de herança, ou que a abastança não lhes chega através de um seis no totoloto, é fácil adivinhar a origem do enriquecimento. Põem-se mesmo a jeito dos dinheiros sujos que as editoras se predispõem a passar debaixo da mesa, para pagar os favores dos censores de serviço. Está estudado: as decisões dos governantes são influenciadas pelos burocratas, que afinal têm um interesse directo nelas. Locupletamento, numa só palavra.

Como ontem, o segundo acto da peça invoca reminiscências de esquecível Estado Novo. Uma comissão de avaliação dos manuais escolares, o estigma dos censores. Que agora não actuam na comunicação social nem estão munidos de lápis azul. Como ontem, ecos do Estado Novo que ressoam nesta governação de maioria absoluta cor-de-rosa. Nada que não fosse de esperar. É a diferença entre o exercício do poder e o abuso do poder. Tantos anos estiveram os socialistas à espera de uma maioria absoluta, que agora aproveitam a ocasião enquanto podem. Talvez por desconfiarem, no seu íntimo, que tão cedo não repetem o resultado que lhes foi oferecido por um erro de casting chamado Santana Lopes.

10.4.06

Aperta-se o nó górdio dos tabagistas

Continua a sanha persecutória. A brigada dos costumes persiste na inflexível caçada aos maus hábitos. Pelo meio, discursos moralistas apontam o dedo ao imperativo da saúde pública, o pretexto para todas as proibições e mais algumas sobre o nefando vício do tabaco. É um exercício apelativo para os socialistas de consumo doméstico: gostam muito de intervir, legislar, proibir, conduzir as massas pelo caminho recomendável, como se fossem os pastores que apascentam um rebanho que se deseja ordenado. A palavra de ordem é esta: intrometer na esfera individual, com a desculpa do devir colectivo que asfixia as tentações individuais.

Não sei se o exemplo vem de Espanha. Consta que do lado de lá existe a lei mais repressora para quem teima em fumar. Uma lei com a chancela socialista de Zapatero. Desconheço se funciona a irmandade ideológica, o selo da internacional socialista, que forçou o primeiro-ministro deste país a dar ordens para se produzir legislação de idêntico calibre. A proposta é o nirvana para os sacerdotes do anti-tabagismo: a proibição de fumar em todos os locais públicos que não estejam ao ar livre. Espera-se que o primeiro-ministro deste país não seja apanhado na mesma esparrela do seu congénere do lado de lá: em desarmonia com a lei, apanhado a fumar no seu próprio gabinete…

Compreendo que haja maneiras diferentes de encarar os problemas. Compreendo que certos sectores desconfiem da bondade dos indivíduos, isoladamente considerados, e apostem tudo na superioridade do colectivo. Para eles, é a sociedade que corrige os vícios do indivíduo. Descrêem da responsabilidade individual. Desfraldam a bandeira da responsabilidade colectiva, a única forma de meter os indivíduos relapsos nos eixos do comportamento idealizado. É visão triunfante nos dias que correm. Com um governo socialista em acção, esta visão encontra o seu zénite.

É o contraste entre responsabilidade individual e responsabilidade social que está em causa. A responsabilidade social é uma pedagogia à força, imposta por decreto. Mais uma acto de exibicionismo gratuito das autoridades, mostrando a irresponsabilidade de todas as pessoas que continuam a fumar. Ao mesmo tempo aproveitam para exibir o autoritarismo do Estado. É através destes proibicionismos que o todo asfixia a vontade individual. O indivíduo é levado a diluir-se no todo, descaracterizando-se, tornando o todo cada vez mais homogéneo. Intrigante é ver como os que protestam contra o “pensamento único” se alistam entre os defensores da purificação forçada dos tabagistas.

