31.10.06

Moda anoréctica


Há tempos deu brado a decisão de impedir escanzelados modelos femininos de desfilarem numa passagem de modelos em Madrid. Consciências pudicas incomodaram-se com a ousadia: insurgiram-se contra a interferência na vida pessoal dos manequins, que têm o direito a exibir a ossatura bem definida pelas passerelles do mundo.

Por cá pediram a opinião a conceituados representantes do “mundo da moda” (e hei-de insistir, sempre, em grafar estas palavras, que só fazem sentido quando enquadradas pelas aspas). Estavam indignados. Não porque a bitola do peso e do índice de massa corporal imposto às meninas imberbes (que, sempre com cara de poucos amigos, desfilam os trapos) possa invadir a esfera íntima das opções pessoais. Os “criadores” de moda indígenas foram sensíveis aos seus interesses egoístas. Convencionaram que os desfiles de moda são o espelho de uma nova estética do corpo: esquálidas jovens esfalfam-se por conseguir colocar uma perna à frente da outra sem serem derrubadas por uma rajada de vento que tenha entrado de surpresa no recinto. Este egoísmo desnuda a falta de autoridade dos ditos “criadores”.
Perturba-me tudo o que sejam leis intrusivas das escolhas pessoais. Seria o mote para andar de braço dado com aqueles que protestaram contra a decisão tomada em Madrid. Não tenho a certeza, mas fiquei com a impressão que a decisão partiu dos promotores do desfile. Se não houve dedo manipulador do governo dos bons costumes de Zapatero, não é uma medida repudiável. Pelo contrário, é de aplaudir o desassombro de quem teve a coragem de zelar pela saúde das macilentas manequins. E romper com os hábitos estabelecidos, procurando um nova estética corporal que desista do elogio dos ossos.
Consta que no “mundo da moda” impera um regime monástico quando chega o momento das meninas abrirem a boca na necessária ingestão de víveres. E consta que os meninos da “moda” tomam hormonas femininas para jamais crescerem pilosidades peitorais que destruam a aura metrosseuxal que os empurra para a androginia. Um espartilho que sufoca as meninas com aspirações a desfilar nas passerelles espalhadas pelo mundo fora. As sacrificiais vítimas do esplendor oco da moda não podem ter tentações da gula, não vão uns míseros gramas de açúcar adicionar calorias que descompõem as trágicas figuras em que se transfiguraram. É uma ditadura demoníaca, com agentes a fazerem as vezes de cães de fila espiando o que entra pela goela das protegidas.
(Que, depois de um desfile, nas usuais festas mais ou menos privadas, as meninas descambem para uma orgia de drogas, é de somenos importância. Até ajuda: a manter a linha e a tornar as meninas ainda mais acéfalas do que já eram quando decidiram enveredar pelo luminoso “mundo da moda”).
O que me intriga é a estética corporal divulgada pelos “criadores da moda”. Será por antinomia com a bulimia que afecta milhões de norte-americanos, reconhecidos à distância nos aeroportos quando passeiam as banhas avantajadas, corpos que dariam para dois do meu (e para aí três ou quatro cinturinhas das delgadíssimas manequins na – e da – “moda”). Porventura não o sabemos, mas o “mundo da moda” é embaixador dos bons hábitos alimentares. Quer enviar sinais descodificados para os países (sempre ricos) que teimam em permitir que maus hábitos alimentares estraguem a saúde pública e desfeiem a estética corporal das pessoas. No fim de contas, a “moda” presta um serviço inestimável à vista. Pena que caia num excesso, ao traduzir uma opção estética de gosto duvidoso. Que, para mais, prejudica a saúde das meninas que cambaleiam passerelle fora.
É curioso como nisto da estética deparamos com padrões voláteis ao longo do tempo. Lembro-me de visitar o museu Rubens, em Antuérpia, onde os quadros e as estátuas reproduzem avantajadas mulheres nuas, sem pudor de mostrar as adiposidades que, nos padrões de hoje, entram no patamar do repugnante. Tantos séculos mais tarde, passámos à outra extremidade. Caras encovadas, pernas que deixam à mostra a saliência das tíbias quando tocam nas rótulas, eis os modelos femininos que desfilam a nova forma de fealdade agasalhada em revisitada estética dos corpos. É vê-las, sem graciosidade, desconchavadas, talvez com um esgar de antipatia que reflecte o estado de espírito de quem passa fome. Os seus passos estilhaçados, mais parecendo que a qualquer momento vão-se desmembrar.
Já foi tempo das curvilíneas mulheres que enchiam as medidas de masculinos olhos insaciáveis. Hoje, até nisto, pespegam-nos uma dieta intolerável. Daqui o repto: que as meninas se libertem dos espartilhos da dieta forçada que as leva à anorexia.

30.10.06

Um enxame de rotundas


Que me recorde: S. João da Madeira, Viseu, Mealhada. Locais aprazíveis, pequenas cidades que não têm os vícios das grandes urbes. A proliferação de rotundas é uma mácula. Dizem os técnicos de urbanismo: é para controlar o trânsito. Portanto, o trânsito deve ser caótico, como nas cidades populosas onde qualquer trajecto de meia dúzia de quilómetros à hora de ponta é um teste à paciência humana.

As rotundas devem ter qualquer utilidade. Quando são construídas, a utilidade percebe-se com nitidez: empregam gente que de outro modo estaria a viver à sombra do subsídio de desemprego; e dão empreitada a empresas de construção civil, que não fazem pressão para a adjudicação de obra pública. Para além destes sinais frágeis de utilidade das rotundas (e mesmo assim concentrada nos poucos que beneficiam da empreitada – juntando ao autarca que ostenta as rotundas como obra emblemática da sua passagem pelo leme do município), não consigo perceber as suas vantagens. Regulam o trânsito? Pelo contrário, empatam-no. Quem viaja em vias que dantes tinham prioridade é forçado a ceder a passagem aos que circulam dentro das rotundas. Estradas nacionais que já tinham a sua quota de trânsito ficaram ainda mais lentas, mercê dos congestionamentos provocados pelas rotundas. Está visto que as rotundas desregulam o tráfego rodoviário.
Pode haver uma benesse escondida. As rotundas são o protótipo do “dois em um” nos manuais das obras públicas. A rotunda esventra o asfalto, desvia a estrada para um lado e para o outro da artificial barriga que lhe impõem. Para não ficar um lugarejo despido de merecimento visual, a rotunda abre os braços a fontes. Que é como quem diz, para a piroseira militante dos senhores autarcas e assessores que, com a sua febril e anti-estética imaginação, transfiguram a paisagem destas pequenas cidades.
Não bastasse desfear as localidades que outrora foram pitorescos pontos de passagem, pesa o fardo económico. A obra é cara, a sua manutenção também. Pesados os prós e os contras, as municipalidades que se entregam nesta fogosa rivalidade de mais-rotundas-mais-fontes consideram que o enxame de adereços de mobiliário urbano faz bem às vistas dos munícipes. Faltaria o detalhe importante: acaso alguém inquiriu a populaça se é a favor dos adereços?
São rivalidades espúrias que nivelam por baixo. Quando os autarcas, tão certeiros, se convencem que têm que bater o município vizinho na construção de mais uma rotunda ostentando uma faraónica fonte, é o caos que se espalha. E a ignorância que o dinheiro enterrado nas rotundas e fontes podia ter outras finalidades mais importantes (ou não há nada mais prioritário, para um município, do que segar rectas com rotundas abundantes? É a versão moderna do milagre das rosas: agora, são rotundas, senhor!). Verdade seja dita, as autarquias são más pagadoras. Andaram anos ocupadas com a fobia das rotundas, com fontes pelo meio, sem darem conta que o erário municipal não tem recursos inesgotáveis. Só estranho não haver notícia de autarquias terem inventado o pelouro das rotundas e fontes, emancipando-o das obras públicas camarárias.
À sua maneira, esta é a “política do betão” inaugurada pelas autarquias. Ou a reinvenção da geografia urbana, enxameada de rotundas onde o trânsito podia ser regulado por semáforos. O que leva a suspeitar que, nestas pequenas cidades, o lobby das empresas de construção civil derrotou o lobby das empresas que instalam semáforos. Não sei se alguma vez estes autarcas se interrogaram se as rotundas profusas são factor de atracção ou de repulsão de visitantes. Falo por mim: não me apetece regressar a uma cidadezinha onde as rotundas se repetem por todo o lado. Se a intenção é demorar o visitante, obrigado a abrandar à passagem por cada rotunda, para apreciar as belezas oferecidas pela cidadezinha, por mim o efeito é o contrário. Se quero apenas atravessar aquela pequena cidade, é a paciência que se esgota quando surge pela frente a enésima rotunda. Os olhos não resvalam para o que rodeia a estrada: perdem-se na fúria de rotundas mais as fontes esplêndidas que as adereçam.

Os organismos internacionais deviam vir a esta terra para descobrir mais um indicador de desenvolvimento: quanto mais rotundas, mais rica é a terra. Ou não é essa a mensagem codificada na expansão territorial das rotundas? Dando de barato que são supérfluas, são gastos supérfluos. Ora, cidadezinhas que se dão ao luxo de semear rotundas com fontes enquistadas devem nadar em recursos. Só assim se percebe o fausto. E como não quero acreditar que os autarcas são irresponsáveis, que só querem o bem dos munícipes e que sabem ordenar as prioridades, no final concluo: esta é uma terrinha de abundância, de farta riqueza. Queixamo-nos do quê, afinal?

27.10.06

Portugal maravilhoso


No rádio, o cronista lia o seu artigo de opinião. Desta vez a tarefa do cronista estava simplificada: limitara-se a reproduzir as palavras escritas, dias antes, por Nicolau Santos no Expresso. Queriam – o cronista da Rádio Universitária do Minho (não fixei o seu nome) e Nicolau Santos – elogiar Portugal. Destruir a ideia feita do chorrilho de defeitos que fazem a idiossincrasia de um povo ambíguo, tão capaz de se agarrar à tábua salvadora da sua efémera grandiosidade como, logo a seguir, interiorizar a percepção de que vive no pior país do mundo.

Nicolau Santos esforçou-se por demonstrar que devemos ter orgulho em Portugal, num Portugal que faz boa figura do mundo. E desfiava o rol de provas do garbo lusitano: os vinhos, as empresas de tecnologia que até colaboram com a NASA, as pequenas empresas de calçado que conseguem conquistar o exigente mercado britânico, a empresa que fabrica microprocessadores e que faz furor na Europa, entre outros exemplos que não consegui memorizar. Só para diluir a ideia feita da nossa pequenez, da inevitabilidade de um Portugal falido. Afinal temos futuro, desde que haja ventura para encarar o presente de frente.

