31.7.06

Aleluia


Por um momento ensaio desprender as amarras do agnosticismo. Pretendo ser crente de uma religião qualquer. Sobretudo daquelas que não hesitam levar os fiéis ao teatro da guerra, nem que seja necessário morrer no campo de batalha, corpo decepado por uma granada assassina ou por um obus mortífero. Tento perceber se a metafísica se compadece com o espírito guerreiro dos homens. Ou se as religiões, quando se guerreiam, não são o contrário do que apregoam aos fiéis.

É da história da humanidade: guerras santas, onde os homens que matam os seus semelhantes obtêm a absolvição divina por matarem em nome do deus adorado. Os guerreiros não questionam o sentido da guerra. São a carne para canhão necessária que alimenta a superioridade de um deus que fala através do clamor da colectividade. Assim foi com as cruzadas, assim se matou em nome da ortodoxia católica, e hoje continua-se a ferro e fogo porque há religiões que se chocam. Mais que um choque de civilizações – usando a expressão que Samuel Huntington tornou conhecida – acredito que se trata de um choque de religiões. Elas continuam a exibir todo o seu potencial. Continuam a perfumar a existência dos homens, a seduzi-los com as promessas de vida eterna na dimensão celestial, a amedrontar a vida terrena com o estigma do pecado.

O deus, qualquer deus, é bondoso. Os livros sagrados de qualquer credo não se desviam desta matriz. A bondade divina inspira os artesãos que deus colocou na terra. É através dos artesãos, humildes servos, que as pétalas aspergidas pelos bondosos dedos divinos cobrem as terras com o manto sagrado da protecção de deus. Mas os homens divergem nas crenças. Deus não terá aparecido com a mesma forma, a mesma cara, a proclamar as mesmas mensagens inspiradoras das crenças. A divergência religiosa nutre a violência. A humanidade vive de costas voltadas porque não se põe de acordo na metafísica. Quando a divergência faz rebentar a corda esticada ao limite, é em nome da superioridade de um deus que os homens sangram até à morte. A bondade divina alimenta-se no sangue dos inimigos, que não se revêem na superioridade do deus rival. São sacrificados no campo da batalha, para vergar a religião oposta, dobrá-la de joelhos no humilhante reconhecimento da superioridade trazida do campo de batalha.

O deus, todos os deuses, vomitam bondade através da indómita violência que os seus seguidores exercem sobre os teimosos que professam credos diferentes. E se as divindades cantam loas à tolerância entre diferentes, os seus sacerdotes inquinam a retórica com a saga bélica que patrocinam. Fossem os deuses entidades omnipresentes e omnipotentes e decerto a venenosa mensagem dos sacerdotes, convocando as hostes para a violência sobre os fiéis de outros credos (que levam logo com o rótulo de infiéis), não passava das intenções. Os deuses, com poderes sobre-humanos para comandar a vontade dos homens, encarregar-se-iam de ciciar palavras de paz, elas sim encerrando o manancial da bondade de que os deuses se dizem penhores.

Dizem-me que deus permite o livre arbítrio dos homens. Que eles, no exercício do livre arbítrio, se apartam da bondade inata de deus. Se há maldade no vocabulário da humanidade, deve-se apenas à acção dos homens. A explicação não me convence. É a prova da incapacidade dos deuses. E se os deuses são incapazes, ineptos para levar a vontade humana pelos caminhos da bondade, essas entidades serão coisas fantasiadas no imaginário colectivo; mas não serão deuses.
A retórica habitual das religiões prega que o Homem foi concebido à imagem de deus. Quando as bombas continuam a explodir em nome de um deus, quando há vidas inocentes levadas do reino dos vivos em nome de um deus que não é o delas, quando os desavindos de uma crença são filhos de um deus menor, convenço-me que os deuses são entidades espúrias, os dedos que comandam os cordelinhos de uma gigantesca marioneta colectiva cega pelos dogmas da crença, prontos a disparar o gatilho para que a sua religião vença o torneio das crenças antagónicas. Quando tudo isto é encenado vezes sem conta, o convencimento que deus não existe. Ou que é um pretexto para os desvarios dos homens, acovardados numa entidade fictícia invocada para responsabilizar os seus actos.

30.7.06

new order - ceremony (live NYC 1981)

For the old times's sake (2): New Order, "Ceremony"

28.7.06

O gordo virtual


Carnes quase limpas de gordura. O perfil não é esquálido, mas está longe de empurrar o ar com a pança que rivaliza com grávidas de sete meses. E, no entanto, os olhos comem. E muito. Delicia-se com um manjar opíparo deitado à sua mesa. A gastronomia é arte que cultiva, em homenagem aos sabores, às cores e aos aromas que se misturam em poções mágicas inventadas pelos gourmets afamados.

Não se entusiasma com lautos manjares. Quando diz “manjares opíparos” é para marcar a diferença entre a refeição farta e a gastronomia que se distingue pela qualidade. Nem oito nem oitenta. Nem jantares que enfartam e semeiam a azia tardia, nem frugais refeições que enfeitam um canto do prato, com requintes visuais que emprestam à iguaria uma feição de obra de arte, para desgraça do estômago que fica a roncar. O equilíbrio, algures entre a cozinha abundante, típica, gordurosa, popular e a nouvelle cuisine imaginativa, fértil, feita para agradar à vista, não tanto para deleite do palato.

O gordo virtual faz a síntese entre as duas gastronomias. Usa os ingredientes que distinguiram a cozinha tradicional e junta um toque exótico, marcando a diferença. A experimentação é a pedra de toque. Por vezes com resultados desastrosos. (Uma versão de um pudim italiano feito com queijo ricota e emproado com frutos silvestres: uma decepção, com os comensais e terem a amabilidade de terminarem a sua dose sem quererem repetir – e quando a segunda dose é rejeitada, sinal que o produto final foi um fracasso.) Outras vezes com resultados surpreendentes. (Uns filetes de pescada regados com um molho que acamou alguns figos esmagados na manteiga dourada, refogando num copo de vinho verde branco.)

Quando se ensaia o acto da criação culinária, há um festim de ingredientes, ervas aromáticas, cores, aromas que enfeitam a cozinha. É um bailado criativo que ajuda a descomprimir, sobretudo quando os músculos andam tensos pelas desavenças com a vida quotidiana. Sabe bem mergulhar nos tachos, desarrumar os utensílios da cozinha. É um ponto de honra que pertence ao imaginário da criação gastronómica: aumentar a pilha de louça por lavar, uma cozinha caoticamente desarrumada. E deixar que o tempo flua como quer, enquanto os cheiros passeiam pela cozinha, subindo dos tachos ou do forno, na primeira aproximação ao que vai resultar do acto de criação culinária.

É durante o processo da confecção das iguarias que o gordo virtual se revela. Prova daqui e dali, apercebe-se das mutações gustativas que um prato sofre durante a sua elaboração. Quando chega a hora de amesendar, o apetite do maître é coisa de circunstância. Passa levemente pelo manjar, saciado que está na degustação repetida durante o processo. Que é essencial para afinar a iguaria de cada vez que a experimenta, na tentativa – tantas vezes adiada – de encontrar o ponto de equilíbrio, a perfeição do repasto. Empirismo puro. Não há ciência em funcionamento, até porque os conhecimentos da química são nulos. Apenas o senso comum em exercício, misturado com elevadas doses de experimentação que se alimenta nos vapores instantâneos que sobem à cabeça e para tomar decisões insólitas quando chega o momento de adicionar um ingrediente inesperado.

Convencido que na arte da culinária deve imperar o sentido do sabor, não se perde em rodriguinhos visuais. Pretexto para esconder a ausente apetência para embelezar visualmente os pratos, afirma que o produto final deve agradar ao palato e não tanto aos olhos dos comensais. Não que a apresentação seja descuidada. Mas sem os requintes visuais, como se fosse uma palete de cores que rivaliza com um quadro de pintor famoso, que estão presentes na cozinha sofisticada.
E se ao gordo visual fazem um bloqueio temporário no acesso à cozinha, sente-se como alguém a quem esteja a ser negado oxigénio. Há um risco adicional: se muito tempo passa afastado das lides de criação gastronómica, perde o jeito, esgota-se a inspiração, a argúcia para deitar a gastronomia nos braços da imaginação. Embrutece. O acto de comer passa a ser uma coisa mecânica. Aproxima-se do limite do anti-gastronómico: comer para viver, apenas. Quando o culto da gastronomia ensina que vivemos (também) para comer, fazendo da refeição um festim dos sentidos.

27.7.06

Ordem suíça ou desorganização latina?


No Diário Económico de ontem, Domingos Amaral reflectia sobre a tendência de “suicização” (se me é permitido o neologismo) que se espalha entre nós. A propósito de uma festa em Cascais em que o colunista esteve presente, interrompida pela polícia às duas da manhã, depois da queixa de um vizinho atordoado com a música em gritaria.

O filho do anterior ministro dos negócios estrangeiros chegava à conclusão que nos estamos a civilizar, à maneira suíça. O que lhe causa perplexidade: porque os suíços são uns “chatos” cinzentões, levam uma vida sem sal, criaturas carrancudas incapazes de se divertirem. Teme Domingos Amaral que esta deriva para a civilidade nos descaracterize: que, por detrás de apelos à cidadania e à responsabilidade individual (que no seu somatório final perfaz a responsabilidade colectiva), esteja o esvaziamento da idiossincrasia de um povo. Aos suíços o que é dos suíços, mas na Suíça. O colunista louva os italianos, a antítese da organização milimétrica dos helvéticos. Proclama a saudade pelos traços que se vão esbatendo, pela desorganização organizada (tão própria dos povos latinos) que se está a perder.

Na Suiça tudo funciona bem – é a imagem passada para o exterior, sobretudo para quem nunca esteve naquele país. Um modelo de participação democrática, com os referendos populares que se multiplicam por tudo e mais alguma coisa. São as ruas limpas com zelo, com a colaboração de todos, o que se atesta pela educação que leva os suíços a não emporcalharem o chão com papéis e outros dejectos. Um país modelar pela convivência pacífica de comunidades com línguas, credos e culturas bem diferentes. Para os cultores do federalismo, a Suiça é o exemplo emblemático de como o federalismo cimenta povos tão diferentes num espaço onde a organização é singular.

Estamos, terra lusitana, nos antípodas da organização helvética. Porventura por não termos os traços de heterogeneidade dos suíços, por sermos um povo homogéneo, um Estado unitário. Os suíços, cientes das suas diferenças, esboçaram um modelo que ultrapassa divergências naturais. Conseguiram um produto exemplar em termos de eficácia. Pelo contrário, por cá sabemos que somos todos iguais (para além das insignificantes rivalidades regionais). Na certeza da nossa homogeneidade, o desleixo assomou. Somos desorganizados, ineficazes, preguiçosos. Sempre que possível, queremos estar longe da responsabilidade individual que nos toca à porta. Na escola somos educados a cultivar os feitos da gesta dos descobridores. Alimenta-se a grandeza sepultada no passado, o diagnóstico perfeito para adiar o futuro que chega sempre atrasado.