Não sou fumador. Em certas circunstâncias, o fumo do tabaco incomoda-me. Todavia, acredito na responsabilidade individual dos fumadores. Poderei ser ingénuo, porque continuamos a ver fumadores em restaurantes que se marimbam para a refeição do vizinho. Poderá ser distracção, ou apenas puro egoísmo. À responsabilidade individual de uns contrapõe-se a responsabilidade individual de outros. Acaso alguém esteja incomodado à mesa pelo fumo soltado do lado, cumpre-lhe pedir ao fumador que apague o cigarro. Vou levar a ingenuidade mais longe. É nesta forma de civismo em que acredito: no civismo que emerge das relações descomprometidas entre pessoas livres, sem a tutela da pedagogia por decreto produzida por burocratas atafulhados em gabinetes sombrios, longe do contacto com pessoas reais.

Gostava de ver alguém denunciar a hipocrisia dos governos que perseguem o vício do tabaco. Porque o tabaco é uma generosa fonte de receita para os cofres públicos: pelos impostos que os tabagistas pagam de cada vez que compram um maço de cigarros; e pelos impostos que o Estado vai buscar às imensamente lucrativas actividades das empresas que fabricam tabaco. Para quem professa as virtudes da moral, esta hipocrisia é uma armadilha. As autoridades só se podem desfazer da encomenda armadilhada se tiverem a ousadia de despromover o tabaco à categoria dos bens ilícitos. Adivinhe-se porque não há coragem para levar a proibição tão longe…

Descobri a verdadeira intenção do governo. Como vai ser proibido fumar em restaurantes, bares, discotecas, etc., exige-se a fiscalização da lei nos largos milhares de estabelecimentos espalhados pelo território. Agora compreendo porque Sócrates prometeu criar 150.000 postos de trabalho. Estava a pensar nas brigadas de fiscais que vão ser criadas para vigiar o respeito da lei anti-tabagista. Ou isso, ou a hipótese mais sombria: Sócrates acredita no poder de delação de cidadãos íntegros e respeitadores da lei. Serão eles os fiscais que actuam de graça, denunciando os estabelecimentos onde se continuar a fumar. Ora sempre me ensinaram que a delação é coisa feia. Era típica do Estado Novo.

7.4.06

Fidúcia policial

A pergunta: devemos confiar na polícia, nos agentes da autoridade? A interrogação nada tem a ver com o possível envolvimento de alguns agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) num esquema de imigração ilegal. Em bom rigor, descobertas como estas motivam a interrogação. Quando os males vêm de dentro da instituição que garante a segurança pública, quando o crime fermenta no próprio organismo policial, a incerteza dá lugar à insegurança.

Lembrei-me da pergunta quando vi o ar de pouca confiança de um alto responsável local do SEF. Se o visse na rua antes de o ter visto na televisão, diria que tinha mais pinta de bandido que ar de polícia. Sei que os estereótipos são armadilhas, que frequentes vezes a cara não condiz com o interior da pessoa. Mesmo assim, não se podia ter escolhido alguém bem amanhado para cargo que implica uma sensação de confiança? Há outro aspecto que contribuiu para a má impressão do alto funcionário: talvez por incomodidade de quem falava para uma câmara de filmar, intimidado com a ideia de aparecer nas televisões de uma pequena multidão, esteve mal nas declarações. Se a confiança das autoridades policiais depende da tranquilidade da mensagem, aquele senhor foi a antítese da exigência. O que acentuou o ar pouco “policial” que exteriorizava: o nó da gravata negligentemente desapertado dois dedos abaixo do último botão da camisa, botão desapertado como se estivéssemos num dia de canícula insuportável. (A escola Mourinho – na estética do vestuário – chegou à polícia?)

Outro exemplo. Há dias estava num restaurante take away. Abastecia-me para o almoço. Ao chegar ao local, havia uma fila de meia dúzia de pessoas. Estava lá um agente da PSP. Não era perceptível se encerrava a fila ou se estava deslocado dela. O homem que seguia à minha frente parou à porta do estabelecimento. Na dúvida, perguntou ao polícia, com delicadeza, se estava na fila. Abrutalhado, o agente ripostou com um seco e antipático “sim” – com aquele ar de quem diz nas entrelinhas “o que é que acha?!” Exibia todo o incómodo por ter sido abordado por aquele homem que não percebia se o senhor agente estava ou não na fila.