Da minha parte, um contributo para a hercúlea tarefa. Este é um país soberbo. Não ficamos a dever nada a outros, de maior dimensão e que puxam lustro todos os dias ao seu chauvinismo. Temos um futebol que rivaliza com os grandes europeus. A acreditar nos agentes do sector, é a prova como se pode fazer muito com poucos recursos. O exemplo acabado de uma indústria de sucesso. É por aqui que começo, porque o futebol preenche o imaginário colectivo. E não é só aos fins-de-semana, quando a equipa da nossa preferência entra em jogo. É todos os dias, com as tricas e baldrocas desses exemplares magníficos que são os dirigentes desportivos, arquétipos do que deve aspirar ser qualquer cidadão que se preze.

Temos um povo simples, espontâneo, inteligente, que exemplifica aos demais o que são excelsos padrões de estética. Temos a música pimba, que ainda só não foi exportada para o resto da Europa porque os demais povos são ignaros, incapazes de perceber a elevação estética dos nossos artistas. É por cá que abundam ícones culturais como Margarida Pinto Rebelo, Paula Bobone, José Saramago, Luís Filipe Vieira, Luís Delgado, o António Costa (sim, o que é ministro), Zezé Camarinha, José Mourinho. E se acaso fosse necessário encontrar um estereótipo do bravo homem lusitano, logo avançava um dos irmãos Câmara Pereira. Charmosos, marialvas que enchem as medidas às nórdicas em breves mas intensas estadias turísticas, aficionados pela tourada e pela caça, garbosos machos que fariam caça aos maricas não fosse a desdita de tal caçada ter entrado no domínio do politicamente incorrecto.

É em Portugal que ainda encontramos sindicalistas que adormeceram no tempo. São peças de museu, laboratórios vivos de um tempo que só aqui não ficou emoldurado no passado. Historiadores, arqueólogos e politólogos de todo o mundo vêm até nós para estudar estes espécimes raros, quais amostras preciosas de dinossáurios extintos. Quando escutam a ladainha dos sindicalistas, os cientistas que fazem trabalho de campo em Portugal percebem as origens do fado. E quando se embrenham no longínquo interior, é como se chegassem à idade média. Mulheres vestidas de negro, num luto permanente por quem morreu e ainda por quem há-de morrer, ostentando o buço que faz da mulher lusitana uma osmose de hormonas masculinas com a feminilidade escassamente presente.

Temos cidades que são exemplos para a arquitectura mundial. Congressos de arquitectos instalam-se em cidades esplendorosas como Braga, Maia, ou nos arrabaldes de Lisboa: estuda-se a harmonia estética do casario que se amontoa, onde o povo vive alegremente as suas vidas luzidias. Também somos exportadores de engenharia civil: as estradas cheias de curvas mostram como não agredimos o ambiente, não esventramos montes e vales só para tornar os percursos mais cómodos aos viajantes. Também temos engenheiros mestres na construção de pontes sólidas, que quase não carecem de manutenção. Assim se percebe a drenagem de cérebros para o estrangeiro, desses egoístas que calcam desapiedadamente o chão pátrio que os viu nascer.

A pequenez da portugalidade é um mito, uma incógnita incompreensível. Será da natureza humana o eterno estatuto de insatisfação, o descontentamento com o que temos, a incapacidade para dar valor à excelência (que por aqui abunda). Por estarmos mal habituados, retratamos o Portugal com cores cinzentas e o ar fétido de um povo pouco atreito a hábitos de higiene. O Portugal maravilhoso escapa-se-nos mesmo debaixo do nariz. Sem dotes para apreender o valoroso que somos, passamos ao lado da grandiosidade a que, só a espaços, passamos lustro.

Dirão os cépticos: por cada virtude arrolada, há cem defeitos identificados. Somos tão invejosos, que até desmerecemos o notável que há em nós…

25.10.06

Rabos de saia na sacristia


Os que mordem pela calada é que vão deste mundo com a barriga cheia. Eles, que pregam a moral casta, têm uma vida secreta de entrega aos prazeres carnais, à devassidão que poucos comuns mortais tiveram a oportunidade de provar. Quantas as histórias de padres da província profunda que, aproveitando a obediência de um ordeiro rebanho de devotos, foram debicando aqui e ali? Um harém resguardado na intimidade entre o cura e cada senhora apanhada no leito sacerdotal. Uma cumplicidade alimentada no pudor das devotas que se deixavam seduzir pelas palavras tentadoras do senhor padre.

Salazar construiu uma imagem de recato, solidão, entrega total ao serviço público. Para o ditador, a causa nacional era um sacerdócio inevitável. Uma dedicação quase religiosa, para alguém que foi educado na rigidez mental dos colégios de padres. O sacrifício à governação prolongou o celibato. Como prova de que temos dívidas ainda não saldadas com o longo consulado salazarista, mais de trinta anos após a deposição da ditadura ainda convivemos mal com os fantasmas do regime enterrado numa sepultura hermeticamente selada. Recentemente, mais provas da incomodidade do fantasma de Salazar: estudos sobre o celibato do ditador.

Especula-se que Salazar não era o casto que o Estado Novo celebrizou. Teria uma corte de admiradoras. Já se sabia dos enlevos que Salazar manteve com uma jornalista francesa que, nos anos cinquenta, permaneceu um longo período em Lisboa a propósito de uma entrevista. Outros têm mergulhado nos arquivos para saber se a castidade de Salazar não era um embuste para maquilhar a imagem de um ditador devotado ao sacerdócio sacrificial de governar (com mão de ferro) a lusitânia pátria.

As especulações redobram ao ser recordada a existência do Movimento Nacional de Mulheres que, a propósito do rebelde Humberto Delgado, nasceu “espontaneamente” para jurar fidelidade (canina) ao presidente do Conselho de Ministros. Milhares de cartas recebeu Salazar de senhoras excitadas com as suas façanhas governativas. Dedicadas fadas do lar, casadas, solteiras ou enviuvadas, faziam juras ao timoneiro que lhes dava garantias de aportarem em cais seguro. Salazar não era, para estas senhoras, uma figura paternal. Aparecia-lhes como o marido que não tinham ou que, existindo, estava ausente: o ombro protector, a garantia da segurança do lar estável. Sem o saberem (Salazar e as senhoras que escreviam as comoventes missivas, como é demonstrado por este excerto: “as mulheres lusitanas, sentinelas vigilantes, conseguirão que o sol da felicidade brilhe com todo o seu esplendor no lindo céu de Portugal”), estava ali um ícone sexual.

Dava para uma peça de teatro. A recriação dos anos pujantes do ditador ao leme da grandiosa nação. Um dissimulado arregimentar de voluntárias para visitas secretas ao presidente do Conselho de Ministros. Tão secretas que nem os serviços secretos sabiam da sua existência. Entravam pelas portas dos fundos do Forte de S. Julião. Com véus negros, para não levantar suspeitas. Envergando os véus negros, a certeza que se tratava de um ritual religioso, uma reza a um santo qualquer, ou a sagração de uma data relevante para a igreja católica. Lá dentro, despiam-se do véu negro e do resto, as jovens e menos jovens donzelas prontas a saciarem o ditador. Em nome da pátria, que o bom senso do primeiro-ministro exigia sanidade mental. E se os valorosos soldados haveriam de entregar o peito às balas nas terras africanas, em defesa da grandiloquente pátria ameaçada pelos terroristas negros, no Forte de S. Julião o sexo feminino tecia exercício similar.

Às vezes os tímidos servem-se da timidez para terem o maior proveito. O sexo feminino comisera-se da timidez e, num acto de generosa entrega, desapieda o jovem acanhado da sua vergonha. Só são santos no papel. Rivalizam com os marialvas que se gabam das conquistas anotadas num livro dourado. Só não exibem o másculo garbo do rol das conquistas. Não execram sinais de desconsideração do sexo oposto, como se as conquistas fossem meras coisas que entram no bornal das aquisições. Os envergonhados que sapientemente não se libertam da timidez levam a palma: as donzelas que caem no logro ao menos sentem-se respeitadas. A diferença entre a sensibilidade e a animalidade do trato. E de como a estética (pouco simpática para os envergonhados que sabem seduzir com os atributos espirituais) é derrotada pela timidez subserviente, que os faz exaltar sensibilidade em relação à mulher.

As especulações em torno de Salazar têm um efeito paradoxal: aos esforços de consolidação da imagem sanguinária do ditador opõe-se a imagem ternurenta, cândida, sensível, sedutora do sexo feminino. E ou Salazar padecia de um profundo complexo de Édipo (novas pistas para investigação dos interessados...), ou era um D. Juan reprimido, ou tornou-se ditador a contra-gosto. Um tímido que cai no goto de uma corte infindável de mulheres não pode ser um ditador em potência.

24.10.06

Impossível ser monárquico


Mote: o filme de Sofia Coppola, “Marie Antoinette”. Passado na corte de Luís XVI, narra a história do casamento de conveniência entre o futuro rei de França e uma princesa austríaca, Maria Antonieta. Como a rainha, depois de se libertar do espartilho do desconhecido, da solidão e de um marido mais interessado nas caçadas com os amigos que em cumprir os deveres conjugais, se deixa tentar por uma vida faustosa que delapidou os cofres públicos.

Sabemos como terminaram os dias de Luís XVI e Maria Antonieta, quando o povo amotinado e enfurecido irrompeu pelo palácio de Versailles clamando por justiça e pão. A realizadora prefere os aspectos mais mundanos da biografia da rainha. Os interessados pela história pura e dura terão que se contentar com os almaços que exaustivamente dissecam o episódio. E se o filme tem pouco para contar – porque o argumento se arrasta ao longo de duas horas, ficando a impressão o filme se condensava em vinte minutos – resta a originalidade de fazer dançar os convivas do que hoje seria uma rave party ao som de música indie do final da década de oitenta. Isso e o bom gosto de não retratar o sanguinário fim de vida que esperava o casal de soberanos, às mãos de enraivecidos exemplares de um povo tão esfomeado como cansado das injustiças reais com o erário público.

(Há um episódio que retrata a intemporalidade da governação pública. Os ministros e conselheiros de Luís XVI tentam convencer o rei a autorizar a participação do exército francês ao lado dos independentistas nos Estados Unidos. O soberano exprime preocupação com os gastos da aventura bélica. Um dos conselheiros tem a solução fácil: aumentar os impostos. Então como hoje.)