A interrogação surge, inevitável: o que prefiro, a ordem suíça ou o caos organizado lusitano? Não conheço a Suiça. Conheço países que têm afinidades com a Suiça, quanto à responsabilidade individual e à noção de civismo, à organização. Como conheço os seus contrários: Portugal, Espanha, Itália. Não tenho conhecimentos históricos para perceber como evoluíram as sociedades na Suiça, Alemanha, Áustria, Holanda. Gostava de perceber a antropologia destes povos. Para saber se a tendência para serem bem comportados (e sorumbáticos) foi um espartilho imposto de cima, pelas autoridades terrenas e pelas eclesiásticas. Se foi esse o caso, a organização modelar desses países e o exemplar civismo são um colete-de-forças que violou a forma espontânea de ser de quem aí nasceu e cresceu. Um produto contra-natura, a corrupção do livre arbítrio individual, na transformação de um colectivo numa massa obediente. No outro pólo, os povos latinos, pouco atreitos a regras que imponham organização. Mais saudavelmente caóticos, deixando vir à superfície uma natural rebeldia que sublima um individualismo difícil de rebater.
Guardo uma imagem sintomática deste contraste. Durante uma viagem por dez países europeus, viajei de Viena para Roma. Da ordem e do silêncio nas ruas e no metro vienenses. Para o bulício, o ruído ensurdecedor no metro, o trânsito caótico mas ao mesmo tempo organizado dos romanos. Vinha de quase duas semanas em países que são o contraste da latinidade (Inglaterra, Bélgica, Holanda e Alemanha). A primeira sensação que tive ao pisar Roma, durante os primeiros minutos no metro e nas ruas que me levaram ao hotel, foi uma sensação de identificação com o que estava a viver. Ao mesmo tempo, uma sensação de alívio por ter deixado para trás terras de organização sufocante. Como se estivesse de regresso a casa, apesar de estar tão longe dela.

26.7.06

On the Hype (1): Arctic Monkeys, "I Bet You Look Good on the Dancefloor"

Justiça que não deixa saudades


Saudades, não as tenho do direito. O direito passou por mim de forma fugaz. Cinco anos a penar nos bancos da universidade, mais ano e meio de estágio de advocacia só para confirmar que não tinha vocação, nem estômago, para a função. Hoje, quando notícias da justiça entram pelos olhos, certifico-me que a opção foi a correcta.

O direito anda de mão dada com a justiça. Vem nos manuais, é a convicção dos leigos que se arvoram na condição de julgadores dos outros. Quem julga deve estar empossado nas faculdades de discernir o que é a justiça. É aqui que emergem os problemas. Primeiro, a justiça entra no domínio do subjectivo. Por mais que existam leis que tentam tornam a justiça uma coisa objectiva, a aplicação pelos julgadores faz entrar a justiça nos terrenos movediços da subjectividade. Não que tenha algo contra a subjectividade. Apenas anoto o conflito quando a subjectividade se encontra com a justiça.

Segundo, o direito é pródigo em detalhes de circunstância que beliscam o exercício da justiça. Os chamados “vícios processuais”. Por vezes, a justiça é negada porque uma fase de um complexo processo ou um requisito processual foram esquecidos. Em vez do conteúdo, a justiça parece interessar-se mais com o trajecto seguido, com os detalhes, com o acessório. Tantas vezes prescrevem delitos que a justiça se vira contra ela mesma: deixa impune o criminoso, parecendo condenar duplamente a vítima (como se não fosse bastante ter sido vítima, acresce o incómodo de saber que o criminoso sai airosamente sem dar com os costados na cadeia).

Outras vezes são os juízes que sentenciam soluções insólitas. Os episódios sucedem-se. Um juiz do supremo tribunal que acha natural que uma criança deficiente mental seja açoitada e remetida a um quarto escuro quando se porta mal, porque os castigos nunca fizeram mal aos petizes, servem para dobrar impertinências mordazes e para domesticar rebeldias que vão além do aconselhável. Ou um juiz que nega a nacionalidade a uma senhora porque ela não sabia todas as estrofes do hino nacional, como se este fosse o critério decisivo para a condição da portugalidade. Ou um juiz que absolve um violador, porque a senhora andava por aí de mini-saia, “mesmo a pedi-las” – percebendo-se que além de julgadores, os juízes são os vigilantes da consciência moral de todos nós. Ou uma justiça espúria que se apresta a passar uma esponja num mega processo de corrupção desportiva, branqueando aquilo que é voz corrente e que foi descoberto em escutas telefónicas, como se nada tivesse acontecido, como se tudo isso fosse do domínio da normalidade.

O pouco tempo que andei pelos meandros do direito e dos tribunais foi esclarecedor da podridão que por ali campeia. Juízes arrogantes que abusam do poder que lhes é confiado; juízes ignorantes que ajuízam ao arrepio do direito; advogados que não olham a meios para atingir os fins; advogados que se desfazem em cortesias e salamaleques, mas que pela calada são mestres na arte de romper compromissos, testemunhas de uma anti-ética que faz escola; jovens advogados que querem subir vertiginosamente, enganando clientes e sugando-lhes o tutano; cumplicidades entre juízes e advogados que fazem questionar a imparcialidade dos julgadores; processos que demoram anos até começar o julgamento e que depois se arrastam entre manobras dilatórias e recursos, demora que em si é a denegação da justiça.

E o direito em si, a forma como é pensado, ainda inspirado por concepções anacrónicas que vêm do tempo do salazarismo. Basta lembrar o Código Civil, datado de 1966, com algumas alterações ditadas pelo fervor revolucionário: em bloco, é um produto com a chancela conservadora dos esteios do Estado Novo. Este direito entra numa dança descompassada. Porque o par do Código Civil anacrónico pela direita é uma Constituição também anacrónica, mas pela retórica inconsequente de um “vanguardismo” esquerdista que tinha cabimento em aves de arribação como a Venezuela ou a Bolívia.
No dia em que celebro quinze anos de licenciatura em direito, o que verdadeiramente festejo é ter voltado as costas ao direito. Sem arrependimentos. Porque o direito e a justiça são paradoxais remos que se movem em direcções contrárias.

25.7.06

Paga o justo pelo pecador


Que me perdoem a insistência, mas hei-de continuar a destilar toda a ingenuidade que me corrompe enquanto vir a bestialidade humana a arrastar-se entre a destruição causada pelas guerras. Hei-de insistir em não perceber a autofagia da espécie humana.

Não quero ser uma pomba branca do pacifismo, porque essas – pelo menos as que vegetam para consumo doméstico – são pombas falsas disfarçadas de aguerridos falcões mobilizados por uma causa nítida: um anti-americanismo primário que entra no domínio do irracional. Reivindico algum conhecimento de causa, devido à pessoal antipatia pelos Estados Unidos (mas não pelo antagonismo primário). Do outro lado há alguns falcões da guerra, sempre prontos a condescender com a gritaria das armas, insensíveis às vidas humanas que se perdem. Eles também mergulhados em irracionalidade: justificam e legitimam guerras e respondem ao anti-americanismo primário com um alinhamento também ele primário com tudo o que é decidido pelos governos dos Estados Unidos.

Nesta inquietante deriva pelo irracional, ouvi um general de Israel confessar que os bombardeamentos têm causado vítimas entre a população civil. Tardou mas chegou, a confissão que mancha as mãos do exército israelita com sangue de inocentes (como acontece com os pérfidos terroristas do Hezbollah). O senhor general tentava justificar o carácter indiscriminado das bombas que vão ceifando a vida a quem é apanhado como vítima colateral de um conflito estúpido. O senhor general informava as hostes que os terroristas do Hezbollah se misturam com a população civil. É entre ela que escondem armamento. Chegou ao ponto de afirmar que os fundamentalistas se servem dos civis como escudos humanos.

(E os aliados dos judeus não questionam, nunca questionam, a retórica das autoridades israelitas. Mesmo que se saiba que numa guerra ambos os beligerantes só contam a verdade que é conveniente. Não me confundam como apoiante do Hezbollah, que não consigo estar ao lado de quem comete actos terroristas. Mas convinha não pecar pelo enviesamento da análise: como se a verdade repousasse sempre do lado judaico e nunca do lado dos fundamentalistas árabes, como se estes fossem compulsivos mentirosos.)

Na lógica febril do senhor general o que interessa é perseguir os terroristas, mesmo que pelo caminho civis inocentes sejam levados na enxurrada do fogo disparado pela artilharia. Que interessa se os civis são obrigados a conviver com os terroristas que se acobertam entre eles? É mais cómodo denunciar a covardia dos terroristas do Hezbollah. É um facto, esta covardia. Mas também é um facto que o exército de Israel cai na armadilha dos terroristas. E mancha a sua imagem a partir do momento em que destrói a eito culpados e inocentes. Será um pormenor para as autoridades de Israel: a sua prioridade é o bem-estar da respectiva população, também ela causticada pelo insidioso terrorismo dos kamikazes islâmicos a quem são prometidas setenta virgens depois da barbárie que leva uns quantos inocentes judeus do mundo dos vivos. Ao ser um pormenor sem importância, confirma-se que há vidas humanas que contam mais e outras que têm o valor de uma ninharia. É por isso que não acredito na existência de uma comunidade internacional, nem em proclamações solenes como a declaração universal dos direitos do Homem. Apenas retórica ineficaz.

Os pragmáticos deste mundo olham com naturalidade para o teatro de guerra. Com a mesma naturalidade recebem as afirmações do general israelita. Não importa que estejam a confundir a árvore com a floresta: como se todas as pessoas confrontadas com a inevitabilidade de serem misturadas com membros do Hezbollah sejam imediatamente apoiantes do Hezbollah. A estes digo: espero que nunca na vida tenham que passar pelo crivo do justo que paga pelo pecador. Talvez então percebem o drama que atinge aquela gente que, não bastasse ser obrigada a levar com a má companhia que a covardia do Hezbollah determina, arca com o pesado fardo de ver casas destruídas e vidas que se esfumam entre as cinzas de mais uma bomba despejada.
Revejo mentalmente as afirmações do senhor general israelita, decerto imerso no seu gabinete confortável enquanto manda a carne para canhão para a frente da batalha. Uma conclusão: os fins justificam os meios, por mais que a imbecilidade humana ande à solta. Não consigo, por mais que tente, deixar de alimentar um pessimismo antropológico.

24.7.06

O dispensável paternalismo sexual

No cinema, o ecrã ilumina-se para a publicidade que antecede o filme. Espectador de um anúncio que nunca tinha visto passar na televisão – na escassa vigília que faço à televisão. Imagens frenéticas acompanhadas por dizeres desconexos. Corpos que se entrelaçam, numa sugestão de momentos quentes, íntimos. As frases sucedem-se a uma velocidade vertiginosa. Começam sempre por “faço”. “Faço sentado”, “faço depressa”, “faço à luz das velas”, “faço, faço, faço”.

Se ainda restassem dúvidas acerca do que se anuncia que se “faz” por ali, o epílogo do anúncio desfaz as incertezas: é uma campanha de acompanhamento sexual para os jovenzinhos que sejam assaltados por dúvidas do foro. Anuncia-se um telefone gratuito. Do outro lado, um generoso funcionário público acoitado no Instituto Português da Juventude (IPJ) se encarregará de exercer o paternalismo sexual que o Estado omnipresente com as cores berrantes do socialismo não se dispensa de pôr em prática.