Nos minutos que ali estive, só discerni prosápia e arrogância do polícia que aguardava pelo almoço encomendado. Pus-me a pensar: um polícia antipático, arrogante, com tiques cabotinos não é de fiar. Para descompor o quadro, quando chegou a vez do agente da PSP ser servido, as pessoas no local foram testemunhas das garrafas de vinho que levou para acompanhar o repasto. Sempre ouvi dizer que em serviço não se bebe (álcool). Polícias etilizados são ainda menos de confiar.

Terceiro episódio. Das recordações olvidáveis do estágio de advocacia, dois plantões no tribunal de instrução criminal. O mero pró-forma de alguém aparecer como advogado dos detidos levados ao juiz, que decide se aguardam julgamento em liberdade ou em prisão preventiva. Cruzei-me com alguns agentes que andam na rua à paisana. Uma vez fiz uma viagem até aos confins do concelho de Gondomar (confirmando que o fim do mundo pode estar a vinte quilómetros da grande urbe) na companhia de dois destes agentes. Figuras com aspecto pouco recomendável. Sei que a função – andarem infiltrados no meio da banditagem – exige que se pareçam com quem querem prender. Para além do aspecto deslavado, foram pormenores de comportamento que ficaram na retina. Sedimentando a impressão da pouca confiança nesta gente.

Exemplo final: o destino dos estupefacientes apreendidos pela polícia. Com alguma assiduidade, a polícia convoca conferências de imprensa onde garbosamente exibe o arsenal de drogas capturadas ao cabo de uma longa operação que culminou no desmantelamento de uma rede de traficantes. Mostram a droga, as armas, o dinheiro, os automóveis de alta cilindrada que apreenderam aos meliantes. Fim da história. Eu gostaria que fosse apenas fim de um capítulo. Gostaria que mostrassem imagens do capítulo seguinte: o que fazem com toda aquela droga. Por imperativos de transparência: a droga é toda incinerada (descontando uns trocos que ficam para utilização médica e para instalar a dependência nos cães treinados para descobrir drogas)? Não haverá uns desvios pelo caminho? Como se explica que as drogas circulem nas prisões, se as visitas aos prisioneiros são passadas a pente fino?

Porventura estarei a ser ingrato com a polícia, com os polícias. Porventura influenciado por umas quantas árvores que não fazem a floresta. Tento ir em busca da imparcialidade da análise. E a imagem que persiste é a dos polícias que inspiram pouca confiança, que abusam do complexo da farda, da autoridade que não o sabe ser. De uma polícia que não cativa confiança. No limite, a sensação de que somos felizardos: com esta polícia, a criminalidade que temos é um marasmo.

6.4.06

Os impostos do pecado


Há consumos que têm a cicuta dos impostos. Estes chamam-se impostos especiais de consumo. Outras vezes, é uma actividade lúdica que gera avultadas receitas e o Estado arroga-se ao direito de aplicar impostos sobre tais actividades. É o exemplo dos jogos de azar. Em todos os casos, vulgarizou-se a expressão “impostos do pecado”.

Enternecedor, este rótulo. Primeiro, porque somos educados na ideia de que certas coisas que fazemos, sem serem ilegais, são pecaminosas. Não é fácil a emancipação do jugo religioso. Podem insistir que o Estado é laico, como se lê algures na Constituição. Não passa de uma declaração de intenções, ou não estivesse enraizado o hábito das cerimónias públicas e das inaugurações terem a indispensável presença de um cura de serviço que abençoa a obra inaugurada, ou soleniza o evento com uma mão que representa deus.

A extensão metafísica na terra – o Estado – requinta a cumplicidade religiosa quando importa o dogma do pecado para assustar as almas crentes, as que acreditam piamente que a morte lhes pode trazer um camarote na celestial dimensão. Sabem que as portas são franqueadas por um S. Pedro cauteloso, atento ao deve e haver terreno no domínio do pecado, ao exercício de humildade do arrependimento. Aqui também cabem certos consumos que fazemos. Sobre eles recai o peso da censura social, investida num papel consciencioso que tutela a consciência individual.