Do filme esgotam-se aqui as palavras. O cuidado da reprodução dos figurinos, o mimetismo dos gestos e das genuflexões da corte aos soberanos, os tratos de polé a que só os privilegiados da realeza tinham acesso – eis a imagem da monarquia deposta com o ataque à Bastilha, a imagem de uma monarquia que perdeu tempo e lugar. Uma monarquia que se modernizou, sinal dos tempos que corriam atrás dos céleres ponteiros do relógio, a luta da monarquia pela sobrevivência. Hoje a monarquia é diferente da de antanho. Não reclama para si privilégios imorais, um luxo que fez vir do nada um marxismo a carpir a fétida luta de classes, a opressão dos oprimidos por um escol que teve a sorte de nascer com o dom da hereditariedade real.

O fausto vertiginoso foi a tumba da monarquia francesa (como noutras paragens, que o definhamento de monarquias entrou em espiral depois da decapitação de Luís XVI e Maria Antonieta). Mas as monarquias perduram, agora modernizadas, até estendendo o tapete a membros da plebe por quem os príncipes se perderam de amores. Operação de cosmética, diria. As monarquias persistem na sua essência totalitária. Ainda estou para perceber como se explica o critério da hereditariedade como caução para a sucessão dinástica. Os apoiantes da monarquia terão a resposta na ponta da língua: é um direito natural. Não se contesta. Aceita-se como tal. É um argumento que rivaliza com exaltação da fé religiosa: acredita-se sem questionar dogmas. A síntese: somos acéfalas criaturas, formatadas para aceitar as ideias que herdámos vindas do estado natural que tudo explica.

Se os monárquicos quiserem uma ajuda, que afinem a bússola para outro quadrante. Que procurem outra justificação para o direito ao trono do filho varão quando o pai fechar os olhos pela derradeira vez. Quando se agarram à ideia do direito natural como aceitação (e legitimação) da sucessão dinástica, é argumento desprovido de substância. Argumento próprio de quem diz “porque sim”. Não é argumento.

As monarquias de hoje ganharam vergonha e não cometem os exageros da corte de Luís XVI, uma ofensa ao povo que, vistas bem as coisas, foi o que melhor podia ter acontecido aos marxistas madrugadores de então (e aos marxistas que ainda hoje existem): sem causas, perdem a razão de existir. A sua causa é a luta contra as iniquidades dos poderosos. Quando os poderosos desapareceram e eles, salvadores do povo, chegaram ao poder, foi uma monarquia sem rei que entrou nos carris. A máscara que caiu.

Por hoje, as monarquias mantêm mordomias que levitam a realeza a um patamar superior ao da plebe que a aclama endeusadamente. O rei de Espanha continua a caçar ursos pela Europa fora, onde eles existem sem estarem ao abrigo de leis feitas por verduscas personagens que protegem o urso como espécie em risco. O rei de Espanha matou ursos na Roménia. E há notícia que matou um urso embriagado na distante Rússia, quando foi visita de Vladimir Putin. Não os pode caçar nos montes perdidos das Astúrias, onde os escassos ursos que resistem são espécies protegidas. Pega nas armas e vai em busca da caça grossa em países submissos que lhe cortejam a extravagância.

A realeza esforça-se em mostrar a face modernaça. Por debaixo da (fina) camada de verniz da modernidade, a mesma monarquia de outrora. Os mesmos privilégios absurdos, a mesma diferença inexplicável entre os iluminados pelo natural direito de possuir o trono, e o resto – uma plebe que deve admiração aos membros da casa real. São religiosidades escondidas que asfixiam a autonomia do ser. Nas religiões, como nas monarquias.

23.10.06

Mesquinhez

Não sei se é da espécie humana, ou apenas idiossincrasia da portugalidade. Onde quer que a mesquinhez povoar espíritos, é uma atroz manifestação de pequenez. Faz-me logo lembrar invejosos aperaltados, auto-convencidos que são pilares da moralidade dos outros, a conjecturarem com os seus dedos carnudos e gordurosos. Afivelando juízos sobre a vida alheia. Misturando o que não pode ser misturado – vida pessoal e capacidades profissionais – numa tremenda confusão que sinaliza a pouca inteligência dos mesquinhos.

Há muitas manifestações de mesquinhez. Das que mais me inquietam, a mesquinhez destilada no trabalho. Vem a terreiro comentar facetas proibidas da vida pessoal de alguém, quando o que interessa saber é o valor da pessoa no trabalho que lhe pagam para fazer. Vícios privados são isso mesmo: privados. E se não interferem com o desempenho profissional, não podem os vícios privados – por mais tenebrosos que sejam aos olhos da sacrossanta “moral pública” – apoucar o bom profissional.

Quem se enreda nas teias da mesquinhez nem tem capacidade para discernir o mal que lhe faz: falar do que não devem, quantas vezes não conseguindo disfarçar o despeito, tem um de dois sinónimos. Ou confessam, lá no seu íntimo, que gostariam de ter a coragem de se entregarem nos braços dos dissolutos hábitos que acabam de censurar; ou são tão escassamente inteligentes que não alcançam que, ao entrar na esfera privada dos outros, abrem um precedente que pode ser perigoso para os mesquinhos de serviço: que alguém chafurde na sua vida pessoal. E às vezes os telhados de vidro deixam muita imundície à mostra. É então que a mesquinhez se desmascara. Não bastara nunca ser acto aceitável e descobre-se que os sacerdotes da mesquinhez têm pecadilhos próprios que desautorizam qualquer laivo de moralidade para os outros.

A mesquinhez é toda perfídia. Inveja recalcada. É o juízo dos outros, como se alguma vez houvesse lugar a sancionar vícios privados, néscios ou escandalosos, que os outros revelam, ou por pudor escondem. Esta é a dúvida: será traço típico da portugalidade rasteira, ou atravessa a humanidade? O pouco cosmopolitismo não deixa fazer comparações rigorosas com o estrangeiro por onde passei ao de leve. A experiência é mais loquaz no chão pátrio. Da observação dos nativos destaca-se a mesquinhez como um dos principais estorvos. De braço dado como uma indigência mental que nos remete para a habitual cauda do pelotão, quando chega o momento de tecer comparações com os parceiros da Europa próxima.

A mesquinhez é o binómio da inveja. Por exemplo, quando alguém pavoneia sinais exteriores de riqueza desconhecidos no passado, a sentença lapidar não demora: a origem dos proventos só pode ser ilícita. Soltam-se as desconfianças, feitas acusações, que terá sido um tráfico de droga que enriqueceu subitamente aquela pessoa. Que interessa se essa ostentação é passageira, um mero acesso de ambição desmedida de subir na escala social, nem que seja através de um endividamento para o abismo? Ou que a fortuna escarrapachada na cara dos demais seja uma herança avidamente estourada? Aos invejosos, que muito gostariam de ordenhar o leite de tão laudatória fortuna, custa ver que os abastados do momento passeiam a ostentação diante dos seus olhos.

É por isto que somos pequeninos. Não é a exiguidade do território, o pedaço térreo que nos acantona num cabo da Europa, que justifica a pequenez. É a pequenez mental, um torniquete que desvia as atenções do essencial para o muito acessório (que nem acessório deve ser; a mesquinhez entra no domínio do implausível). O rumo é o de uma maré errante. Altivos e convencidos que somos um juiz superior do comportamento dos outros, esquecemos pecadilhos que nos devolvem à terra. Só para que os sacerdotes da moral alheia, incrustados na malévola mesquinhez, saibam que podem cuspir no ar que o vento, esteja de feição, traz a cuspidela de volta. Tombada sobre eles mesmos.
Então a mesquinhez será, apenas, uma inútil deriva à volta do tempo que é sempre escasso. Só, e nada mais, uma perda de tempo que prolonga a indigência.

20.10.06

União ibérica à vista?


Soube-se há dias. Um inquérito a espanhóis, para saber quantos concordam com uma união com o vizinho lusitano. Quarenta e cinco por cento disseram sim. A notícia passou as fronteiras e invadiu os jornais do país que, supostamente, seria o objecto deste takeover. Uns dirão: a união faz a força; outros, que levam estas coisas da nacionalidade a peito, teriam gostado que houvesse censura. Ao menos não teriam o desconforto de tomar conhecimento de tão elevada percentagem de espanhóis que via com bons olhos um só país na península ibérica.

Algumas observações. A primeira prende-se com o rigor de tais “inquéritos”. Ficámos sem saber qual a representatividade da amostra: quantas pessoas foram inquiridas, como (por telefone? Em entrevista de rua?) e em que zonas de Espanha (só na centralista Madrid? Uma amostra de todas as nacionalidades hispânicas? Os galegos também foram incluídos na amostra? E a resposta de um galego favorável à união ibérica tem o mesmo sentido que a de um colonialista madrileno?).

Segundo comentário: não consigo reprimir um sorriso quando deparo com estes exercícios obnóxios. Devem partir de gente que parou no tempo, ou que se entretém a simular fantasias que, olhando ao tempo em que vivemos, são esdrúxulas manobras. Falta saber se há uma motivação escondida. Pode ser uma tentativa para passar lustro no orgulho nacionalista espanhol. Duvido que do lado de lá da fronteira a conjuntura exija manifestações de exaltado patriotismo. A ETA está contida, os nacionalistas catalães apenas em sonhos acreditam na independência, na Galiza estão sufocadas as tendências separatistas.

Não percebendo as razões desta lucubração iberista, suspeito que a origem esteja numa manobra fantasiosa de vetustos militares que teimam em existir (os militares e, obviamente, os seus cenários hipotéticos que têm tanta probabilidade de acontecer como as águas do Douro começarem a correr da foz para a nascente…). Como o pessoal das casernas enfrenta um necessário downgrading (sinais dos tempos), têm que se entreter com alguma coisa. Porventura ter-se-ão lembrado de esboçar tácticas de ataque ao pequenino Portugal. Para saber por onde atacar, como invadir, quanto tempo levaria a concretizar o objectivo, qual o apoio entre a população espanhola. Daí o inquérito aos residentes.

Do lado de cá, tão dependentes dos adágios populares, ainda se apregoa que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”. Ao tomar conhecimento que quarenta e cinco por cento dos espanhóis desejavam ter uma intimidade maior com os portugueses (tão grande que passaríamos todos a ter uma só nacionalidade), os patriotas lusitanos devem ter esboçado um esgar de desconforto. Felizmente não há pensamento único nestas matérias. Em vez de levar o assunto a sério – porque, pura e simplesmente, não há motivos para o fazer – ele devia ser trazido para a arena do humor. Apetece perguntar: e porque haveriam os espanhóis de querer herdar um país tão merdoso?