Estes socialistas são uns anacronismos. Devem viver com um desfasamento temporal de trinta anos. Se a curiosidade me levasse por diante, gostava de saber a frequência das chamadas telefónicas para o número de terapêutica sexual gratuita. Logo num tempo em que os jovenzinhos se aclimatizam com a sexualidade em tenras idades, logo agora que a informação está como nunca acessível. Os impensáveis socialistas que idealizaram este serviço de terapêutica sexual para a juventude são a nova leva de moralistas. Não pregam uma moralidade bafienta, como a católica. Mas pregam a moralidade em que se investem, do alto do seu sacerdócio de serviço público, para que os outros (todos nós, os servidos) os vejamos como entidades com sapiência divina.

A iniciativa tem o odor da intrusão, com o convite para que os jovenzinhos atormentados por problemas de sexualidade os desvendem a estes desinteressados terapeutas que desfiam o seu incomensurável altruísmo. Não consigo deixar de imaginar como estes funcionários públicos com o cartão de sócio cor-de-rosa se empoleiram num patamar de suprema importância. São os conselheiros mor das patologias sexuais da juventude lusitana – pelo menos dos escassos e ingénuos que caírem na esparrela de discar o número de telefone do aconselhamento sexual do IPJ, mais os filhinhos e sobrinhos de dedicados militantes da causa cor-de-rosa encaminhados para telefonemas vários, só para justificar a existência do serviço. Os terapeutas do IPJ são os depositários dos segredos que os jovenzinhos não ousam revelar ao parceiro, aos familiares, aos amigos mais chegados. O que basta para explicar a preocupação com a iniciativa.

Que ninguém se admire se doravante fervilhar um novo segmento do mercado livreiro: obras de autores anónimos com escabrosas revelações sexuais. Acobertados no anonimato, os funcionários públicos pastoreiam os segredos sexuais dos incautos que se servirem do “aconselhamento sexual” do IPJ. Densa matéria-prima para obras literárias com mercado garantido.
Admito que esta actividade, disfarçada sob o manto do altruísmo, me causa desconfiança. Por ser uma intrusão na intimidade das pessoas. Para mais, de pessoas que estão a atravessar o processo de formação de personalidade, logo mais sensíveis, mais expostas a palavras que sejam ditas pelos terapeutas do outro lado do telefone.

De repente, sou acometido por uma visão. Imagino-me a trabalhar com adolescentes, na escola, numa agremiação cultural, num clube. Imagino-me a desencadear entre os discípulos o boicote do serviço de propaganda encapotada do socialismo, que fazem crer ser inevitável para os nossos destinos. Cada um teria a tarefa de telefonar para o número gratuito do IPJ, simulando o problema mais impensável que se pode supor. Só para os dedicados funcionários públicos ficarem com a cabeça em água. A subversão iria mais longe: à laia de cadeia humana, cada discípulo seria incumbido de incentivar os seus amigos a entupirem a terapêutica sexual do IPJ com problemas que não lembram ao diabo.
Como liberal assumido, neste domínio acredito mais nos mecanismos de mercado. Nem que seja nos filmes pornográficos.

23.7.06

For the old times' sake (1): Joy Division, "Atmosphere"

21.7.06

O Calimero infalível


O Calimero era uma personagem de desenhos animados que me prendia a atenção em criança. Mal sabia então que, chegado à idade adulta, os Calimeros que fazem da comiseração a pedinchice alheia são das personagens da vida real que mais náuseas me provocam.

Porventura a inocência infantil esbate-se com os anos que passam, com o conhecimento da vida, da gente e das suas artimanhas que falsificam a espontânea forma de ser. Hoje, quando deparo com um Calimero profissional, revejo a personagem dos desenhos animados virada do avesso. O pintainho com lágrima ao canto do olho, sempre injustiçado por se sentir no papel de patinho feio, lamuriando-se “che porca miseria” (do original italiano), alvo de recriação na idade adulta. Personifica o coitadinho profissional que se sente cercado por tudo e por todos, que está de mal com o mundo porque é o mundo inteiro contra ele, Calimero saído das telas dos desenhos animados para a vida de carne e osso.

Estes Calimeros são uma recriação adaptada às vicissitudes dos tempos modernos e ao catálogo de malfeitorias que personagens ímpias não se coíbem de praticar. Sobretudo nestes Calimeros, eternas vítimas das injustiças dos humanos. São os perenes incompreendidos. Um escol que passa ao lado do estrelato. Eles sabem, no seu íntimo, que são a nata dos escolhidos, passando ao lado de uma carreira brilhante porque são perseguidos, vitimados pelo injusto não reconhecimento público das suas qualidades situadas muito acima da mediania.

Os Calimeros dos tempos modernos sabem-se gente infalível. Incapazes de deslizar para o erro. Supõem-se detentores de uma condição sobre-humana. O que adensa neles a sensação de injustiça, enquanto os que mandam não os escolherem para a casta reduzida dos que partilham o poder. Reagem com virulência. Por um lado, todos os outros são desvalorizados ao estatuto de incompetência. Só o Calimero é que teve a graça divina da competência intelectual. Daí à infalibilidade é um simples passo. Por outro lado, o Calimero é congenitamente desconfiado. Sente-se perseguido por todos, é a vítima das injustiças do mundo que nasceu para estar virado contra si; Calimero cultiva a desconfiança metódica. Está sempre de pé atrás em relação ao que os outros fazem. À partida, avalia-os com a sua superior bitola, num diagnóstico nada simpático: o que os outros fazem é revelador da incompetência genética que os domina. Ele é o único agraciado com o dom do saber fazer bem.

Este Calimero contemporâneo de carne e osso lamuria-se a toda a hora. Consegue arregimentar um séquito, não de seguidores obedientes, mas de incautos que caem na esparrela de corresponderem aos subtis pedidos de comiseração. Desfia o rosário das queixas, tenta mostrar como os outros são os incapazes para o que quer que seja, e reclama a piedade da audiência que o ouve com atenção. Ao Calimero e a esta audiência atenta, um mínimo denominador comum: fracos de espírito, acobardados num mundo imaginário preenchido por inenarráveis teorias da conspiração. O Calimero é o alvo preferencial destas teorias da conspiração. No fundo, é um egocêntrico incorrigível.
A transfiguração do Calimero que se operou no meu imaginário é de uma injustiça atroz. Não para as personagens que fazem gala em desfilar como sucedâneos carnais do patinho feio sempre de beicinho a pedir a lágrima fácil, que esses merecem o maior dos desdéns. Há injustiça em relação ao Calimero no seu retrato original, emoldurado nas histórias de desenhos animados. O patinho feio não tem culpa que veja nas carpideiras que estendem a mão à comiseração dos outros a personificação do Calimero, na sua desvirtuação. O mal não está no Calimero. Está nos Calimeros humanos, que enquanto assoam a baba e o ranho da sua inditosa passagem pelo mundo vão colhendo os louros semeados pela pena alheia.

20.7.06

Nem os dias enevoados

Nem os dias enevoados, quando esperas pelos esplendorosos raios de sol, tiram a mordaça da luzente maneira de viver. Não hão-de ser sombrios os dias que nascem a toldar a luz que irradia de bem fundo de ti. Nem sequer a tacanhez de um mundo que é pequeno demais para a tua existência tão grande.

Não, os dias enevoados em ti têm o brilho dos longos dias de verão aclarados por uma luz branca. És como um livro aberto onde apetece repousar em todas as linhas, uma após outra, saciado na experiência irrecusável de ler todas as palavras singelas ali inscritas. Como se desse livro se soltassem palavras nunca outrora ditas. As palavras de que são feitos os silêncios que são o mar chão de uma cumplicidade. Ou então uma melodia gizada a violinos, acordes deslizando com a languidez dos afectos que vão e vêm com as palavras que vamos trocando.

Ao longe, os campos verdes onde hão-de brotar as flores silvestres. Elas serão o nutriente necessário para as poesias guardadas na memória dos dias que hão-de vir, a sementeira das palavras que volteiam, selvagens, com os golpes de vento que batem na cara. Desse vento que veio diluir a névoa que deixa gritar o desencanto, mas que depressa vem dobrada pelo encantamento da luz sombria que tomou conta do céu que demora em cima das cabeças.

Os campos verdes que se estendem na planície até se perderem no rio. Nas margens, as águas límpidas batem com as suas pálpebras que resgatam os olhos marejados de um rio que foge rumo à perdição da sua foz. É aí, nos campos extasiados com a relva frondosa aspergida pelos ares primaveris, no espelho de água debruado a prata pelos raios de sol que vivificam o leito do rio, é aí que a afeição nidifica. Aí, onde há lugar ao desassombro da frontalidade, onde a discordância tem o seu lugar, e por ela se engrandecem os laços nem que seja tanta a distância. Podem ser muitos os rios a atravessar, altas as montanhas a dobrar, espinhoso o caminho a percorrer, com penhascos inclinados e desfiladeiros assustadores. Pode a distância estar às léguas infinitas dos oceanos. Nada derruba laços feitos fortalezas, como se fossem ameias fortificadas de castelos enegrecidos pelo tempo impiedoso.

Pela noite, quando os corpos descansam do repasto avantajado, a conversa escorre com o odor da maresia que bate nos olhos. As fragrâncias frescas misturam-se com os vapores da bebida que aplanam as ideias. Sabemos que temos um refúgio para os segredos que nos assaltam. Confiamos as dúvidas que se desfazem com as palavras sábias que são escutadas. E se acaso há dias atormentados pelas represas da hesitação, uma palavra só basta para aclarar os caminhos a seguir.

Aprendi a amadurecer com as divergências saudáveis que ecoavam das nossas conversas. E se hoje a distância é obstáculo à presença mais assídua, reconforta-me saber que os laços são indeléveis, podem mais que todos os rios e serranias que estejam à distância que nos separam. Um paradoxo: laços que se sedimentam mesmo na aporia da distância, e outros que enfraquecem apesar da proximidade. O tempo ensina a cultivar a qualidade dos laços. E se a vida se transforma numa sucessão de dias tantas vezes estúpidos, com a absorção do tempo pelo trabalho que remete estes laços para um canto que parece esquecido, a veia estulta dos tempos modernos e da nossa maioridade (de que nos orgulhamos) revive o que de mais intenso há nos laços perenes edificados. Que são edificados a cada dia que passa, mesmo naqueles dias em que parece que se debilitam pelos longos dias em que não nos falamos, pelos longos dias em que não estamos juntos.
Nem os dias enevoados o são quando temos a força para ver além da neblina que emudece a luz. Gritamos mais alto que os dias enevoados que emudecem a luz. Conseguimos ser a luz maior que remete os dias enevoados para os arrumos da memória.

19.7.06

A morbidez do voto


Descobri mais uma razão para ser abstencionista: o voto é uma coisa mórbida. Quando se exerce o direito de voto, o dito cujo é colocado numa urna. É a urna que empresta a conotação mórbida ao acto de votar. Porque não se convencionou chamar outra coisa ao receptáculo onde são depositados os votos dos devotos eleitores? Afinal a democracia não é uma paleta multicolor. Tem o negro como pano de fundo. Um regime enlutado.
Pensando bem, tem lógica chamar urna ao sítio onde cidadãos conscientes se libertam do seu dever de voto (dever ou direito?). É a lógica da democracia representativa. Apenas escolhemos um parlamento, de onde resulta a escolha de um governo que faz as escolhas por nós até sermos chamados novamente a votar. No longo hiato entre dois episódios eleitorais, os cultores da democracia representativa ensinam, nos manuais, a inevitabilidade de nos resignarmos à vontade dos escolhidos. É para isso que eles foram escolhidos. Nem que, entretanto, façam escolhas que contrariam as promessas que foram o cardápio que atraiu a maioria dos que se deram ao trabalho de depositar o voto na urna.