O tabaco, as bebidas brancas, o jogo (em casinos ou fora deles) não são ilegais. A boa consciência social manda que haja decência para evitar os excessos. Por muito ou por pouco que se consuma, lá vem a mão pesada de um imposto de pecado para restabelecer o equilíbrio. Supõe-se que os inveterados consumidores apaziguam a consciência quando se libertam do encargo do pecado assim que pagam o dito imposto. Tudo se passa como se o Estado fosse o confessor, escondido sob o anonimato do biombo que o separa do crente apanhado em pecado. A absolvição surge na forma do imposto, o sucedâneo da penitência que o pobre e humilde súbdito cumpre voluntariamente, pagando a quem lhe proporcionou a libertação dos encargos de consciência. É o Estado, na versão igreja do reino de deus.

Enternecedor, em segundo lugar, pois para curar os males pecaminosos está o vigilante Estado, a nossa consciência. Para não cairmos na tentação dos excessos que agravam a dimensão do pecado, a paternal entidade estatal sanciona os pecados a que a gula dos sentidos nos conduz. Apetece glosar: deus no céu, o Estado na terra. Actividade desinteressada, decerto. Apenas um serviço – mais um – que essa criação do Homem (que por acaso o aprisiona) presta aos estouvados súbditos que se entregam nas delícias dos consumos pecaminosos. Há receita que entra nos cofres do Estado. Mas é só por acaso, e quem detectar alguma causalidade está a abusar do juízo.

Os impostos do pecado são uma contradição lógica. Se são pecaminosas actividades, eis mais uma oportunidade para a afirmação da autoridade de quem manda em nós: proíba-se, parágrafo. Se o consumo destes bens é tolerado, por definição eles não conduzem ao pecado. Autorizar algo é a negação do pecado (se bem me lembro da lógica religiosa). Se podemos libertar umas baforadas de tabaco de cachimbo, ou apanhar bebedeiras com whisky de malte, ou torrar o salário na roleta, estamos no domínio do consentido. Do que não é proibido, por não ser ilegal.

Dir-me-ão que estes consumos aparecem conotados com malefícios para a saúde pública (tabaco e álcool) ou com a degradação individual (excessos de jogo). Que não há razão para proibir o consumo destes bens, mas que eles não são tão “legítimos” como os bens que escapam à mácula do pecado. Não alinho na putativa menor legitimidade desses consumos. Não há lugar para o intermédio: se não é proibido, é autorizado. E tudo o que é autorizado não pode obedecer a graduações de legitimidade que escondem a esperteza saloia do Estado cobrador de impostos, a sua queda para caucionar a moralidade pública.

Percebe-se que, na terminologia oficial, estes impostos não tenham a designação “impostos de pecado”. Algum arquitecto de impostos terá discernido a ultrajante qualificação (se ela fosse oficial). A designação não está lá, mas estes impostos não se livram do rótulo. Eles são o que são, muito mais do que o nome sofismado que lhe dão. Pecaminosos – se o conceito fosse relevante para um ateu – são os persistentes roubos da propriedade privada, os impostos.

5.4.06

Bizarro ao quadrado: os homossexuais não podiam dar sangue

Vamos lá ver se percebi: há dias li que agora os homossexuais já não estão impossibilitados de dar sangue. Presume-se que antes deste agora isso era uma impossibilidade. É bom saber, ainda que tardiamente, o estado deplorável da sociedade que somos. Quanto mais não seja pela gratificação de saber que a bizarria foi varrida do mapa.

Por um momento regresso ao passado, ao tempo em que homossexuais estavam proibidos de dar sangue. Tento perceber a opção de quem assim legislou. Que somos uma sociedade conservadora em matéria de costumes, não é novidade. Que praticamos retórica inconsequente, não condizente com os actos sintonizados em sentido diferente da retórica, também não é coisa inovadora de concluir. Há um esforço para reconhecer direitos básicos aos homossexuais – quanto mais não seja, o direito de assumir uma opção sexual diferente. É o próprio Estado que vai saindo do espartilho da sociedade conservadora, sancionando a aspiração de liberdade que não pode ser negada a homossexuais – como é consentida a heterossexuais, como deve ser permitida a bissexuais, ou a assexuadas personagens que gravitam no celibato. É enigmático como o mesmo Estado que se cola ao politicamente correcto resvale para estas distracções, barrando o caminho das salas de doação de sangue a quem seja homossexual.