Os espanhóis têm problemas que cheguem. Paira o incómodo de saberem que são um país artificial, com nacionalidades reprimidas em nome de uma putativa grandeza. Têm que lidar com as ambições independentistas dos bascos, catalães, galegos – e agora até na Andaluzia e na Comunidade Valenciana começam a surgir espontâneos movimentos no mesmo sentido. Cada vez mais a Espanha é um mosaico que só se equilibra pelo espartilho que asfixia tendências separatistas. Cada vez mais se percebe que a Espanha se esboroa. Com tantos problemas, para que quer a Espanha acolher nos seus braços uma problemática Lusitânia? Com um risco adicional: como se esqueceram de estender o inquérito ao outro lado da fronteira, ficaram sem saber qual a percentagem de lusitanos a favor da incorporação do seu país na grandiosa Espanha. Arriscavam-se a despertar um pequeno gigante adormecido, um herdeiro do valente Viriato. Eles perceberão que os custos não compensam o egrégio intuito de estender a Hispânia a todo o território peninsular.

Descansem as almas atormentadas com os quarenta e cinco por cento de espanhóis que não se importavam de aglutinar o pequeno Portugal. Para tão exaltados patriotas, o reconforto de saberem que a odiada União Europeia serve para impedir estes takeovers hostis de países. Males que vêm por bem.

19.10.06

Da mentira em política


O que acontece quando mentimos no trabalho? Pensemos numa mentira das grandes, daquelas que desgostam o chefe, ao ponto de se turvar a relação profissional. Vamos até supor que a mentira é tão grave que o chefe instaura um processo disciplinar. Cenário imaginado: alguns dias de falta ao trabalho com a desculpa de uma doença que fez acamar. A verdade seria outra: um colega de trabalho – que, para desdita do aldrabão, nutria uma antipatia doentia – teria visto o mentiroso de barriga para o ar numa praia do sul de Espanha. Adivinha-se o desfecho: a mentira tão descarada iria abrir a porta da saída, o convite ao desemprego. A mentira não compensou.

Continuemos a romancear. O nosso mentiroso encontrou supremo incentivo para a patranha. Uma escultural e jovem mulher que o faria recuar à juventude impulsiva. Tentara-se por uns idílicos dias de vida paralela. Lá em casa, teria dito à consorte legítima que ia em trabalho para o sul de Espanha. Umas reuniões muito importantes – para a empresa e para ele; corresse tudo bem, fechassem os negócios esperados e uma promoção estaria à espera. Para seu azar, o denunciante da mentira teria uma irmã que era amiga do peito de uma prima da filha mais velha do ardiloso. De palavra em palavra, dias depois do despedimento a bomba rebentara lá em casa. A mulher em prantos, incrédula por o amado marido ter sido capaz da traição. Esperavam-no algumas malas com roupas à porta de casa. E a voz condoída da mulher: “terás notícias do meu advogado”. A mentira não compensara.

Estouvado, prometera uma semana de sonho à oportunista amante. Hotel de cinco estrelas, restaurantes dignos da realeza árabe que se passeia pelo sul de Espanha. Na despedida da frenética semana que lhe trouxera uns resíduos de extravagante vida paralela, as hormonas frementes conduziram-no a uma ourivesaria. Havia que presentear a jovem amante com uma esplendorosa peça de joalharia. Todos os luxos pagos com o cartão de crédito. Tinha folga orçamental, prometida que estava uma promoção que traria um generoso aumento de proventos. O despedimento que puniu a mentira deixou-o desprevenido. Sem aumento, sem sequer ter um rendimento, e tanto dinheiro para pagar no mês seguinte quando chegasse a factura do cartão de crédito. Estava desgraçado. Só então percebera: o abismo da mentira colocara-o no cadafalso.

Mas há mentiras contadas por mentirosos compulsivos que passam incólumes. Andam a mentir meses a fio, a fazer promessas repetidas à exaustão – de que farão isto ou aquilo, ou que nunca farão aqueloutro. Chega o dia em que anunciam, com a exigível circunspecção, que as promessas tantas vezes solenemente marteladas eram mentiras. As acções desmentem as promessas. E surgem com desfaçatez a anunciar a mentira. Como se ela não fosse sequer mentira. Algumas vezes têm o desaforo de negar que tenham feito aquela promessa. Os registos do que disseram e escreveram são revisitados com a ajuda da retórica distorcida, que procura dar um novo sentido ao afirmado no passado. É a mentira elevada ao quadrado.

Estes mentirosos compulsivos mentem e prosseguem o seu caminho, orgulhosos com o que fazem, ainda que defraudem um público que os colocou no poder mediante as promessas agora incumpridas. É o expoente máximo da mentira, a deslegitimação de quem assim se comporta. Com a gravidade de serem pessoas que têm o nosso destino nas mãos. Às vezes contam com o beneplácito de uma imprensa amestrada, que assobia para o ar enquanto o cortejo de mentiras passa debaixo dos seus olhos. Para seu desgosto, a sociedade civil não adormece. Há quem esteja vigilante e denuncie a mentira que devia destruir a base de confiança entre os governantes mentirosos e o público, sobretudo aquele público que neles depositou a confiança.

Lamentavelmente, na política a mentira compensa. Não há despedimentos dos mentirosos, tão apegados ao poder que nem com mil descaradas mentiras têm a hombridade de se afastarem. Recusam-se a admitir a mentira, num redobrar de desaforo que repugna. Um mandato de confiança, que leva à vitória em eleições, liquefaz-se com a sucessão de mentiras. O que traz outras interrogações: quando prometiam teriam consciência que essas eram promessas faraónicas, impossíveis de cumprir? Nesse caso, a gravidade da mentira cresce de intensidade: mentiam à partida, taparam o sol com a peneira aos crédulos que os escolheram. Outra possibilidade: só mais tarde perceberam que era impossível cumprir as promessas? Sintoma de irresponsabilidade, de mão dada com a incompetência que mostra o desmerecimento para governar.

O contexto para o final: um primeiro-ministro triunfante, sempre senhor das suas certezas, arrogante para quem o ousa desafiar, que repetiu à exaustão: as SCUT nunca teriam portagens. Repetiu-o antes de ser eleito, fez disso bandeira da campanha eleitoral. Repetiu-o várias vezes já na veste de primeiro-ministro. Agora que o seu enorme ego se apraz com a anestesia colectiva revelada pelas sondagens (a sua imagem é excelente, vá-se lá perceber porquê), há que aproveitar o embalo e descaradamente mentir: as SCUT em volta do Porto irão ter o ónus das portagens. Curiosamente, não vi nenhum amestrado jornalista a incomodar sua excelência com a pergunta sacramental: porque mentiu, senhor primeiro-ministro?

17.10.06

A corrupção está na moda!


Todos nós, sem excepção, participamos em maior ou menor grau em actos de pequena ou média corrupção. A coisa entranhou-se de tal forma na vida portuguesa, colou-se-nos de tal forma à pele que temos tendência a considerar que faz parte (da vida).” Rui Pego, Domingo, 15.10.06.

Sua excelência o inquilino de Belém pauta a agenda. Imagino o outro inquilino poderoso – o que decidiu não habitar o Palácio de S. Bento, a infalível e sebastiânica personagem que nos veio salvar do poço sem fundo – a destilar raiva e inveja. Vendem-nos a imagem de uma coabitação pacífica entre os dois esteios do regime dos dias que correm. Chamem-lhe “cooperação estratégica” ou qualquer outro eufemismo, suspeito que o primeiro-ministro deve andar nervoso com o protagonismo da figura presidencial.

Bastou o presidente ter feito um discurso sobre a corrupção e o tema passou a ser a prioridade das prioridades de toda a classe política. Que melhor beija-mão sua excelência podia desejar? De uma ponta à outra do espectro, é só consensualidade. Como se alguém tivesse descoberto a pólvora. Eis como, parafraseado o título deste texto, a corrupção passou a estar na moda. Entenda-se: não a corrupção, mas o combate a este fenómeno que nos mergulha num atraso terceiro-mundista.

O presidente da república deu o lamiré para profusas análises do fenómeno. Esta será mais uma. Entre os comentários publicados, destaco o que dá o mote ao texto de hoje. A ideia de que a corrupção, pequena ou grande, está entranhada. Como se fosse um diadema que nos enfeitiça, ou a varinha do prestidigitador que hipnotiza quem lhe aparece pela frente – e seremos todos, nesta versão apocalíptica –, sem que nada possamos fazer a não ser dar conta, quando acordamos, que estamos enleados na teia.

Discordo do diagnóstico. Não creio que haja lugar a tanto catastrofismo. No mesmo registo, Vicente Jorge Silva exemplificava há dias, no Diário de Notícias, que somos corruptos quando damos a “moedinha” ao arrumador. Se dou uma moeda ao arrumador no parque de estacionamento, estou a corromper alguém? Estarei a ser corrompido pelo arrumador? Posso-o fazer: a) por temer que, caso contrário, é maior a probabilidade do meu automóvel ser danificado (um simples cálculo económico: uma moeda de cinquenta cêntimos pode-me poupar centenas de euros); b) porque o arrumador não é andrajoso, é amigável, ou até é mal enjorcado, mas não me interessa saber se ele vai usar o pecúlio para droga, para ir ver um jogo de futebol, para se alimentar, ou para saciar outros vícios privados inconfessáveis. Não estou a comprar um favor que entre no domínio do ilícito ou do imoral. O que não empurra este acto para o terreno da corrupção.

Já a citação de Rui Pego faz mais sentido, se for descontado o exagero da generalização. Quem não conhece a famosa “cunha” que move montanhas e faz mãos hesitantes assinarem decisões que, de outro modo, ficavam adiadas para as calendas? Quem não foi testemunha, ou conhece histórias, de pequenos empurrões que desbloqueiam decisões? Quem nunca ouviu a expressão “tudo se arranja”? Quem nunca foi confrontado com listagens feitas à base dos favores pedidos pelos interessados, quantas vezes relegando para o fim da lista os que deveriam ser escolhidos caso o mérito fosse o critério de eleição? Sim, esta corrupção que não se paga em dinheiro. A pequena corrupção, sintoma do indisfarçável nivelamento pela mediocridade. O reino dos favores que se fazem hoje para serem compensados algures no futuro. O deplorável estado de coisas, que, concordando com Rui Pego, “colou-se-nos de tal forma à pele que temos tendência a considerar que faz parte (da vida).

Como se tudo isto não bastasse, há ainda o efeito de contágio: os que teimam em ser ingénuos começam a perceber que os espertos passam à frente. Incomodam-se, sentem-se injustiçados. Aí é grande a pulsão para entrarem no mesmo jogo pérfido. É como um tenebroso vírus que não tem antídoto. Olhamos em volta e tudo nos cheira a este modo de actuar. Nos dias que correm, já nem sequer se consegue discernir com lucidez quando passamos a fronteira e entramos na câmara escura da corrupção. É mais isso que me inquieta: a incerteza do diagnóstico quando olhamos para o espelho em busca de borbulhas de corrupção que desfeiam a consciência. Às vezes, não temos a noção se aquela borbulha é sintoma de corrupção ou de qualquer outra disfunção.