Não vou discutir os méritos e deméritos da democracia representativa. Nem trazer para a discussão as alternativas credíveis – que as ilegítimas (ditaduras) estariam sempre fora da equação. Regresso à morbidez do voto. Com a dupla conotação que a expressão encerra. Primeiro, o voto é mórbido porque ao ser depositado na urna se sujeita a comparações infelizes: são os mortos que jazem nas urnas, antes de serem sepultados no cemitério. Quando é dia de votar, os votos meticulosamente dobrados em quatro ficam umas horas em salmoura no seu leito fúnebre. Quantas vezes terá o eleitor saído da mesa de voto imerso na dúvida pela escolha que acabou de fazer? Quantas vezes eleitores arrependidos não terão querido recuar, reentrar na sala onde votaram e pedir para lhes devolverem o voto? Amiúde esse arrependimento demora, mas acontece. Quando os governos começam a governar espezinhando promessas solenemente anunciadas em campanha, levando quem os escolheu a perder-se no fumo fátuo do arrependimento.

Quem está morto não pode ser resgatado ao seu túmulo. É da ordem da natureza. O mesmo acontece com os votos acumulados nas urnas. São cadáveres inertes a partir do momento em que uns atrás dos outros vão subindo em camadas na hermética e negra urna. Com um simbolismo adicional: a democracia esgotou-se naquele momento em que o voto foi depositado. Apetece glosar uma imagem: o voto pulsa de vida enquanto o boletim está nas mãos do eleitor. Enquanto demora os instantes necessários para escrever a cruz que exibe a sua escolha. Enquanto está preso às mãos do seu detentor, o voto vive. Assim que é transferido para a urna, o voto deixa de pertencer ao titular. Passa a ser património da democracia. Mas entra no seu decesso. Pela irrecuperável essência. E o eleitor sai da mesa de voto com a consciência que só é chamado a pronunciar-se quatro anos mais tarde. O voto perdido na miríade de boletins acumulados nas urnas representa a morte do eleitor enquanto agente activo da democracia. Daí em diante passa a ser um agente passivo, sem escolha, sem capacidade de influir nas decisões.

Há outra dimensão mórbida do voto. Nas horas em que estagiam nas urnas, os votos encarnam o velório da democracia. Do funeral, horas ou dias depois, virá o escol dos eleitos com a incumbência de mandar. Da morbidez do voto emergem fantasmas empossados na tarefa de conduzir a nau. São mortos vivos, por vezes reincarnações de políticos falhados que insistem num segundo fôlego, teimando em adiar o decesso da sua carreira política. Só um acto mórbido como o voto possibilita a ressurreição destes cadáveres políticos. Dirão os entusiasmados adeptos da modalidade: é a vontade do povo que assim o permite, respeite-se a vontade do povo. Aqui havia lugar a resposta politicamente incorrecta, seguida de acusações de elitismo inconsequente ao autor das palavras.
Não é por essa discussão que vou. Insistir, apenas, que tudo isto tresanda a morbidez. O voto depositado nas urnas, como os cadáveres humanos o são, e a levitação de cadáveres em milagrosa ressurreição, fadados para serem timoneiros. A quem a morte repugna em todas as suas facetas, este processo deixa um travo de desconforto. Perceber que sou governado por cadáveres retirados da tumba por um processo que consiste em depositar votos em urnas. Excessivamente fúnebre.

18.7.06

À falta de músculo, viagra


É uma invenção maravilhosa. Quando as hormonas masculinas arrefecem o seu ímpeto e o músculo viril amolece, as pílulas azuis são um elixir milagroso. Enrijecem o que tendia para o amolecimento. São uma espécie de poção mágica que restaura alguns anos perdidos no bilhete de identidade. Este governo, que dá brado por exibir um músculo férreo no autoritarismo que traz alguma direita embeiçada, precisa de doses cavalares de viagra se quiser ter o proveito e não apenas a fama.

Este governo gosta de ostentar a sua autoridade. Daí às manifestações de arrogância de alguns ministros – a começar pelo chefe de todos eles – é só um passo. Daí às declarações perfumadas pela intolerância, onde se dá a entender que só o senhor ministro é que tem razão, outro passo. Os episódios multiplicam-se. Por exemplo, a legislação a impor multas aos banhistas que desafiem a bandeira vermelha hasteada nas praias onde o mar encapelado ameace a sua segurança. Nunca se tinha ido tão longe. Como muitos veraneantes ousavam fazer vista grossa à bandeira, um burocrata qualquer lembrou-se de adicionar multas pesadas à infracção. A juntar ao autoritarismo sem precedentes, um laivo de paternalismo: fica sempre bem ao governo preocupar-se com a segurança dos súbditos, nem que para tal tenha que mostrar o músculo através da chancela da multa.

À entrada da época balnear, listagem das praias com água imprópria para banhos. Notícias e mais notícias, placas nas ditas praias proibindo a entrada dos banhistas nas águas poluídas, mais a bandeira vermelha hasteada. O povo, ou por não perder tempo a ver noticiários e a ler jornais, ou por achar que é mais inteligente que os especialistas da matéria, continua a entrar na água e a banhar-se nos coliformes fecais. Também aqui, sem surpresa: um povo merdoso sente-se bem a chafurdar no meio da merda diluída no oceano. Pais e prole, mais os avós para caucionar com a sua experiência de vida, vai tudo a banhos. Assim como assim, dizem, “a água está com a cor de sempre”. Burros são os cientistas que insistem que aquelas águas podem trazer doenças epidérmicas e outro tipo de maleitas. Só pode ser má fé, por serem ratos do laboratório, magricelas esbranquiçados com vergonha de desnudar os corpos na praia.

E quando se esperava que o governo mostrasse a firmeza do seu músculo, agora que está acobertado por leis que permitem multar os ignaros que desrespeitam a bandeira vermelha, apenas a demissão do paternalismo que não passou de uma promessa vã. É caso para dizer: entradas de leão, saídas de sendeiro. Há dias, em Matosinhos (uma das praias com águas proibidas), dois agentes da polícia marítima foram cumprimentar o banheiro de serviço. Fitaram o firmamento. Entre o firmamento e a sua vista, a populaça refrescava-se nas águas empestadas. Era só sacar do bloco das multas e o pecúlio arrecadado seria um importante contributo para corrigir o desequilíbrio das finanças públicas. Olharam e olharam, não sei se à procura dos melhores exemplares do sexo feminino que por ali andavam. Nas suas barbas, dezenas (ou centenas) prevaricavam sem passar pelo incómodo de se sujeitarem ao penoso braço da autoridade.

Era a imagem do músculo flácido deste governo. Tanto prometeu, com leis punindo o desrespeito da bandeira vermelha, com a campanha exaustiva sobre os malefícios de banhos em águas fétidas, tantas multas prometeu – e, afinal, um redondo nada. A decepção total. Como se fosse aqueles garbosos machos que prometem façanhas a donzelas excitadas e depois ficam-se pelas palavras – onde são capazes de desempenhos fantásticos, mas só nas palavras.

Ainda estou para perceber o significado de tudo isto. Talvez seja bom sinal. De um governo que tenta dissuadir pela força das multas, mas que chegado o momento de as aplicar se demite da função. É bom, para o anarquista, ver que a autoridade das autoridades está de rastos. Por outro lado, temos um povaréu que tanto gosta de votar PS e que, na primeira oportunidade, rejeita a autoridade daqueles que elegeu. Um povo adulto, com tendências anárquicas (só para o que lhe convém…). Não é para aqui chamado o sintoma de tudo isto: um povo inculto, que se acha mais informado que os cientistas que descobriram que as águas empestadas de coliformes fecais são um perigo para a saúde pública.

Grande o dano que o episódio traz para a imagem de autoritarismo que o governo tem cultivado. De tanto querer mostrar um músculo de ferro, chegada a hora H o que se vê é um músculo descaído, amolecido. O viagra existe para maleitas do género.

17.7.06

No limiar da estupidez humana


Recrudesce o conflito, mais um, entre Israel e os extremistas árabes semeados à volta do território israelita. As lições do passado valem zero. Em vez de se valorizar a memória de guerras idas, com a contabilidade dos mortos e da destruição de bens, falam mais alto as feridas não cicatrizadas, o ódio perene ainda e sempre motivado pela hedionda religião. Começa outra escalada. De acto em acto, adensam-se as nuvens plúmbeas de outra guerra que há-de levar vidas inocentes que nada têm a ver com a espiral de violência fomentada pela cegueira de ambos os lados.

As análises da geopolítica da região entretêm-se com a justificação das acções da facção preferida. Pouco me importa o exercício. De ambos os lados há culpas na espiral de violência. Procurar saber quem teve razão para inculpar a outra facção como provocadora primeira, é tentar descobrir se foi o ovo ou a galinha que apareceu em primeiro lugar. Um exercício inútil.

O médio oriente é um barril de pólvora onde o ódio germina em toda a sua pujança. Dir-se-ia que é o laboratório ideal para cultivar a inanidade humana. A agonia da estupidez humana, que em ataques suicidas ou em defesas intrusivas não hesita em dar passos em frente no precipício que não demora. De passo em passo até à queda livre, em pleno precipício. Nessa altura, darão conta que não há como recuar. Talvez então reconheçam, tarde demais, todo o passado imbecil que ambos lavraram.

Repito: é desprezível justificar as acções dos israelitas como dos extremistas árabes. É fácil arregimentar argumentos que sustentam a causa de cada lado da barricada. Enquanto houver quem perca tempo na legitimação das acções de um lado ou do outro, os atentados suicidas hão-de continuar, os ataques da aviação israelita hão-de persistir. O pior dos saldos terá honra de notícia: as imagens escabrosas de um mercado israelita destruído por uma bomba envergada por um extremista palestiniano, corpos esventrados espalhados por todo o lado, o odor pestilento da morte que chegou a destempo para pessoas inocentes, cuja única mácula foi terem nascido com a nacionalidade israelita. Ou os ataques cirúrgicos da aviação de Israel, que não são tão cirúrgicos e consomem a vida de palestinianos também inocentes nesta guerra de ensandecidos.

Passam-se as marcas do razoável quando os meios, todos os meios, justificam os fins. Ontem vi imagens de um exaltado coronel judeu a proclamar a necessidade de fazer tábua rasa do “código de honra” do exército: não ceifar a vida de civis inocentes apanhados no meio do fogo cruzado entre a estupidez belicista. Não demorou a fazer efeito a proclamação: poucas horas mais tarde, nove canadianos residentes no sul do Líbano foram mortos após um raid aéreo da infalível aviação de Israel. Estranho que nem o governo do Canadá tenha protestado, nem o governo de Israel tenha sequer apresentado um pedido de desculpas, nem que fosse com a estafada retórica das “vítimas colaterais” que tudo parece justificar em tempo de guerra.