Algumas perplexidades vêm à superfície. Primeira, perceber a discriminação dos homossexuais enquanto dadores de sangue. Acho que já percebi: o sangue dos homossexuais é de fraca qualidade. Ou isso, ou então sempre se confirma uma tese tão grata à igreja católica: a homossexualidade é uma doença, ou pelo menos um desvio de comportamento. Ora quem padece de maleitas não preenche as condições para dar sangue. Impõe-se a cautela, não vá a ciência provar que a “doença” da homossexualidade se transmite via transfusão sanguínea.

Segunda perplexidade: e se um homossexual não se confessar enquanto tal, aí já pode dar sangue. Estará a cometer uma ilegalidade? Sim e não ao mesmo tempo. Não, ele não é obrigado a gritar de pulmões abertos, no meio do hospital, “eu sou gay”. Sim, cometia uma ilegalidade porque dava sangue quando a magnífica lei o impedia de praticar semelhante acto filantrópico. A ambiguidade podia criar situações de incerteza. Se persistisse a bizarra medida que agora foi eliminada, propunha uma solução: cadastrar os homossexuais, como os nazis faziam aos judeus, a quem pregavam uma cruz no vestuário; ou registar os dadores de sangue, que seriam obrigados a responder a uma pergunta sacramental – é homossexual?

Terceira perplexidade: imaginar que uma das mentes iluminadas (que decidiu colocar em letra da lei a impossibilidade dos homossexuais serem dadores de sangue) teve um acidente, está na urgência do hospital a meio de uma cirurgia que lhe tenta salvar a vida, necessita de uma transfusão sanguínea. Só por hipótese académica, o seu tipo sanguíneo é muito raro. Por uma notável coincidência, naquele hospital e naquele momento encontrava-se um homossexual assumido que coincide nesse grupo sanguíneo. Deixa-se morrer tão iluminada figura, só para respeitar a lei? Se o pessoal médico for zeloso ao ponto de não incomodar o homossexual, poderá ser acusado de negligência? E se acaso o homossexual quiser servir uma fria vingança, recusando-se a oferecer uma veia à agulha para retirar o sangue necessário para a vítima, poderá ser incriminado por nada ter feito para salvar a vida de figura tão importante?

A diarreia legislativa de sucessivos governos, de sucessivas levas de burocratas que querem, a todo o transe, deixar a sua marca pessoal, é um cadafalso. Fazer leis absurdas traz o Estado para o domínio do surreal. Boas novas para o anarquista. Pois que os governos continuem pejados de burocratas que se auto-investem na divina condição de iluminados, que continuem a deliciar-nos com pérolas como a que impedia os homossexuais de serem dadores de sangue. E para que daqui não haja apenas maledicência e crítica destrutiva, o epílogo louva o governo pela sensatez de corrigir esta boutade.

(Já era tempo deste governo acertar numa medida.)

4.4.06

As quotas, outra vez

Se dúvidas houvesse, mais uma achega para a clarificação: este é um tempo em que o mérito para nada conta. Impõem-se outros valores, que vingam na artificialidade de soluções que ensaiam igualdades forçadas. O mérito cede lugar às quotas que garantem lugares fixos a pessoas de certo sexo, sem curar de saber se os que ascendem ao Olimpo são os melhores para a função.

O parlamento aprovou a lei que impõe um mínimo de 30% de mulheres quando os partidos formam listas de candidatos a eleições. É uma medida à medida do PS que a aprovou (com o beneplácito da extrema-esquerda – do Bloco de Esquerda), do PS das tergiversações. Porquê 30% e não 50%, se as estatísticas não deixam mentir, se as mulheres são em número superior aos homens? Arrojo temperado pelo temerário partido das meias tintas. Nem o exemplo do lado de lá da fronteira, com a demagógica coragem de Zapatero que formou governo composto por igual número de ministros do sexo feminino e do sexo masculino, inspirou os camaradas rosas deste lado. A tibieza do costume.