Esta incerteza é mais doentia que a corrupção.

16.10.06

Como germina um anarquista (ou como se perdeu um valor para o futebol por alergia aos homens do apito)


Era miúdo. Diziam que tinha jeito para o futebol. Houvesse espaço para o jargão dos catedráticos da bola, dir-se-ia: técnica apurada, cultura táctica acima da média. E, contudo, o acaso quis que se transviasse a carreira a dar pontapés na bola e nos adversários. Porque a adolescência jorrou para a superfície um cocktail explosivo: mau feitio e uma curiosidade intelectual pela desarmonia da ordem, os ingredientes fatais para não suportar injustiças do apito arbitral.

Há mais de vinte anos, os alísios da corrupção no futebol caseiro traziam um odor fétido à modalidade. Ainda a personagem que hoje, mais de vinte anos depois, continua a ser central para a polémica que vai arrefecendo, à espera que as suspeitas levantadas por escutas telefónicas sejam, afinal, produto de uma colectiva alucinação auditiva. Recuo no tempo. Por muitos campos de futebol, o erro dos árbitros não era mero erro: notava-se intencionalidade. Nos torneios juvenis em que entrei, sempre tive uma tremenda dificuldade para aturar o amadorismo dos castiços que se chegavam à frente para arbitrar jogos.

Lá saltavam das imediações, com o fato de treino colorido a amparar a pança avantajada. Assim que metiam o apito à boca, transfiguravam-se. É da essência humana: há quem não saiba deter o poder, nem exercê-lo, sem dele abusar. Há pessoas adoráveis que se perdem com o (mau) exercício do poder. Provam, dessa forma, que não estão fadadas para ter poder nas mãos, por pouco que seja. Aqueles sucedâneos de árbitros que se ofereciam para apitar jogos em torneios amadores eram acometidos pelo complexo da farda. O contágio era oferecido pelo apito e pelo jogo de cartões (amarelo e vermelho) que pouco tempo repousava na algibeira.

Nem era tanto a falta de conhecimento das leis do jogo que apoquentava. Era mais a arrogância com que passeavam os corpos gelatinosos, decidindo aleatoriamente, prejudicando uma equipa e depois compensando-a logo a seguir com outro erro, ainda maior, que penalizava o adversário. E a sanha persecutória contra alguns praticantes, que subitamente entravam no viveiro dos odiozinhos de estimação. A sinfonia de erros só terminava quando já não havia mais tempo para se jogar. Pelo caminho ficava uma série interminável de equívocos que ia esgotando a paciência dos jovens entretidos a tentar ganhar o pleito. Não fosse suficiente ter que derrotar a obstinada teimosia do adversário, que não deixava entrar a bola na baliza, ainda havia o homem do apito que ia estorvando o suor vertido.

Os amadores castiços que se prestavam a um inestimável favor de arbitrar a peleja eram o paradigma das decisões erradas: apitavam quando não deviam e ofuscava-se-lhes a vista perante infracções grosseiras. Assisti de tudo um pouco, fosse a favorecer ou a prejudicar a equipa em que participava. Os cartões que sancionavam faltas mais duras ou a impertinência verbal dos praticantes eram outra ilustração do incontido prazer com que estes amadores celebravam o fugaz poder. O complexo da farda em todo o seu esplendor. Era um desfile de cartões amarelos e vermelhos, que saíam da algibeira do ignorante com uma velocidade atroz.

Foi um episódio com cartões que me fez voltar as costas a este desporto. Tendo cometido uma falta banal no meio do campo, o esboço de árbitro apitou com estridência e acercou-se, autoritário, com o cartão amarelo agarrado pelos dedos sapudos, quase a entrar pelos meus olhos. Sem perceber porque estava a ser sancionado, disse-lhe que não via razão para o cartão amarelo. De forma educada, sem levantar a voz ou esbracejar voluptuosamente a indignação. Sem soltar uma palavra, a resposta veio da algibeira: o cartão vermelho empunhado na mão direita, enquanto a esquerda apontava na direcção da rua. Atónito, percebi que não valia a pena entrar em diálogo com a personagem. Só é possível dialogar com que tenha os neurónios no sítio. Foi a última vez que entrei numa partida arbitrada por um homem do apito.

Às vezes interrogo-me se não terá sido nesse momento que começou a geminar o anarquista que há em mim. Daí em diante, incomoda-me qualquer abuso de poder, seja onde for – no governo, onde são usuais, num salazarismo loquaz que não se desprende de quem ocupa o cadeirão do poder; na bazófia policial, quando os senhores agentes não hesitam em ostentar a farda como sinónimo de autoridade, sendo os súbditos educados para obedecerem caninamente à autoridade; até no trabalho, onde empertigados senhores e senhoras, embriagados com o poder, gostavam de o alardear.

(Adenda: talhado à medida deste texto, o seguinte episódio que acabo de testemunhar. Escondido na escuridão da madrugada, um carro da polícia estacionado em cima do passeio, mesmo ao lado de uma caixa Multibanco. Um senhor agente, preguiçoso, decidiu que essa era a melhor maneira de levantar dinheiro. De seguida arrancam, passando à minha frente – quando o semáforo havia passado para verde para quem vinha do lado em que eu estava. No semáforo à frente, viram à direita sem accionarem o pisca-pisca (quem vinha atrás que adivinhasse para onde eles queriam ir…). O que me acontecia se os questionasse pelas infracções que tinham cometido em tão curto espaço de tempo? Aposto que era detido por “desrespeito à autoridade”…)

13.10.06

Afinal, elas também são fúteis

A publicidade é um terreno fértil para o comentário. Já algumas vezes escrevi sobre campanhas publicitárias – no insólito, no imaginativo, no absurdo, no patético, ou como a publicidade é um veículo maior da tendência para coisificar o corpo humano. Sobretudo o corpo da mulher, o que tem dado azo a protestos exaltados de uma coligação contra-natura: igreja promotora dos bons costumes e feministas heterodoxas indignadas com a desvalorização da mulher, que aparece como um mero corpo para apropriação dos prazeres masculinos.

Como publicidade é inovação, parecem soprar novos ventos – decerto do agrado da fobia igualitária das feministas. A OK Teleseguro está a divulgar um produto novo: o seguro automóvel para mulheres. Quando a campanha foi apresentada pensou-se que seria uma maneira de proporcionar vantagens para quem paga mais dinheiro pelo seguro automóvel. O senso comum aponta para a aselhice congénita do sexo feminino quando toma conta do volante. Sei como esta afirmação contraria os cânones do que pode ser dito em público. Mais ainda porque há estudos, divulgados na imprensa, que desmentem as convicções formadas na voz do povo: no fim de contas, em média as senhoras pagam seguro automóvel mais barato que os homens. Afinal eles são mais aselhas na estrada!

Talvez para as compensar – libertando-as do libelo acusatório de que não possuem destreza ao volante; e para não as fazer pagar pelos descuidos dos homens – a OK Teleseguro inventou um seguro só para elas. A publicidade teria que as seduzir para o produto feito especialmente à sua medida. O spot é a inversão de tudo a que estamos habituados no reino da publicidade. São vulgares os anúncios que usam o corpo da mulher para aliciar homens salivantes a comprarem produtos tão diferentes, apelando a uma brutificação da mensagem e do destinatário. Até que um criativo na agência de publicidade terá pensado: e as mulheres também não têm as suas fantasias? O corpo do homem não pode ser objecto dessas fantasias?

Eis os ingredientes para o reverso da moeda: à coisificação do corpo feminino, a resposta à altura com a coisificação do corpo masculino. Afinal elas, atraídas pelo anúncio, também idealizam o corpo masculino como o estereótipo dos vários corpos que desfilam no spot da OK Teleseguro. Ele é o mecânico debruçado sobre o automóvel na oficina, o rapaz da empresa de entregas urgentes de encomendas ao domicílio, o canalizador que salva as donas de casa de sarilhos com os canos da água que decidiram deixar de colaborar. Todos eles corpos musculados, os bíceps, triceps, peitorais e demais musculatura bem constituída, tudo bem preenchido com bronzeado artificial, mais as melenas efeminadas. E a libido feminina excitada no desfile dos corpos dos modelos que – aposto – estão muito próximos da acefalia.

As senhoras excitadas provam que são iguais aos homens que não resistem a olhar para uma mulher esplendorosa. Elas também idealizam a metade restante do par perfeito. Nada de neurónios, que o que interessa é a musculatura avantajada, de preferência despida de pilosidades (que os metrossexuais estão na moda). Nem que se perceba que os modelos recrutados para o anúncio da seguradora devem ter gasto horas e horas de película, incapazes de sequer lerem as poucas palavras que tinham que balbuciar. Até que se revela a conclusão: afinal elas também coisificam o corpo masculino.

Nada me repugna na campanha que usa o corpo do homem para atrair as condutoras à contratação do seguro especialmente talhado para o sexo feminino (para além do que ficou dito). Só que se desfaz um mito, o do império do corpo feminino como alvo da embrutecida coisificação promovida por homens insensíveis, egoístas, apenas entregues ao império dos seus prazeres carnais. Elas denunciam a bestialidade masculina – “os homens são todos iguais”, perdem o juízo quando lhes passa pela frente um rabo de saias –, mas afinal também se deixam levar pela tentação das suas fantasias escondidas. Perdem a moralidade para apontarem o dedo aos homens que coisificam o corpo das mulheres.
Tudo isto acontece para gáudio das feministas, que por fim provam o adocicado sabor da igualdade de sexos. E para angústia da beata igreja, que percebe que há cada vez mais ovelhas tresmalhadas, entregues nos braços da demoníaca tentação carnal.

12.10.06

“Grandes portugueses”: Manuel João Vieira



A RTP, convencida do seu estatuto de “prestadora de serviço público”, tomou uma iniciativa que puxa o lustro à exaltação patriótica. Um gigantesco inquérito público, para saber quem foi a personalidade histórica que mais se destacou.