Nove vidas irrecuperáveis. Não podem ser o altar sacrificial onde o governo de Israel justifica a urgência em se proteger contra os ataques terroristas que partem do Líbano. Só faltava alegar que os nove canadianos que já não verão o dia de amanhã davam guarida a extremistas palestinianos…No rescaldo de tantas vítimas coleccionadas neste infindável conflito, estas nove vidas serão uma vírgula insignificante, dirão os complacentes com a guerra. Talvez seja o contrário. Porventura será excessivo, porque se trata “apenas” de “mais nove”, e porque se dá o caso de serem pessoas que não estão envolvidas com nenhuma das partes em conflito. O problema é de quem considerar que se trata de “apenas mais nove”. Nem que fosse “apenas mais uma” – canadiana, ou de qualquer outra nacionalidade.

Enquanto as vidas humanas continuarem a ser o combustível que alimenta mais ódio recíproco e atira mais achas para a fogueira do conflito, serei incapaz de reconhecer razão a qualquer das partes envolvidas. Ingenuidade minha, decerto, mas continuo a não encontrar as fontes de legitimidade de desavenças que dão azo à morte de pessoas inocentes. Tão simples como isto. Quanto ao resto, apenas a expressão de um egoísmo: que os ódios se consumam entre israelitas e palestinianos, sem que os tentáculos deste absurdo conflito atinjam outras zonas. Mal seria se uma estupidez humana geograficamente circunscrita se propagasse para outras zonas, elas feitas vítimas colaterais de uma irracionalidade sem fronteiras.

14.7.06

Bondade ambiental

Podia dissertar sobre a abjecta revolução francesa, que hoje comemora o 217º aniversário. Teria que afinar o discurso pelo anti-jacobinismo primário típico de J. C. Espada, nas crónicas semanais do Expresso. Como me custa tecer fios paralelos com o Espadinha, tive que meter o almanaque no bolso e orientar a bússola para outras paragens.

Lembrei-me que hoje fui acometido pelo desejo de praticar um acto de generosidade ambiental. No parque da cidade, bem junto a um dos inúmeros caixotes de lixo espalhados pelos caminhos pedestres, jazia uma folha de jornal. Não sei se foi ali parar empurrada pelo vento, se foi criatura ignara que emporcalhou as imediações do caixote do lixo com a dita folha do jornal.

Podia deixá-la inerte, onde estava, para que os lixeiros que pegam ao trabalho horas mais tarde fizessem a sua função. Como nem vento estava, não havia o risco da folha do jornal bater asas em direcção ao arvoredo, perdendo-se de vista das brigadas que limpam o parque dos estouvados ambientais que o conspurcam. Deixasse funcionar o individualismo metódico que me conduz habitualmente e diria com os meus botões: não fui eu que sujei, porque hei-de ser eu a limpar? Num acesso incontrolável, apeteceu-me fazer as coisas ao contrário. Enquanto recuperava a respiração ofegante da corrida matinal, ia-me debatendo com a consciência – ou com a falta dela. Não demorei muito a fazer as coisas ao contrário: debrucei-me sobre a folha do jornal e amarfanhei-a para dentro do caixote do lixo.

Tenho que ser fiel à verdade: isto era apenas um teste pessoal. Não, não me alistei nas fileiras das carpideiras das desgraças ambientais. Não que seja insensível aos atentados irresponsáveis que o meio ambiente vai sofrendo. Ou que não cause espécie a estupidez humana que olha para o lado dos mínimos de civismo, teimando em deitar todo o tipo de lixo para o chão, como se os caixotes do lixo só existissem para os outros. Agride-me mais o moralismo daqueles que querem educar à viva força os desapiedados do ambiente, investindo-se do alto da sua superioridade intelectual e moral que os coloca num inacessível pedestal. É assim que se fazem os pequenos diabretes que em breve se transformam em tiranetes, se ninguém lhes puser travão. E assim se descobre o fio condutor com a efeméride que o almanaque celebra: também na revolução francesa os libertadores em breve se fizeram tiranetes.

Recuo no raciocínio: o exercício de generosidade ambiental era um teste pessoal. Para perceber até que ponto a bondade exteriorizada se projecta no outro, ou se é apenas um acto de indulgência pessoal. Vale para o ambiente, como para qualquer outro aspecto onde a bondade esteja em acção. Quando acabei de colocar a folha do jornal no caixote do lixo, não me senti o herói do ambientalismo. Ou, sequer, que estava a fazer “a minha obrigação”, como se houvesse um caderno de encargos dos “deveres sociais” que recaem sobre cada cidadão. Debrucei-me sobre a folha do jornal porque me custou vê-la a centímetros do caixote do lixo, a embaciar a beleza do parque da cidade. Agrediu-me a vista.

Aqui está o aspecto crucial: era uma agressão à vista; e como não caíram os parentes à lama e deitei a folha do jornal no recipiente do lixo, deixei de ter a agressão à vista. O ambiente não ganhou aos pontos. Não foi por ter retirado a folha do jornal da sua poluente condição que o meio ambiente ficou agradecido. Pequeno acto apenas com reflexos pessoais. Só para provar que a bondade começa por quem a faz. Ou: ao fazer a bondade, apazigua-se a consciência pessoal do bondoso. E só depois, nem que seja pelos efeitos colaterais do acto generoso, ela afirma a sua condição exterior, a sua alteridade.
Suspeitava que a espaços podia ser um altruísta a merecer o aplauso generalizado. Hoje desenganei-me de vez. Continuo um coração empedernido, incapaz de ver na bondade aquilo que nos ensinam que ela é – bondade, apenas. Como se bondade fosse sinónimo necessário de ajudar o outro. Eu que pensava que estava a ser amigo do ambiente ao colocar no lixo da folha do jornal, dei conta que, afinal, estava só a livrar-me de uma pedra no sapato. Ainda não foi desta que entrei na nobre galeria dos generosos.

13.7.06

Perez Metelo, o Luís Delgado do PS e de Sócrates...

Leio-o no Diário de Notícias, todos os dias, no seu esforço para nos convencer que este governo é magnífico. Tanto se esforça que às vezes quase me convence. Falta o quase, esse muito. Hoje, o acto de propaganda governamental é de vir às lágrimas: ver aqui.

O que importa a estética


Não é a apologia do beautiful people. Não se trata de pôr nos píncaros as caras larocas dos jovens e das jovens que se colocam em bicos de pés para ficarem retratados nas páginas das revistas cor-de-rosa, ou em sites que difundem a esplendorosa vida nocturna mais quem a frequenta. Deste tipo de beautiful people não há muito a dizer. São apenas o embrulho. Lá dentro, apenas uma caixa de ar, ressonância do nada que são.

E, no entanto, faço o elogio da estética. Nas pessoas, nas coisas, nas paisagens. Há os líricos que insistem em depreciar a beleza exterior, sobretudo das pessoas, porque as coisas e as paisagens não têm a aclamada “alma” – argumentam os ditos líricos. Depreciam a beleza, asseverando que o que interessa é a beleza interior. Têm alguma razão. Há muito mais interesse em manter uma relação com uma pessoa que seja inteligente, com traços de personalidade atraentes. Diz a voz corrente que as deslumbrantes modelos que se passeiam nas passerelles só fazem bem ao ego dos seus acompanhantes masculinos, pela inveja que provocam na homenzarrada geral. Descontando este aspecto de exterioridade (pavonear a companhia, nutrir a inveja alheia, que ambos os aspectos fazem bem ao ego enorme de pequenos egocêntricos), os “felizardos” ou são tão vácuos com a sua esbelta companhia, ou vivem atormentados pela companhia de uma criatura intelectualmente desinteressante.

Ainda assim, insisto, a estética conta. Tanto pela positiva como pela negativa. Conta pela positiva, porque os exemplares que retratam a beleza são como uma luz que alumia um dia escuro. Mas também conta pelo lado negativo, a estética. Como há os apoderados pelo desamor, há os devedores da beleza. As Odetes Santos deste mundo, desdentadas figuras que ostentam a barbicha que as masculiniza, aquela clarividência assustadora, a mania que são penhores da razão. Não é só a antítese da estética que as torna aterradoras: à figura pouco simpática à vista, junta-se o carácter. O monopólio da razão, os laivos de intolerância, a arrogância militante, a incapacidade para lidar com quem mostra ideias diferentes – eis os traços que desfeiam ainda mais quem não foi agraciada pela deusa da beleza.

Não concordo quando me dizem que a estética não conta quando escolhemos a pessoa com quem partilhamos a vida. Podem-me tentar convencer que é a beleza interior o chamariz principal. Até podem jurar a pés juntos que é fácil viver com a pessoa intelectualmente mais interessante do mundo ainda que ela seja um monumento à fealdade. Direi que se trata de lirismo puro em doses avantajadas. Há um argumento que desmente o lirismo: ainda que seja aos olhos daquela pessoa, há sempre alguma beleza exterior que influencia o inexplicável Cupido. Pode dar-se o caso da tal pessoa ser o arquétipo da fealdade aos olhos de todos, menos da pessoa que se deixou enfeitiçar e que consegue discernir traços de beleza que mais ninguém tem capacidade para ver. Nem que seja pelo feitiço que se apoderou da pessoa apaixonada. Aí vinga a estética.

Estarei a ser injusto e apócrifo ao ajuizar tanta importância à estética. Poderei cair em contradição, quando recordarem a minha corrosiva visão da “gente bonita” que se aperalta por nada de substancial. Mas há um paralelo entre as pessoas e as paisagens. Tal como as paisagens, as pessoas não podem fugir ao crivo da estética. Poderão contrapor que as paisagens são coisas, despersonalizadas, destituídas da essência mais nobre de uma pessoa – a alma. E mesmo assim tecemos loas a paisagens esplêndidas, fazemos poemas inspirados na beleza das paisagens. Só lunáticos ou quem alinhar por padrões não convencionais de estética se aventura a cantar a beleza dos subúrbios das grandes urbes europeias, apinhados de fábricas, onde o fumo toma conta da atmosfera, o verde das árvores está ausente e as pessoas circulam circunspectas, infelizes. Que há lugar ao subjectivismo é ponto assente: há quem se deixe inebriar pelas paisagens lunares dos desertos; quem fique embeiçado pelas curvas suaves das planícies alentejanas, mesmo na aridez estival que empresta uma cor ocre às vastas planícies; eu prefiro o verde do Minho, os socalcos do Alto Douro, as serranias de Trás-os-Montes.
E se há lugar às escolhas pessoais ditadas por diferentes padrões de estética quando olhamos para as paisagens, decerto o mesmo acontece com as pessoas. Vermos beleza ou fealdade ou apenas indiferença numa pessoa significa que a estética fala mais alto. Mesmo aos que afiançam o divórcio da estética. É genético: a beleza – como a fealdade – descerra-se diante dos nossos olhos, queiramos ou não admiti-lo.

12.7.06

Nirvana fiscal

Há os paraísos fiscais, locais invejáveis onde se paga uma ninharia de imposto pelos rendimentos e pelo património (ou nem se paga nada). Só para gente abastada, que refugia as suas fortunas nesses paraísos fiscais por se recusar à cleptomaníaca sanha dos governos dos países onde vivem. Ontem foi lançada a primeira pedra para Portugal passar a ser o expoente máximo dos paraísos fiscais. Diria, o verdadeiro nirvana fiscal.