(E quando vejo a “ternurenta” Maria de Belém a dar a cara – e o sorriso fastidioso – pela causa, só isso bastava para estar do outro lado da barricada. Quando vejo outra deputada, uma jovem deputada da bancada da maioria, a gabar-se que o PS dá o exemplo porque tem 72% das deputadas do parlamento, apetece-me largar um vómito em cima da deputadazinha. Em vez de brincar aos números, em vez de tentar vender a ilusão estatística, porque não mencionou a percentagem de deputadas dentro do grupo parlamentar do PS? Eu respondo: porque essa percentagem é inferior aos tais 30% que agora foram aprovados por este partido.)

A mania das quotas que garantam artificialmente lugares às mulheres causa-me náuseas. Primeiro, é uma imposição arbitrária do sistema político, dos seus actores, que querem garantir à força uma igualdade, quando as discussões sobre a igualdade de sexos são intermináveis bocejos que levam a lugar algum. Aliás, apenas a ilustração de que a igualdade, como valor, é uma miragem. Quando se tenta forjar qualquer tipo de igualdade, invariavelmente as medidas impostas são parte do problema em vez de serem a solução.

Segundo, as quotas obrigam-nos a pensar que nascemos causticados pelo sexo que a natureza nos atribuiu. Há que o reconhecer, a história foi pródiga na desvalorização da mulher. Agora que esse tenebroso passado foi dobrado, com o suor de muitas feministas e, há que convir, com a tomada de consciência de muitos homens que reconheceram o absurdo de relegar a mulher para um papel subalterno, agora que tudo isto pertence ao passado temos furiosas feministas a expelir insistente insatisfação. Às vezes acredito que estas feministas exacerbadas só se hão-de contentar no dia em que a discriminação positiva que defendem com pundonor seja levada ao extremo, e o sexo masculino passe a sofrer as sevícias que outrora o sexo feminino suportou. A represália, servida na frieza tão típica das vinganças.

Volto ao início do texto: não é o mérito dos seres humanos que conta. É o mundo das soluções estanques, artificiais, que cataloga os seres humanos pelo sexo. Imagine-se um concurso de acesso a um lugar na função pública. A lei impõe uma quota de 50% para mulheres. São admitidos três homens e três mulheres. Devemos ficar satisfeitos se, pela análise objectiva dos currículos dos candidatos, o homem colocado em quinto lugar ficar de fora, mesmo que, outra vez com uma análise objectiva, ele tenha melhor currículo que a mulher classificada em segundo lugar entre as candidatas do sexo feminino? Poucos gostam de passar de cavalo para burro. Já bastam os compadrios que campeiam na política e na administração pública, sancionando a ascensão dos que têm os conhecimentos certos e os fazem funcionar. Dispensava-se mais uma acha para esta fogueira da mediocridade. As causas enfáticas têm estes problemas: perdem-se na irracionalidade da militância.

A discussão estéril da igualdade dos sexos à força de decreto faz-me pensar que a humanidade tem um prazer mórbido da autofagia. Outrora a religião, que tantas guerras nutriu, hoje as diferenças baseadas nos sexos. A culpa será da natureza que nos fez diferentes, homens e mulheres, no sexo que transportamos desde a nascença. Antevejo um futuro sombrio para os exemplares do sexo masculino. Temo que, uma após uma, estejam a colocar as pedras de uma tenebrosa calçada, onde se inscreve o dizer “as mulheres hão-de dominar os homens”. O corolário da vingança feminina.

Pelo caminho, hão-de ser aprovadas quotas que impõem uma percentagem mínima de homens nos trabalhos domésticos, nos infantários, nas lojas que vendem roupa feminina, nas casas de banho das mulheres, enfim (quem sabe?), na própria maternidade (no sentido de dar à luz). A menos que a sensatez vingue e se conclua que a discussão da igualdade dos sexos é um não-assunto.