Haveria reticências de método a assinalar: uma consulta pública que permite ao público votar através da Internet levanta suspeitas acerca do rigor dos resultados. Por um lado, porque posso ir ao site da RTP e votar quantas vezes quiser no meu “herói” preferido. Segundo, o concurso presta-se a resultados falseados se muitos brincalhões entrarem no site e começarem a dar respostas disparatadas, boicotando a medida. Além do mais, é o próprio princípio que levanta interrogações: o mau gosto de organizar uma competição que procura saber quem, entre a gesta de “heróis nacionais”, é o herói supremo, uma espécie de campeão nacional de todos os tempos. Como se esse exercício simplista fosse rigoroso; como se o povo tivesse conhecimentos da História para se pronunciar.
Na televisão pública passam spots a sensibilizar a população para dar o seu contributo. Ora vemos varinas a destilar vastos conhecimentos históricos num qualquer mercado do Bolhão, ora apanhamos com petizes em sala de aula entretidos numa discussão de especialistas, ora somos testemunhas de uma bravata entre os comensais amesendados num qualquer restaurante lisboeta. Em todos os casos, divagando sobre as personalidades que mais se destacaram no lastro histórico deste grandioso país.

Dou uma espreitadela no site dedicado ao concurso (disponível em http://www.rtp.pt/wportal/sites/tv/grandesportugueses/bio_resultados.php). Há lá nomes que me são estranhos: Catarina Eufémia, João Domingos Bomtempo, Ribeiro Sanches, Wenceslau Moraes, só para citar alguns. Outros nomes aparecem, surpreendentes, não só por serem contemporâneos, mas pelo contributo pífio (nuns casos) e duvidoso (noutros) para sermos o que somos: Álvaro Cunhal, António Guterres, António de Oliveira Salazar, Francisco Costa Gomes, Jorge Sampaio, José Mourinho, Mário Soares, e, para cúmulo da asneira, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves. A inclusão de personalidades vivas pode influenciar o sentido de voto: o povaréu estará inclinado a votar em personagens mais familiares por serem seus contemporâneos. Corre-se o risco de não fazer justiça a personalidades históricas, mortas há muito tempo, que tiveram mais importância para chegarmos ao que somos hoje (e quando uso esta expressão – “sermos o que somos hoje” – interrogo-me se lhes devemos alguma coisa, ou se não seriam merecedores de apedrejamento público…).

Não me passa pela ideia embarcar em iniciativa tão patética. Porque a acho bizarra, sem rigor, apelando à participação populista de um povo impreparado para dar resposta acertada (devido ao desconhecimento da História). Com tantos lapsos, a iniciativa está fadada para produzir resultados enviesados. Depois, porque não considero a existência de heróis. E, por fim, porque se fizesse um esforço para escolher uma única personalidade que se tenha destacado entre as demais, essa seria uma tarefa impossível: se o fizesse estaria a sancionar a absurda ideia de que o esforço de tal pessoa foi a alavanca que permitiu elevar a grandeza deste país no horizonte da História da humanidade. Seria considerar que o que somos hoje é o produto de um esforço singular, como se sucessivas gerações não tivessem (para o bem e para o mal) cimentado um passado que chegou até ao presente.

Como se todas estas razões não bastassem, há outra que mata à nascença a iniciativa: procuro e procuro entre os nomes listados e não encontro Manuel João Vieira. Esse ícone da cultura nacional, poeta sublime, artista de várias artes (música, letras, pintura), político em potência, senhor de uma franqueza desarmante. Manuel João Vieira – ou um dos seus alter egos, o que o coloca à altura de um Fernando Pessoa e seus heterónimos – diz-nos o que andamos a balbuciar em surdina, ou em roda de amigos, mas que o recato impede de proferir em público. Vai às raízes mais profundas do sentir popular, no democrático pulsar de camionistas e trolhas, com a coragem de um discurso politicamente incorrecto ao fazer chacota de homossexuais (coisa proibida nos dias que correm, como se o respeito pela sexualidade alternativa proibisse a chacota a quem não se revê na homossexualidade).

E se Vieira – o Lello Minsk, ou Lello Cantor, que salta dos Enapá 2000 para os Irmãos Catita e para os Corações de Atum – não aparece na galeria dos ilustres ao lado de Soares, Cavaco, Sampaio, Cunhal e – pasme-se – Otelo e o camarada Vasco, então não somos dignos de o ter como figura do escol lusitano. Injusto não reconhecimento de alguém que, em vinte anos de carreira, produziu o dobro do que David Fonseca, ou Represas, ou Rui Veloso (estes dois na condição de “cantores do regime”) não seriam capazes de produzir acaso vivessem quinhentos anos.

11.10.06

E se os deputados se drogassem?


Tem dado brado a trapaça metida a um grupo de deputados italianos por um programa televisivo sensacionalista. Conseguiram convencer oitenta deputados a passarem por um teste que recolhia células sudoríferas, passando um lenço pela iluminada testa de suas excelências. Não me apercebi do pretexto apresentado pelos responsáveis do programa. Tenho a impressão que era um teste para avaliar o grau de stress dos parlamentares pelo desempenho de tão sufocantes tarefas.


Tudo não passava de um embuste. Os deputados caíram, que nem patinhos, na ratoeira. A recolha de resíduos de suor tinha outro propósito: saber se havia representantes do povo que caíam na tentação de consumir estupefacientes. Queria-se saber qual o estado alucinatório dos lídimos representantes populares. Só para aquilatar se o povo está em boas mãos. A surpresa estava reservada para o final. Sem revelar os nomes dos transgressores, vinte dos oitenta deputados revelaram vestígios de marijuana, cocaína e outras substâncias proibidas. Vinte e cinco por cento da amostra!


O escândalo rebentou. As boas consciências interrogam-se como é possível que vinte e cinco por cento dos deputados italianos façam o que é reprimido ao comum dos mortais. Os mais moralistas indignaram-se: há poucas semanas o parlamento italiano aprovou, por larga maioria, uma lei que intensificou as sanções para quem seja apanhado a consumir drogas duras. Em alguns dos deputados que passaram pelo teste da esfregona sudorífera foi detectada cocaína, uma droga dura.


Também é possível olhar para o escândalo por outro ângulo. Sublinhando que ninguém tem o direito de interferir na vida privada, nem mesmo de figuras com tanta exposição pública como suas excelências os deputados. Não fará sentido alegar que devem dar o exemplo, como representantes do povo que são. Ainda que carreguem este fardo, a sua intimidade não pode ser devassada apenas porque aparecem sob as luzes do néon.


Fossem os italianos dados à enxurrada de aforismos populares lusitanos e seria caso para sentenciar: “no melhor pano cano a nódoa”. Só havia duas hipóteses de reparar os danos: ou os infractores, num acesso de honestidade, renunciavam ao cargo; ou o parlamento interiorizava a incoerência de acolher no seu seio pessoas que praticam o consabido “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço” e, acossado por imperativos de frontalidade, legislava a liberalização das drogas.


De repente dei comigo cercado por uma fantasia: e se houvesse deputados portugueses apanhados nas malhas dos estupefacientes? E se um programa sensacionalista de uma das televisões lixo apanhasse os deputados numa armadilha semelhante? Eles e elas (ou elas e eles, para usar uma linguagem politicamente correcta) oferecer-se-iam, com um sorriso ao canto da boca, para depositar umas células de suor num lenço. Dir-lhes-iam que era para avaliar o muito stress que os parlamentares sofrem. Para provar que a ideia dominante entre o povo – os deputados trabalham pouco – é uma falácia. De caminho, restituir a grandeza ao parlamento, ele que anda pelas ruas da amargura, os deputados sentindo que são tão desrespeitados.


Tal como em Itália, os resultados seriam divulgados sob anonimato. Para não revelar as identidades das senhoras e senhores que se deixam contaminar pelo pecaminoso acto das substâncias ilícitas, entregues nas maravilhas alucinogénicas que proporcionam. Alguém conseguiria furar o segredo. Num qualquer jornal sensacionalista sem pudor, daqueles que não olham a meios para espalhar sangue pelos leitores tão ávidos de sarrabulhos deste género, seriam dados à estampa os nomes dos deputados com vestígios de drogas, leves e duras.


Entretenho-me a imaginar. À dócil Maria de Belém, traços de marijuana. Ao poeta Alegre, vestígios de Viagra (a idade não perdoa, e a libido ainda não ficou engavetada num estado vegetativo). Em Mendes Bota, o multifacetado deputado algarvio do PSD (político, empresário, ex-poeta e ex-cantor popular), indícios de cocaína. E Nuno Melo, essa grande promessa da direita trauliteira, vestígios de LSD e ecstasy, pois a noite ainda é o altar sagrado que nem o avanço da idade consegue apagar. A “muito querida” Joaninha Amaral Dias passaria incólume no detector de estupefacientes. E até o jovem Bernardino do PC, esse expoente máximo da democracia caseira, daria zero no teste do suor.


É claro que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Quem poderá censurar um acto de criatividade?

10.10.06

Pela boca morre o peixe


Há assuntos que os devotos servos do catolicismo beato se deviam escusar a comentar. Não sugiro que lhes seja retirado o direito de opinião, que isso roça o estalinista arbítrio que o lamentável registo histórico não deixa cair no esquecimento. Sugiro, apenas, recato. Que tenham pudor de lançar despautérios para consumo público. Quanto mais não seja, para não se entregarem nos braços do ridículo. (Fico perplexo com esta cândida preocupação com as beatas personagens que trajam sotainas nas suas cabeças. Até parece que estou aqui como substituto de consciências que perdem o norte quando, de sangue fervente, discorrem sobre temas que pisam as suas convicções.)

Ontem, no Público, Mário Pinto era exemplo vivo de como o sangue fervente tolda o discernimento. Talvez sem o desejar, ofereceu de bandeja aos seus rivais “anti-abortistas” o maior dos trunfos para o referendo que se espera lá para Janeiro. Tão patética foi a argumentação usada, tanta a desorientação mostrada. Tanto o afã em denunciar as incoerências dos “anti-abortistas”, que nem deu conta de como caiu nas maiores contradições.

A leitura da prosa captou-me a atenção pela chicana intelectual: “A mim, o que mais me impressiona é a falta de argumentação dos defensores da liberalização do aborto, reduzida propagandisticamente ao argumento grosseiro da propriedade do corpo da mulher e aos riscos de saúde de quem comete o crime forçosamente na clandestinidade. Sempre o absoluto direito de propriedade a servir o egoísmo! E contudo, o aborto é primacialmente a questão da autonomia do filho. Será por isso que sobre o filho não gostam os abortistas de falar?

Primeiro reparo: não sabia que os fiéis seguidores da ortodoxia católica eram agora grandes adversários dos direitos de propriedade. Mário Pinto deixou-se seduzir pelos ventos da colectivização, subitamente saudoso dos idos do PREC onde as nacionalizações eram feitas em nome dos interesses do povo? Há estranhas alianças que se revelam com a passagem do tempo. Ou com o oportunismo das argumentações tresloucadas. Segunda observação: era bom que Mário Pinto percebesse que o feto não tem autonomia, nem vontade própria, enquanto estiver no ventre da mãe. Se os menores de idade não têm capacidade para praticar determinados actos, e essa incapacidade é ultrapassada pela vontade dos progenitores, o mesmo raciocínio rejeita a pergunta de retórica do cronista. Não vejo como pode o feto exteriorizar a sua vontade.