A pretexto de mais uma homenagem aos bravos da bola que andaram na Alemanha a dignificar o brio lusitano, o presidente da federação portuguesa de futebol propôs que os 50.000 euros que cada artista vai receber de prémio fiquem isentos de IRS. Uma espécie de consideração de todos nós pelos bravos do pelotão terem elevado a auto-estima colectiva. Pelo meio, o típico argumento que faz do futebol um mundo à parte: uma profissão de desgaste rápido. Proponho a extensão do argumento: esta rapaziada dificilmente embolsará outro prémio semelhante. Foi o zénite de uma carreira. Mais uma razão para a isenção de IRS. Como se fosse a gorjeta que eles recebem dos milhões de contribuintes. Se bem que o pretexto da gorjeta não colha neste contexto: dá-se gorjeta aos necessitados, não aos que estão habituados a embolsar num mês o que muitas pessoas ganham num ano (e numa perspectiva optimista).

Madail é um bom anarquista. Terá lançado a primeira pedra para que todos os contribuintes sejam isentos de IRS. Lá está o nirvana fiscal. Temos que agradecer penhoradamente ao presidente da federação portuguesa de futebol. Acaso no futuro o hediondo IRS, que rouba parcela significativa do nosso suor de trabalho, vier a ser banido, Madail será merecedor de uma estátua gigantesca bem no centro de Lisboa.

Todos somos heróis. À nossa maneira, todos fazemos um esforço hercúleo que faz avançar o que somos. Nuns casos com mais mediatismo, na esmagadora maioria dos casos apenas o contributo anónimo dos pequenos passos sem os quais seríamos um antro de retrocessos. O que fazemos para mover as rodas dentadas da grande engrenagem, o suor que destilamos, o que produzimos, mesmo as críticas de uns especialistas em devastar tudo o que se mexa à sua volta – tudo e mais o que se puder imaginar, os pequenos passos que impedem o mergulho no imobilismo. Se em alguns casos se trata de um pequeno empurrão, e noutros há baforadas que impulsionam a nau a alta velocidade, a diferença de contributos não interessa. Afinal não fica bem acreditar num dos preceitos consagrados do socialismo, essa coisa tão bela como inatingível, a igualdade?

Cada um à sua maneira, movemos a nau. Não importa se o rumo é acertado; apenas que há um rumo, nem que seja um rumo errante. Fica mal no retrato o ministro das finanças quando anuncia que é impensável isentar os prémios dos futebolistas de IRS. Já estamos habituados a ver nos ministros das finanças a imagem do cobrador de fraque, impiedosamente à caça dos que se esquivam ao pagamento de impostos. Até sabemos que os tempos são difíceis, na tentativa de corrigir os descarrilamentos orçamentais de governos anteriores. Diz o ministro que o momento é de sacrifícios. Em matéria de sacrifícios, ou toca a todos ou a imoralidade vence no braço de ferro.

O ministro deu a resposta que pensa (e os fazedores de imagem também) ser a mais querida aos ouvidos da maioria das pessoas: nem pensar em desculpar a malta da bola do pagamento de impostos, logo a eles que se banqueteiam em réditos principescos, coisa que só no domínio dos sonhos cabe ao cidadão comum. O ministro sabe que aceitar a sugestão de Madail era dar o flanco a que todos deixássemos de pagar IRS – e, de caminho, outros impostos ignominiosos. Faz mal. Os bravos dos relvados alemães merecem a nossa consideração, pelo que fizeram pela auto-estima colectiva. E porque todos nós somos, cada um à sua maneira, heróis da portugalidade contemporânea. O homem do talho, a bailarina, o professor primário, a cabeleireira, o homem da recolha do lixo, o histologista, a dona de casa, o cantor pimba, a funcionária dos impostos, o cozinheiro, a gestora, o camionista, a senhora deputada.

O nirvana fiscal é uma doce utopia. Uma oportunidade perdida pelo cobrador de fraque que nos leva o couro e o cabelo pelo que geramos. Como se o que produzimos, e que origina os rendimentos que auferimos, não fosse já bastante para fazer mover as peças da engrenagem. Parece que não: o roubo institucionalizou-se, na figura do imposto.

11.7.06

Como um governo socialista promove a exclusão social


No melhor pano cai a nódoa. É a imagem adequada deste governo cor-de-rosa. Somos bombardeados com a lógica de que os socialistas são os campeões da inclusão social, sempre na linha da frente contra as discriminações, sobretudo contra as discriminações que afectam as minorias. Os idosos desterrados no interior profundo, iletrados, em muitos casos analfabetos, constituem uma franja de excluídos. Deviam ser uma prioridade deste governo, que não se cansa de usar uma retórica que apela ao sentimento.
Este governo quer colocar a santa terrinha que governa na vanguarda das novas tecnologias da informação. Gaba-se de cobrir o território com Internet de alta velocidade. O primeiro-ministro aparece, vaidoso, a mentir aos cidadãos: diz que temos a Internet de banda larga mais barata da Europa. Os jornalistas, enfeitiçados pela verborreia jactante do sucessor de Santana Lopes (e aqui a palavra "sucessor" aplica-se em todas as suas propriedades), ouvem e não ripostam. Deixam passar a mentira em branco. Ou por conivência, ou por ignorância. Nem sei o que será pior - se a conivência entre jornalistas e este governo, se a ignorância dos jornalistas.
Ontem, mais um episódio da imparável marcha rumo ao progresso. Já chegou a Internet wireless a uma aldeola escondida no mapa do interior. A RTP, candidamente servil na disseminação da propaganda governamental, deu a notícia como se estivéssemos perante um terramoto tecnológico. Uma adolescente sentou-se no adro da igreja, colocou o computador portátil ao colo e toca a surfar na rede, sem fios. Resta saber se a adolescente com um ar muito citadino não estava em Benquerença, distrito de Castelo Branco, em deslocação de fim-de-semana. Resta saber quantos jovens habitam em Benquerença.
Logo de seguida, a jornalista cometeu a imprudência de entrevistar meia dúzia de velhinhos. A imprudente jornalista (que, adivinho, terá levado um puxão de orelhas do chefe, depois de instruído pelo ministro da tutela) borrou a pintura da propaganda governamental. Um atrás de outro, os idosos que passaram diante do microfone nem sequer sabem o que é um computador, quanto mais para que serve a Internet - e muito menos o significado de "wireless". Faltava desmascarar a vacuidade de mais um acto de propaganda socialista. Indagar sobre a composição demográfica de Benquerença. A jovenzinha trajando computador portátil pelas ruas da aldeia será uma excepção à envelhecida aldeia beirã. Quiçá filha de um funcionário público qualquer com cartão de sócio do PS, instruído para levar a criancinha até aos confins das origens familiares para mostrar um mundo faz-de-conta.
Como é belo promover a sociedade da informação, as tecnologias mais avançadas que nos colocam no mapa das vanguardas. Pena que seja uma inutilidade. Mais estranho é este governo, mestre na arte de ludibriar através da imagem sabiamente arquitectada, nem perceber como cai no alçapão do ridículo. Levar a Internet sem fios a uma remota aldeia é uma inutilidade. A população envelhecida não percebe para que serve essa coisa da Internet sem fios, se os computadores são uma ave rara naquelas paragens. Pelo caminho, o garbo de quem promoveu o gesto de modernidade. As gentes citadinas, empenhadas em beber cada gota da vanguarda tecnológica, aplaudem entusiasticamente a iniciativa. São elas que interessam na contabilidade dos votos. Coisa estranha: medidas que chegam a paragens distantes, sem serem úteis às populações locais, apenas para fidelizar as clientelas citadinas inebriadas com os ventos de modernidade aspergidos pelos dedos frenéticos dos Josés Magalhães acampados no governo.
Não há bela sem senão. Os velhinhos, a quem deve fazer espécie a bebedeira tecnológica que nos passa diante dos olhos, ficam especados sem saber o que fazer com ela. Não participam nela, pela sua abstémia condição ditada pela iliteracia, mesmo pelo analfabetismo. E quanto mais o governo andar entretido com as minudências do high tech da sociedade da informação, mais os velhinhos hão-de sentir que não pertencem a este mundo.
Desfasados, hão-de olhar para o horizonte à espera que a prometida vida celestial chegue depressa. Rezando aos anjinhos para que lá, na outra dimensão que os espera, os bites não tenham passado a cancela de S. Pedro. Daqui sugiro que as suas preces vão mais longe: que o zeloso S. Pedro barre o caminho aos frenéticos socialistas das tecnologias da informação que lhe batam à porta. Ou isso, ou um contrato: lá entrarão (decerto, tantos os serviços inestimáveis que esta malta socialista prestou à comunidade) com a condição de deixarem o high tech lá em baixo, na vida terrena. Lá, pelo menos, a justiça divina cerceará as tentativas de votar à exclusão social os pobres e analfabetos idosos.
Os socialistas que lá chegarem terão uma reciclagem forçada: obrigados a retomar contacto com a prática que a sua retórica estafada, enquanto vegetaram pela vida terrena, levou ao esquecimento. E se houver a transcendência dos contactos entre os socialistas vivos e aqueles que forem entregues aos cuidados de S. Pedro, pode ser que os de lá de cima sussurrem às almas vivas para não meterem de vez o socialismo na gaveta.

10.7.06

Às vezes anoitece


E os lençóis parecem vazios, frios, como se fossem a aurora de um deserto visitado em pesadelos. Às vezes anoitece com o desejo de voltar a ser manhã, depressa. Para deixar a noite sem vida num canto da memória sem lembranças, e voltar a ver tudo que os olhos bem abertos conseguem ver. Porque é pela noite que os lençóis nos embalam num sono que rouba os instantes preciosos da vida sempre curta. Dizia: o sono é tempo de vida a que perdemos o rasto. A engenhosa arte de um filisteu que ludibria, convencido que pelo sono se retemperam energias exangues. Nada mais errado. O sono é tempo roubado à vida.

Mas quando anoitece, o corpo derrotado pelo cansaço vagueia, inerte, autómato em direcção dos lençóis. Apetece entregar-se aos lençóis. Surgem como o campo onde se revigoram as forças, o milagroso altar que inventa a força para dobrar as vicissitudes de mais um dia. Que interessam essas deambulações demenciais, quando sei que estás ao meu lado? Anoiteça, sozinho ou contigo ao meu lado, e sei que à distância que estivermos pulsam as veias no clamor pela tua presença. Nem que não haja almofada ao lado, levo-te comigo na mais singela das presenças. Nem quando durmo sozinho a tua companhia se ausenta.

O vento sopra com força. A brisa que nos despenteia eleva um esgar de desconforto. Do alto do promontório avistamos o mar infinito. Infinito pelo cunho do horizonte, que só deixa ver mar e mais mar, até a linha do horizonte se fundir com o fio ténue do céu. Lá em baixo as ondas esmagam-se contra as rochas. O estampido ecoa nas cavernas perfuradas pelas ondas incessantes, ora no tempo bonançoso, ora nas tempestades que silvam a fúria do mar encapelado domado pelo rochedo abrupto. E tudo contemplamos, com o silêncio de quem sabe onde estão as vozes tão altas da cumplicidade só nossa. Ali estamos, uns instantes, limpando uns salpicos do mar que dançam sem sentido, empurrados pelo vento que sobe até ao promontório.