3.4.06

Análise económica da capoeira (versão Freakonomics)

O galo, emproado na sua penugem garbosa, passeia entre as galinhas. Passos majestosos, na imperial condição do macho dominante. Cacareja, voz de comando obedecida pelas galinhas do seu séquito. Se acaso uma se desvia, o galo bate as asas com estampido e dispara um grito que a traz de volta à formação ordenada. Vou apreciando o bailado da capoeira e o galo percebe que está a ser observado. Exibe a vaidade de quem manda no galinheiro. Estica a penugem colorida da cauda, espetando-a para cima para exibir pose imponente. Palmilha o chão com passos estudados, como se fosse um manequim que, vaidoso, desfila na passerelle.

Não é a gripe das aves que me traz aos galináceos. O pânico espreita entre o alarmismo barato da imprensa. De norte a sul, os galinheiros multiplicam-se. São focos de excelência para a propagação da doença, caso ela chegue até aqui. Venha isso a suceder e, dizem alguns, será uma desgraça económica. Para a economia doméstica de tanta gente que faz criação de galinhas. Uns para consumo doméstico, curando da auto-subsistência alimentar. Outros como forma de negócio, levando os frangos e os galos do campo para as feiras da província, expondo-os de patas amarradas, os bichos atarantados sem se poderem mover na atadura das patas.

Não são os efeitos devastadores de uma possível gripe das aves que discuto. É mais o prisma da economia da capoeira. O papel valioso do galo, imerso no seu harém que cuida com esmero. Estes galos são mais caros que as galinhas. Merecem o investimento pela função que lhes é destinada. Mais ainda pelas compensações que proporcionam, na função cobridora que alimenta o negócio: a prole que se multiplica, para contentamento do criador; e pelos insaciáveis degustadores de cabidelas, ansiosos por degolar a galinha e escorrer o sangue para o alguidar antes de ser vertido no opíparo manjar de cor escura.

Dir-se-ia que estes galos deveriam ser pagos a preço de ouro. Desconheço qual é a esperança média de vida da espécie. Há que descontar a entrada na curva descendente, o preço a pagar pelo desgaste da idade. É nessa altura que os galos deixam de exercer a função reprodutora. Perdem a autoridade, habituadas as galinhas a serem dedicadas escravas do galo reprodutor, condenadas agora à míngua enquanto o criador não encontra substituto. O criador é obrigado a renovar o investimento. O galo mestre perde as rédeas da capoeira, destronado por um galo mais novo, de sangue na guelra, apto para a função. Ao galo desempossado é inútil protestar pela chegada da ave de arribação que o substitui. É preciso manter o negócio. Ao galo cessante, não há segurança social que valha, nem condescendência como gratificação dos serviços de anos a fio. Apenas um activo que deixou de o ser, pronto a ser abatido.

O criador paga um preço residual pelos galos imperadores de capoeiras. O galo multiplica em lucros o investimento do criador. Sem contar a função ordenadora da capoeira desempenhada pelo galo, função inestimável. Ele conduz as galinhas pelos caminhos certos, por estar dotado de um instinto que as estroinas galinhas estão destituídas. A falta de inteligência também alimenta a disparidade de preços entre o galo garboso e as galinhas anónimas. Os galos protegem as galinhas, protegem o investimento do criador. São o capataz do criador junto das galinhas.

Só o desumanizado capital permite compreender como um galo que por tantos anos se dedicou com esmero a proteger o investimento do criador seja descartado quando perde atributos. É o desmerecimento de tudo o que o galo gerou em forma de proventos. A ingratidão na sua essência. Por anos de fiel dedicação ao criador, os galos imperadores do seu harém deviam ser compensados em fim de vida útil. Ter direito a uma reforma dourada. E seria proibido o abate quando fossem substituídos por galo mais jovem e viril.

A frieza do capital ignora estas indulgências. Nem o humano se compadece com estéreis afectividades com animais que cumprem funções económicas. E sempre pode o criador alegar, em abono da sua ausente piedade, que o galo garboso leva uma vida invejável para muitos humanos: garantem-lhe um harém. Sem contar que a ponta da afiada faca não lhe está reservada, apenas às galinhas que vão deixando de estar abrigadas na sua asa protectora.