Os nacos de prosa deliciosos sucedem-se: “Esconder, fazer evaporar a vítima do crime, é tão importante que se faz tabu de mostrar as técnicas do aborto e os restos mortais do embrião, do feto abortado. Qualquer pessoa razoável poderá então interrogar-se: mas porque é que se não hão-de mostrar-se as técnicas do aborto? E até os embriões e bebés abortados?” Eis-nos chegados ao domínio do atroz. Porventura aos dedicados servos da causa anti-aborto o macabro desfile de embriões retirados do útero apazigúe a consciência. Porventura por acreditarem que essas imagens lúgubres vão engrossar as suas fileiras. Nem que seja um acto execrável, mostrar fetos cadáveres. Nem que seja espezinhando a dignidade dos mesmos fetos que eram, parágrafos antes, sujeitos de direitos reivindicados pelo cronista. Será Mário Pinto espectador assíduo do lixo que infecta a televisão?

A cereja que embeleza o artigo de opinião estava reservada para o final. Uma saída em grande. Mário Pinto tenta descobrir as razões que levaram a modernidade a ser condescendente com as práticas abortivas. Qual prestidigitador, descobriu a pista para o enigma: um relatório datado de 1974, conhecido como Relatório Kissinger, sobre “as implicações do crescimento da população mundial para a segurança dos Estados Unidos e para os seus interesses nas relações internacionais”. Aqui fica a ilação de Mário Pinto: a voragem abortista que perverte a sociedade ocidental fica-se a dever à “revolução de mentalidade e de cultura, por um lado, e à globalizada campanha internacional contra o crescimento da população por razões de hegemonia geopolítica, por outro lado” (destaque meu). Soltem-se os pontos de exclamação. E os que estão do outro lado da barricada (na questão do aborto) enchem-se de contentamento ao receberem, de braços abertos, Mário Pinto entre a trupe que, sempre de olhos fechados, inculpa os Estados Unidos por todos os males do mundo contemporâneo.

Neste assunto, custa-me estar ao lado das esquerdas folclóricas que já festejam antes do tempo a vitória do referendo agendado. Não gosto de estar mal acompanhado. Mas ao ler o bafiento e intelectualmente desonesto artigo de Mário Pinto, a primeira coisa que me apetece fazer é entrelaçar braços com a esquerda folclórica na primeira manifestação de rua a favor do aborto.

9.10.06

Medo da morte



A televisão mostra imagens de uma insólita exposição de fotografia. Dois fotógrafos alemães tiraram centenas de fotografias a doentes em fase terminal. Conviveram com eles, todos sabendo que havia pouco tempo a separá-los do suspiro final. E depois fotografaram-nos nos instantes imediatos à morte. Imagens de cadáveres frescos, uma tranquilidade assustadora exalando das suas faces inexpressivas. A fotógrafa diz que as pessoas têm medo de morrer. Sobretudo quando sabem que a morte se anuncia, breve.

A fotógrafa relatava a sua experiência com todas aquelas pessoas que abriram as suas sofridas vidas para a câmara fotográfica. Conta como algumas dessas pessoas fizeram dos fotógrafos confidentes finais, como se fossem os sacerdotes que estavam a prestar a extrema-unção. Conta como tiveram que ser psicólogos de pessoas acamadas num leito que haveria de ser o seu leito de morte. Conta como se sentia metida num turbilhão de onde só conseguia escapar com a necessária pedagogia da natureza. Dizia-lhes, “porque todos havemos de morrer um dia”.

Que palavras tão assustadoras. A morte é um não acontecimento para um agnóstico. Perdido na amargura da fé desencontrada, o agnóstico sabe que a morte física é um ponto final na existência, diria absoluta, de qualquer pessoa. Há os crentes de fés que ensinam a existência de uma redenção post-mortem, houvesse um delicado arcanjo que viesse levitar a alma para um céu repousante, onde a alma vive eternamente. Há os que cultivam a crença na reincarnação (e como a ideia é em si assustadora: só de pensar no que cada um de nós vai reincarnar, sabe-se lá que vida de sofrimento, sabe-se lá que desvario de maldades, sabe-se lá o que mais estaria destinado embarcasse na nau da reincarnação).

E depois há os outros, almas penadas que vagueiam na escuridão espiritual. É a esses que o suspiro final simboliza o ponto final sem parágrafo. A derradeira página de um livro que tomba da estante e se perde num buraco negro, o da inexistência. Já não é como a dimensão celestial, onde podemos vigiar os entes queridos que ficaram vivos a chorar a nossa perda. Nem a esperança de que os dados voltem a ser jogados e nova personalidade nos calhe em sorte, ou em azar. É apenas um vazio inquietante, uma luz que se apaga, definitivamente. A natureza assim o impõe, e não há maravilhas da ciência que tenham trazido a perenidade da vida. Mas é nestas alturas que idealizo uma vida eterna pelo receio do buraco negro que se instala com a morte.

As mortes são choradas pelos que vivem a felicidade de as poder chorar. Por permanecerem vivos, mesmo que venham a suportar a dor imensa da perda. Há mortes providenciais, quando a vida é consumida por doenças que semeiam um terrível sofrimento. E quando se sabe que a medicina não acalenta curas, desenganadas almas entregues nos braços de uma ave agoirenta que afasta dúvidas da sentença final. São as mortes tragicamente necessárias. Fora destes casos, a morte é um manto iníquo que a natureza abate sobre os comuns mortais. A tentação da nossa fraqueza, vidas tão frágeis presas por dóceis cordéis à fonte que as mantém acesas. E, no entanto, quanto é o tempo ocupado a desalinhar as nossas próprias vidas, como se desconhecêssemos que elas são sempre, sempre, breves.

O rosto efémero da vida tem na morte a sua traição suprema. Vêm à memória alguns dos rostos imperturbáveis de vidas levadas pela morte, desnudados naquela exposição. Um paradoxo, na tranquilidade que mostram instantes depois de as vidas se terem esvaído, dobradas pela morte. Será por isso que a fotógrafa, na sua pedagogia anómala junto dos doentes prometidos à morte, lhes dizia, como se os sossegasse, que toda a gente morre? Vivemos; rimos, choramos, esboçamos sofrimento quando a vida se depara com sobressaltos, ou aquele ar de comprazimento quando a felicidade se demora. Esgares que mostram sentimentos, o fruto maior que brota da árvore da vida. Tudo se perde, as coisas boas e as coisas más, quando a morte toma conta do terreiro. E nem a exasperante acalmia dos rostos falecidos me convence que a morte não é a terrível sentença que nos desliga do que somos e dos sentimentos.

Resta não ocupar o sempre escasso tempo da vida a interiorizar os dilemas da morte. Ou fazer uma oportunista reconversão a um credo que aquiete o espírito intraquilizado pelas reflexões sobre a morte. Ou, o que é mais compensador, abrir os braços à vida e sugá-la em tudo o que ela possa dar, no bom e no mau. Na certeza que pior que a morte não será.

6.10.06

Coisas que faltam: o direito constitucional à delinquência


Esta terra não será próspera enquanto não for consagrado o direito ao crime. Não será uma terra justa enquanto o crime não puder ser cometido pelos desafortunados de berço sem que sejam perseguidos pela pandilha da polícia e dos tribunais. Só seremos um lugar idílico quando os jovens desocupados puderem entrar nas nossas casas e ensacar televisores, aparelhagens de alta-fidelidade, jóias e outros bens que possam vender ao desbarato para poderem pagar os preços exorbitantes dos estupefacientes que a sociedade bafienta teima em manter na ilegalidade. Só quando as matilhas de jovens tiverem livre acesso aos nossos automóveis e puderem levar auto-rádios e outros haveres negligentemente esquecidos, é que esta terra será um lugar exemplar para os outros repetirem.


Não interessa uma polícia mal preparada, que tem o dedo leve no gatilho, espanca quando está de cabeça quente, faz tábua rasa dos mais elementares direitos do Estado de direito. A polícia, fardada ou à paisana – e como eles se confundem com os delinquentes quando andam à paisana! – é um obstáculo à livre existência dos mandriões que se fartaram de andar na escola e se fizeram à vida.


Essa é a verdadeira universidade, onde se aprende a sobreviver no meio de uma selva perigosa. Os jovens que cedo embarcam na aventura da selva são os verdadeiros doutores da vida. Para quê cansar a cabeça, aturar professores que simulam a sua erudição para nada, se podem vingar por meios mais fáceis? Injusto é que esses meios apanhem com o rótulo da ilegalidade. Inveja, pura inveja: daqueles que se escudam no argumento da ilegalidade para enjaularem os espertos desta vida.


Está fresco o mais recente episódio de como o povo – e o povo tem sempre razão, como se sabe – cauciona o direito de delinquir. Há dias, uma seita de quatro plácidos rapazes teve a sua noite de divertimento interrompida por uma brigada da GNR. O povo o dirá: acaso fossem senhores doutores todos engravatados à saída de um bar de alterne e a brigada da GNR faria respeitosa continência. Ali estavam quatro rapazes que só se queriam divertir, beber uns copos e fumar uns charros, pintar a manta nocturna. O azar foi darem de caras com uns GNR pançudos, que estorvaram o divertimento. Um mal nunca vem só: estes frustrados polícias não sabem o que é tirar partido da vida e, como se isso não bastasse, o único prazer que têm é retirar os prazeres da vida aos que os procuram.


O povo, tão sapiente nos ditados que nos lega, ensina: “quem não deve não teme”. Os estroinas, interpelados pela GNR, não obedeceram e puseram-se em fuga. Perseguidos pelos pançudos agentes, conseguiram percorrer quinze quilómetros antes de serem imobilizados ao tiro. Mostra a incompetência das polícias que nos policiam. E a brutalidade. Só conseguiram parar os delinquentes em fuga depois de terem despejado as munições na traseira do automóvel, atingindo os dois infelizes a quem calhou em sorte ocupar os bancos de trás. Não satisfeitos com a sua inabilidade – só ao fim de quinze quilómetros, e à bruta, terminaram com a fuga de um automóvel de gama baixa – os agentes furiosos espancaram os plácidos jovens. Quem pode confiar em polícias destes?