Ali também há-de anoitecer. Só com o silêncio das vagas alterosas que encontram o seu leito nas rochas sempre molhadas, no musgo corajoso. Ali anoitece, mas o mar silvestre nunca dorme, no constante vai e vem, a força indomável que ousa nunca adormecer. Inspira, a ousadia. Se pudesse também nunca me deitava. Anoiteceria, comigo de testemunha do anoitecer prolongado. De vigília ao teu sono, o candeeiro à média luz só para ler os teus esgares, vigiar os teus sonhos para afugentar todos os fantasmas, enquanto ao teu lado estendia a teimosia da insónia. Como se fosse o mar bravio, ondas majestosas a bater no teu peito, fusão mágica dos instantes intemporais.

Houvesse maneira de derrotar o sono, uma poção mágica de não carecer do sono, e nunca anoiteceria. Não anoiteceria com o sinal dos sinos que dobram pelo sono que espera embrulhado nos lençóis. Os lençóis seriam como os musgos acamados nas rochas que recebem a cólera das ondas. Altares singelos onde repousam as enraivecidas vagas, os suaves refúgios que as aquietam, domesticam a fúria com que se fazem a terra firme. Musgos dóceis que desfazem as intrépidas ondas que ali se fazem mar temporão. Ali, onde o mar tempestuoso tem o seu anoitecer, à espera que outras ondas tardias venham repetir-se no processo infindável. Sempre partidas pelas rochas que se entregam de peito aberto e envolvem as ondas naquilo que delas fica, uma espuma esquálida que se tinge com o nada das forças esgotadas nos rochedos.
Anoitece, ali e em todo o lado, de mil e uma formas e cores. Onde quer que anoiteça, a escura luz que se põe tem o perfume das candeias que os teus dedos alumiam, quando se passeiam pela minha pele. Pode anoitecer de todas as formas e cores, que bem forte bate a luz que irradia dos teus olhos, mais forte que mil sóis. Com a certeza de que nunca anoitece, mesmo quando o sol se deita detrás da linha do horizonte.

7.7.06

Tiros no pé (a RTP apoia touros de morte)

Algum dia, o anarquista teria que defender a legalidade instituída. Nem que o faça de forma oportunista, para desferir uma estocada numa das actividades que faz parte do património genético do “tradicional” – as touradas. Que importa: nisto das incoerências, é sempre mais cómodo denunciar as incoerências alheias e varrer para debaixo do tapete as nossas próprias…

No último fim-de-semana soube-se que o valente toureiro Pedrito de Portugal estava com um problema bicudo. Não que o bicudo problema estivesse numa haste pontiaguda de um bravio touro, entrada num sítio desconfortável mercê de uma distracção na lide. Nem isso era possível nesta terra de valentões de garganta. Os touros que entram na arena vêm sempre com os cornos protegidos por capas, para as meninas que os toureiam não sofrerem dolorosas cornadas. Já que tanto clamam pelo exemplo espanhol, onde os touros podem ser mortos para gáudio de uma arruaça bestificada e com a aprovação da lei, podiam os intrépidos admiradores da “nobre arte do toureio” (expressão deles) aceitar que os animais exibissem a cornadura tal e qual ela é, expressão da sua maneira de ser selvagem que toureiros e afins tratam de domar num combate desigual.

Não, o problema do abencerragem Pedrito de Portugal era do foro monetário: 250.000 euros de multa por, numa vila algures no Ribatejo, ter desferido estocada mortal num touro. O herói sabe que isso é ilegal e punido com multa. De nada lhe vale apelar à extensão da excepção de Barrancos. Apesar de ser do domínio do absurdo (para condizer com o impensável ministro que a caucionou, que agora anda a ganhar rios de dinheiro na petrolífera nacional), a excepção só vale para esse enclave da bestialidade humana encostado às terras espanholas. Quis matar o touro, para regalo dos espectadores entusiasmados com o acto abominável; resta-lhe suportar as consequências. Pagar a multa. É muito dinheiro? Era o risco que corria por ter feito vista grossa à lei.

Invejo Pedrito de Portugal. Não por andar a ceifar a vida de inocentes animais, numa luta desigual. Invejo-o porque à sua volta se ergueu uma onda de solidariedade. Primeiro na vila onde a lide mortal ocorreu, mas depressa se estendeu à escala nacional, com o beneplácito da RTP. Como o valente toureiro não terá liquidez financeira para pagar a multa, os amantes da tourada quotizaram-se. As operações de solidariedade arrepiam-me. Às vezes não consigo cativar uma lágrima furtiva. Coitado do homem, por ser o tributário de uma tradição popular, lá vem o nefando Estado impor-lhe uma multa exorbitante. Invejo-o: gostaria que a mesma solidariedade nacional se erguesse para me pagar os impostos de que não posso fugir, sobretudo daqueles que tenho que pagar por ter feito coisas que eram do domínio da tradição estabelecida.

O mais belo foi a passadeira estendida pela RTP para servir de “estação oficial” da onda de solidariedade. Tanto que, nas palavras comovidas do toureiro, não se cansou de agradecer o apoio da RTP. Temos uma estação de televisão estatal a caucionar uma ilegalidade. Dando cobertura a uma actuação que pôs em causa a autoridade do Estado. Para tiro no pé não se podia pensar em melhor cenário. Como sou tão sensível às campanhas de solidariedade, por fim pude dormir descansado: os meus impostos, que em parte sustentam esse buraco financeiro chamado RTP, foram usados para caucionar uma ilegalidade, para promover a arrecadação de fundos para o toureiro se eximir das consequências do seu acto ilegal.

Nisto de tiros no pé, somos pródigos. Temos que explicar à Comissão Europeia que ela não tem razão quando exige que a Caixa Geral de Depósitos (o banco de todos nós) seja obrigada a abdicar do privilégio de não pagar IRC. Que interessa se os outros bancos (os privados, que porventura nem deviam existir…) são obrigados a pagar IRC? Que importa se há uma desigualdade entre a CGD e os outros bancos? Façamos de conta que da retórica bem pensante dos políticos e governantes não faz parte o princípio da igualdade de oportunidades. Nada disso interessa. Há que ser pragmático. E interrogar: faz sentido que um banco público (ou uma empresa pública) pague impostos? Se o banco é o do Estado, e se está a pagar impostos que se destinam ao Estado, parece que estamos num círculo fechado, num círculo vicioso. Uma tautologia inconsequente.

6.7.06

A dádiva

Há em cada dia que nasce uma dádiva. Até os mais infelizes terão decerto uma razão, mais pequena que seja ela, para celebrar a dádiva com que foram agraciados. Um gesto, um afecto, ou apenas uma paisagem que faz sonhar, dúcteis palavras lidas num livro secreto. É quando andamos desavindos com o que somos que faz sentido interrogar tudo. Para perceber que a ambição é ultrajante do que fomos amealhando ao longo da existência. Mais importante que dar atenção às cruzadas falhadas é resguardar bem junto do peito as tantas coisas boas que foram acontecendo.

Gosto da palavra “dádiva”. Não no seu sentido divino, por desalinhamento ateísta. Gosto da palavra pelo que ela supõe de doação que anima o ser. Nem divina, nem esotérica. O sinédrio onde se juntam as peças que uma vida soube conquistar, com esforço ou apenas com a sorte da audácia. Na dádiva reflecte-se um sentido positivo do património da vida. É a imagem da eterna esperança agendada para os dias vindouros: como houve dádivas já arquivadas no tempo lá atrás, dádivas haverá que registar quando chegarem os dias do amanhã.

Algumas dádivas são fruto da perseverança de quem as saboreia. Um esforço bem sucedido. Por vezes, em vez do sabor adocicado contemplado numa dádiva, o seu contrário: sentir o travo amargo da decepção, quando a perseverança por fim esgotou o seu tempo e a oferenda foi um desalentador nada. Pode o travo amargo repetir-se no tempo, que não há-de teimar em vingar tempo infindável. Aí a dádiva, quando descerrar o seu pano, virá com um sabor ainda mais doce. Mesmo pequenas dádivas sentem-se como grandes feitos, ou o sinal paradoxal de tantas agruras por fim dobradas com o travo magnífico de um momento que orienta a bússola para um outro norte, aquietador, pleno.

Perante as vicissitudes semeadas no percurso que vamos fazendo, o comportamento é imperial. Dependemos da interiorização dos passos e das suas consequências. Tudo depende do balanço que se faz. Para uns, o prato da balança das dádivas inclina-se mais que o prato onde se acolhem as decepções mal carpidas. Tarefa facilitada: é só dar valor às coisas mais belas que ultrapassam o peso das coisas que entraram no rol das decepções. Para outros, os que não foram agraciados com dádivas recorrentes, saber sugar até ao tutano os ventos bonançosos que batem na janela. Abrir a janela. Para esses ventos entrarem, tão escassos que merecem ser enclausurados até ao último sopro.

Carpir as mágoas pelas desventuras acumuladas chama a atenção dos que cultivam comiserações. Há quem goste de exibir as feridas mal saradas para sentir a comiseração alheia. Mesmo que escondam a faceta mais agradável das dádivas que marcaram encontro com a sua existência. Só um incompreensível sentido da vida explica a tentação para tanta atenção dedicarem aos maus momentos que insistem em emoldurar numa permanente fotografia da vida passada. E ainda que esses momentos sejam repetições cansativas, que trazem as suas vítimas macambúzias almas, é intrigante como desviam o olhar quando à sua frente aparecem as dádivas mais singelas e mais recompensadoras que uma vida pode sentir.
As dádivas são a purificação dos sentidos. Candeias que iluminam o caminho. Sem as dádivas, escassas que sejam, o caminho escurece-se. Pelo meio do breu as armadilhas escondem-se à espera de trazer para o fundo os teimosos que arrepiam caminho na negação dos felizes momentos, do bom que há-de ter os seus dias. O mais certo é darem de caras com um alçapão, e só dão conta quando estiverem em queda livre, depois de terem pisado o terreno falso que escondia o alçapão.
Quando a aspereza da queda traz a dor intensa aos ossos amarfanhados, já não há tempo para arrependimento. Nem lugar ao apetecido recuar no tempo, desejando que a teimosia não tivesse vingado por entre o sufoco das dádivas menosprezadas. Porque se há estupidez maior é a suicidária queda para menosprezar as dádivas e só olhar para as curvas falhadas no trajecto de uma vida.

5.7.06

A mania de puxar os galões

Há momentos em que os fracos, acossados por um súbito acesso de falta de auto-confiança, se defendem puxando pelos galões. À falta de argumentos, acreditam que os galões fazem fé da sua superior condição e chegam para sentenciar uma discussão. Sem o saberem, é a confissão de uma profunda fraqueza. Demitem-se da discussão invocando as patentes na arte de que se dizem mestres. Não vencem pelos argumentos que não sabem manobrar, mas pelo embrulho com que aparecem ornamentados.

Exemplos destes invadem a atmosfera com alguma frequência. Uma aluna que faz requerimentos que começam com a ameaçadora fórmula “eu, fulana, advogada com a cédula profissional número…”. Talvez pensando que lhe dão razão só por ela brandir os galões de ilustre causídica. Como se ser advogado neste país ainda fosse – como o foi num passado que já vai distante – estatuto para orgulhar quem o é. Ou a pesporrência de outra criatura que se arroga o direito de julgar a competência de alguns dos seus professores, pairando acima dos seus colegas, dando palpites sobre quem deve ser demitido e porquê. Invoca a pós-graduação em não-sei-quê que diz estar a frequentar numa qualquer universidade espanhola para semear a sua altiva razão.

A este tipo de atitude chamo covardia intelectual. A necessidade de reforçar ideias e de convencer quem se quer convencer pela apresentação do brilhante cadastro. Não valerão os argumentos por si. Ou se valem, vêm acobertados pela inestimável chancela dos galões exibidos. Como dizia no início, contam mais os galões que o mérito dos argumentos. Pela parte que me toca, o esforço maior para impedir que a parcialidade seja o critério. Quando dou de caras com criaturas deste calibre, o instinto leva-me a desvalorizar o argumento que apresentam. Afinal não deixo de estar em sintonia com essas criaturas, tão empenhadas em mostrarem o quão importante são e como essa suposta relevância empresta mérito aos argumentos, por norma tão falíveis.

Pode ser apenas estratégia. Pode não estar no sangue desta gente mostrar a folha de serviços antes de provarem com palavras e ideias articuladas o que pretendem alcançar. Seja como for, é uma má conduta. Por mostrar que vivemos num lugar onde muita gente se deixa seduzir pelos galões puxados por criaturas pouco escrupulosas. Parece vingar a ideia de que as influências de pessoas importantes podem mover montanhas, o que basta para inclinar o plano para uma decisão que lhes seja favorável. Alguns destes especialistas na arte de embalsamar argumentos em ameaçadoras patentes ainda têm o despautério de cultivar o sagrado valor da igualdade. Talvez sem saberem, são a prova viva que a desigualdade nos é congénita, irrefutável.

É uma questão educacional, numa terra que foi ensinada a venerar os figurões, os doutores, os que chegam à edacidade do poder, nem que seja por uns feéricos meses. Temos que os respeitar mais que o anónimo à nossa frente na fila dos correios. Ensinam a arte do beija-mão, para que esses importantes cavem um fosso ainda maior em relação aos comuns mortais, na bajulação interminável que sedimenta este feudalismo moderno. São tantas as histórias contadas de boca em boca de figurões que se indispõem se, ao serem servidos num restaurante, ao serem atendidos num hotel, são tratados como um cliente comum. “Não sabe que eu sou?”, é a pergunta disparada na altivez verve da importantíssima figura, nesta paroquial terra que logo a seguir afocinha perante a pesporrência do biltre.
Será mau feitio, ou apenas indigestão pelas mordomias de tratamento que anestesiam a vida destas eminências. E pelo acobardamento que uma educação falsamente igualitária nos instila. Seja pelo que for, tenho uma relação difícil com estes espécimes que ostentam com inigualável garbo a sua tão elevada importância. Quando posso, tenho para eles a solução ideal: vão para o fim da fila, em homenagem a esse princípio tão caro ao pensamento politicamente correcto dos nossos dias – a discriminação positiva (dos que ficam à margem das genuflexões que tresandam a podridão).

4.7.06

Do pragmatismo fracassado


Deve o idealismo ceder lugar ao pragmatismo? Ou deixar vingar a honestidade intelectual, manter-se arreigado à fidelidade das ideias que não deixam aceitar certas incumbências? Ou deixar de voar em castelos no ar, deixar de acreditar que as nuvens acasteladas são porto seguro para acostar, dar a vez a uma faceta pragmática da vida?

Os idealistas empedernidos são relutantes ao pragmatismo. Sobretudo quando estão presos ao radicalismo de ideias seguras e, no entanto, tão seguras como irrealizáveis. Se o são, irrealizáveis, os idealismos não passam de teimosia, de uma ardente necessidade de afirmar a diferença perante ideias que dominam o mundo feito à sua volta. Noutros casos, a exultação da dissidência apenas pelo gosto de afinar por outro diapasão, a vocação inata para ser um desalinhado. Por vezes, a dúvida: se as ideias são genuinamente cultivadas e fermentam a dissidência, ou se é o espírito desalinhado que leva a procurar ideias embrenhadas na densidade da utopia.

Preso aos idealismos, perde o fio ao sentido do real. Como se fosse uma ave que descola num voo que plana sobre a realidade, fosse o voo a maneira de ver a paisagem de uma posição superior. Ave não é, nem voar pode. A ilusão de planar pelo céu azul com a aura da superioridade intelectual que o idealismo lhe traz é isso mesmo, uma ilusão. A vida a sério, como as coisas são, obriga a retomar o contacto com a terra. É quando desce do voo planado e tranquilo pelo mar das ideias que percebe que as ideias são irrealidades furtivas. O terreno é espinhoso mas o único onde os pés conseguem caminhar.

Sente o apelo do pragmatismo. De um trago só, o sabor amargo do contraste que separa o idealismo platónico das tortuosas ruas palmilhadas no quotidiano. Questiona o pensamento. Interroga os meandros esconsos a que o remete, o pensamento. Responsável pelo divórcio com a realidade, com o passo desalinhado com o urgente pragmatismo. Vê desfilar um mar de oportunidades que se perdem entre os dedos, tal como se fosse o vento agreste que bate nos dedos e foge de novo, para repousar noutros lugares, noutras pessoas. Quando da pontual sintonização dos sentidos, voga à superfície a demanda do pragmatismo, um apelo veemente para abdicar de idealismos que não desaguam em lugar algum.

Aprisionado pela teimosia das ideias, derrota o pragmatismo uma e outra vez mais. As ameias do castelo são barreiras que impedem ver cá para fora. Por entre as ameias cintila o tentador apelo do pragmatismo, uma luz que brilha apenas do lado de lá do amuralhado refúgio. A luz não entra nas muralhas. Ou, quando de tanto teimar consegue adentrar, é já uma luz baça, cansada de tanto esbarrar na teimosia dos idealismos enraizados. Do alto do castelo, o idealismo remete-o a uma prisão de si mesmo, incapaz de derrubar o pesado portão de ferro que o separa dos indeléveis fenos da realidade.
Concede: vezes de mais agrilhoado aos dogmas que espartilham o pensamento, manietam uma vida que podia ser diferente, aquietada com o mundo que o cerca, o mundo onde o acaso lhe deu guarida. Finda a introspecção, a conclusão de sempre. Incapaz de se desligar do pêndulo do idealismo, portadas fechadas aos apelos do pragmatismo. Prefere ser honesto com a sua consciência. Não abdica das ideias que fazem o substrato do que é.
O pragmatismo é uma miragem, uma luz ilusória com a intenção de varrer as ideias que foram sendo cimentadas. Não se entrega ao pragmatismo que traria uma falsa reconciliação consigo mesmo. Prefere a genuinidade das ideias, ainda que as ideias sejam um pequeno ponto num imenso mar que corre para o outro lado. Ainda que as ideias sejam dolorosos repositórios de um mundo inalcançável.

3.7.06

Cinco minutos de fama (e a incomparável democracia do futebol)

Costuma-se dizer que toda a gente tem direito aos seus cinco minutos de fama. O cidadão anónimo vê chegar o dia em que sai do anonimato. A câmara apontada na sua direcção, o microfone espetado para captar as suas sábias palavras, o anónimo cidadão exulta de alegria. Vai aparecer na televisão. Quando é em directo, telefona à família e amigos para testemunharem a façanha. É vê-los a passearem-se atrás da câmara, empunhando o telemóvel que avisa a família para ligar a televisão no canal y, que lá estará a sua pessoa em garboso desfile para o país ver. Se a aparição é gravada, ficam de plantão aos noticiários – o transeunte entrevistado e um exército composto por família, amigos e colegas de trabalho – até passar a reportagem mais importante da sua vida.

De repente, apercebi-me que o futebol sublima a democracia. As façanhas desportivas trazem febril a nação. O arrebatamento pelas vitórias põe a populaça nas ruas, em comemorações efusivas. As televisões têm que reportar o evento. Espalham-se pelas avenidas onde se reúne o ajuntamento. Os repórteres são instruídos para ouvirem a voz do povo, a quintessência da democracia. A escolha é aleatória, por entre o ajuntamento que espreita para, do outro lado, as suas caras larocas serem vistas. Quando o microfone é posto na boca do espécime escolhido, não são os tais cinco minutos de fama – que o tempo é escasso e precioso. Serão trinta segundos, um pouco menos, um pouco mais. Uns escassos segundos de glória com predicados terapêuticos: semeiam dias, meses de contentamento inigualável para o espécime que acabou de ser entrevistado.

Eis porque o futebol exalta a democracia no seu esplendor. A palavra ao povo. Que interessa se há um desfile de ideias sem sentido, entusiasmo desregrado que leva as pessoas a dizerem coisas incompreensíveis, inúmeros pontapés na gramática? O que importa é dar a voz ao povo, que nisso consiste a democracia. E é ainda mais democrático porque os êxitos desportivos espalham o bem-estar de norte a sul. É a auto-estima que se eleva a níveis impossíveis de alcançar noutros domínios: não o será a política, ou o desempenho económico, ou a posição perante o mundo atendendo à exiguidade que nos remete para o papel de vírgula do mundo, nem serão as artes.

(Nem nas artes: o prémio Nobel da literatura não foi celebrado com uma milésima parte do entusiasmo empregue nas comemorações dos êxitos do futebol. O que confirma o diagnóstico sombrio das elites culturais: somos um povo embrutecido, incapaz de aplaudir a façanha do escritor que recebe um prémio Nobel como gritamos os golos e as vitórias do futebol.)

Os políticos devem estar roídos de inveja. Pelas ruas enchem-se cortejos que deificam os bravos que têm capturado o perfume da vitória em estádios alemães. A malta da bola é um bálsamo para um povo deprimido. Retira-o da depressão, ainda que seja por umas escassas semanas. Um oásis de temperança. Assim se acentua a faceta democrática do futebol nacional no certame em curso: pelos resultados, que é assim que a democracia deve ser avaliada. Pela felicidade aspergida pelos dedos mágicos dos artistas que lutam contra o inimigo que veste a bandeira do outro país. Um acto de generosidade que não é mensurável.

É verdade que o povo vem para a rua gastar gasolina nos cortejos ruidosos que percorrem as ruas e avenidas. É verdade que a gasolina está pela hora da morte. Houvesse quem calculasse estes efeitos e decerto a conclusão seria lapidar: a compensação pela felicidade semeada em cada espécime com o coração arrebatado pelas conquistas lusas ultrapassa o dispêndio do combustível, coisa espúria ao pé da auto-estima inflacionada. Democracia é trazer um povo feliz. O futebol dá o exemplo a políticos, repito, corroídos de inveja (que, como se não bastasse, se colam às façanhas, como se tivessem algo a ver com elas – oportunistamente). E os Pachecos Pereiras remetidos às catacumbas onde destilam o seu fel pela incapacidade para vencermos outras olimpíadas mais importantes (nas artes, na ciência, na tecnologia, no xadrez…).
Em nós, um novo Brasil (que julgou a sua falsa grandeza pelo incomparável desempenho no mundo do futebol)?

2.7.06

Robert Wyatt - Shipbuilding

Música de protesto: como atenuar um preconceito