No dia seguinte, o jovem condutor que mostrou destreza ao volante foi interrogado em tribunal. O povo exultou com a meia vitória: o jovem não vai aguardar julgamento em prisão preventiva. Ainda há juízes sensatos. Este devia ser convidado para um churrasco regado a vinho tinto do Cartaxo e massajado pela música pimba do momento, na companhia do povo andrajoso e do sindicato do crime que acampou à porta do tribunal. Não é cansativo repeti-lo: o povo é soberano e, do púlpito da sua soberania, exala uma sensatez que ninguém deve questionar. O jovem conduzia com álcool a mais, tinha fumado haxixe, não tinha seguro do automóvel, sabe-se lá se era portador de carta de condução, a crer na versão da polícia aquele carro transportava uma arma ilegal, andou em manobrar assassinas pelas ruas da cidade. Mas o povo acha que isso é a coisa mais natural do mundo.


Assim se entende a indignação popular. Não há direito que o jovem Bruno seja julgado “só” por aquele rol de façanhas. Atenção: de façanhas se trata. Só os moralistas de serviço podem, invejosos, denunciar estas façanhas como crimes. O povo soberano reclama, sem o saber, sem o proferir em palavras audíveis: que o direito ao crime seja legalizado. De preferência com o supremo beneplácito da Constituição.

5.10.06

Dissidência de grupos


O povo augura: é de pequenino que se torce o pepino. Os genes que se herdam são uma poderosa explicação para os comportamentos infantis que se esboçam desde tenra idade. Ontem soube que a minha filha se recusou a participar num jogo de grupo com os colegas do infantário. Pediam-lhe para dizer os nomes do gato e da cadela que tem em casa. Tarefa que ela costuma despachar com uma perna às costas, apesar do escasso vocabulário inteligível. O mutismo falou mais alto. Os colegas não ficaram a saber os nomes dos nossos animais domésticos.


Isto soa-me a familiar. Os progenitores são personalidades muito diferentes. Para o que vem ao caso, o pai é avesso a participações em grupos, em filiações colectivas, em terapias de grupo. A filha, à beira de cumprir dois anos, não tem culpa de alguns dos genes que o progenitor lhe passou. Havia tanta coisa boa para herdar e logo foi buscar esta sombria característica que o mergulha num profundo individualismo. Pode ser que consiga moldar a sua personalidade e se emancipe das amarras genéticas.


Não sinto a menor atracção por manifestações colectivas onde pulsa um “espírito de grupo”, as pessoas partilham interesses comuns e colocam toda a sua generosidade ao serviço desses interesses. Porque há sempre aspectos, por pequenos que sejam, onde emerge a falta de sintonia. E, por pequenas que sejam, as divergências acabam por falar mais alto que o mar imenso de coisas em comum que me liguem aos restantes membros do “grupo”.


Os exemplos não têm fim. Nos tempos da escola, nunca me agradaram trabalhos de grupo. Por saber que havia sempre parasitas que se grudavam ao grupo, sem nada fazerem e recolhendo os mesmos louros dos que contribuíram para o produto final. E porque sendo difícil chegar a acordo sobre um certo aspecto, não conseguia combater uma intolerância inata que levava a querer impor a minha vontade. Para evitar estes conflitos, só tinha duas hipóteses: ou prescindia das minhas opiniões, num acobardamento que incomodava, ou fugia dos trabalhos de grupo.


Nunca fiz um cruzeiro, mas a ideia de andar fechado em alto mar durante dias a fio com a mesma companhia imposta pela exiguidade do navio é asfixiante. Sobretudo por temer a incerteza, o jaez dos companheiros de viagem que aleatoriamente me calhassem. Mas também por relatos que escutei acerca dos rituais de grupo que imperam entre os comparsas de ocasião nos dias da viagem. Um amigo confidenciou-me, incomodado, o arrependimento por ter participado num cruzeiro pelas águas do mediterrânico. Deu conta da sucessão de episódios caricatos: a participarão obrigatória nos jantares temáticos, tão obrigatória que o mínimo atraso que prenunciasse ausência era denunciado alto e bom som pela instalação sonora do navio, para todos saberem quem eram as “ovelhas ranhosas”; a participação, também obrigatória, nas festanças, nos karaokes, o imperativo de se mascarar sob pena de levar com o olhar de censura dos animadores de serviço; e, o zénite, um grupinho de compinchas que se formou, logo liderado por um enérgico patusco, que sentenciava o comportamento relapso do meu amigo com um devastador “estás a boicotar o espírito de grupo”.


É esta fobia pelo “espírito de grupo” que me aguça o espírito de contradição. Leva-me por caminhos que evitam os rituais da participação em grupos, como se fossem tribos modernas. Ocorre-me outro exemplo: apesar de algumas afinidades ideológicas, não consigo imaginar a participação em movimentos liberais (ou “ultra-liberais”, para fazer a vontade dos sacerdotes da moralidade que vagueiam pelas esquerdas bem pensantes). Amiúde sucede que quando os “ultra-liberais” se envolvem em polémicas exaltadas com gente de outros quadrantes, e quando destilam as suas certezas incontestáveis, apetece-me dar razão aos outros, com quem não tenho a menor identificação. Deve ser defeito a atirar para o domínio do psiquiátrico, quem sabe. Revela a insatisfação de me rever em grupos com os quais não sinto identificação nos comportamentos tribais que fomentam.


Groucho Marx sintetiza o meu sentimento individualista: “era incapaz de ser sócio de um clube que aceitasse um tipo como eu”.

4.10.06

O povo tem direito aos seus apedeutas


Uma personagem que se confunde com um erro histórico falhou por pouco a reeleição para a presidência do Brasil. Contristado, apareceu na televisão a confessar: “quem não gostaria de ser eleito logo à primeira volta?” Pergunto-me se vontade não lhe falta para dispensar a maçada das eleições. Como lídimo representante da gesta dos homens providenciais – a auto-avaliação que faz de si mesmo – o povo teria nele o homem certo para se perpetuar no poder.


A emergência do cefalópode personagem excitou uns e irritou outros. Como metalúrgico que fez carreira no sindicalismo, embeveceu certas franjas das esquerdas que sempre se entregaram de olhos fechados nos braços de qualquer coisa que ressoasse a lirismo. Era o povo que chegava ao poder, finalmente, depois de tanta perseverança acumulada na sequência de derrotas e mais derrotas. Para outros, um ex-comunista no poder é um perigo público. Alguns resquícios da formatação comunista terão permanecido. A irritação subia de tom na exacta proporção da excitação que as esquerdas mostravam, sobretudo as órfãs de referências com a derrocada do comunismo.


Para as esquerdas, a personagem com nome de cefalópode trouxe uma nova esperança. Seria o refrescamento da política mundial, o exemplo a partir do distante Brasil. No rescaldo do mandato, desencantaram-se quase todos. Ou pela corrupção que continua, endémica, a grassar por aquelas terras tropicais. Ou pela decepção das políticas adoptadas, uma concessão ao tenebroso neo-liberalismo, a negação das promessas que haviam semeado tanta esperança nos brasileiros e nos cidadãos do mundo carentes de um novo paradigma que mudasse os ventos fétidos do capitalismo empedernido.


O homem foi-se tornando cada vez mais providencial. E imune aos escândalos que, fosse ele de outra extracção política, bastavam para o trazer para os areópagos internacionais como exemplo da censura global. As histórias de corrupção passavam-se debaixo do seu nariz, com o grupo de fiéis que o escoltavam. Debaixo do seu nariz, onde a vista não alcança. O cefalópode personagem faz lembrar a mulher traída pelo marido: é sempre a última a saber. E lá foi ele, escapando aos escândalos, como se fosse possível ser tanto tempo enganado por tanta gente em quem depositava tanta confiança.


Há coisas que convêm aos que se empenharam na construção de um mito. Os que se embeveceram com a ideia de um ex-metalúrgico sem instrução chegar ao cargo mais elevado do Brasil estão sempre dispostos a estender o tapete do perdão. A culpa mora ao lado, não no inocente cefalópode que, coitado, andou tanto tempo mal aconselhado por uma corja de corruptos que se locupletaram através das sinecuras a que deitaram mão. Ninguém reparou que o calibre de um político também se avalia pelas pessoas de que se rodeia. Ou então apenas significa que as pessoas da sua entourage eram os manobradores maquiavélicos e a cefalópode figura presidencial uma simples marioneta ao serviço de interesses inconfessáveis.


Há quem denuncie a personagem como apedeuta que, fosse este um mundo normal, jamais teria a possibilidade de assumir o protagonismo que se conhece. Francamente, não é argumento que me convença. Pois se há coisa mais natural – no Brasil como em todo o lado – é um povo ignaro ser sensível à escolha de um de entre os seus. O que parece incompreensível? Que após todos os escândalos, a aura de irrepreensibilidade, a imagem de auto-endeusamento, a intolerância democrática de quem se recusou a participar nos debates televisivos com os outros candidatos – após tudo isto, cerca de metade do eleitorado ainda deposite o voto na personagem cefalópode. Alguém disse que a democracia é um regime perfeito? O povo tem o que merece, o povo escolhe à sua medida.


Talvez a quase reeleição à primeira volta do cefalópode candidato envie um sinal claro dos valores que regem uma larga maioria: muita gente fechou os olhos aos escândalos de corrupção que mancharam a estadia da personagem em Brasília. Para essa gente, houvesse a oportunidade e fariam o mesmo. É a institucionalização da corrupção. Num país normal o presidente cefalópode nem teria terminado o mandato, acaso tivesse um pingo de vergonha e não estivesse mergulhado em tanta ignorância. Não há surpresa no desfecho dos acontecimentos: afinal, depois de tantas derrotas, depois de tantas promessas de uma salvífica personagem para as esquerdas mundiais desencantadas com o curso dos acontecimentos, o cafalópode não podia entregar o poder de mão beijada.

3.10.06

“Compro o que é nosso – Made in Portugal” – ou o nacionalismo económico é uma saloiice


Vai começar uma campanha que nos sensibiliza, honrados cidadãos que prezam a pátria, a comprar produtos com a chancela nacional. O “made in Portugal” toca o âmago da afectividade patrioteira. Faz lembrar os meninos que ficam para trás e, com uma choradeira bem orquestrada, clamam pela piedade dos fracos de espírito.

Campanhas deste tipo são um anacronismo. São a negação da globalização, da abertura das fronteiras aos produtos que chegam de outros países, da prosápia de fazermos parte da União Europeia, com a sua política de portas escancaradas aos que os outros parceiros querem vender no solo pátrio. E, no entanto, de tempos a tempos deparamos com estas campanhas que ressoam ao mais bafiento salazarismo. Concedo: na campanha não há sinais visíveis do slogan que afamou Salazar. Não se vê nenhures uma ideia que ecoe o “orgulhosamente sós”. Ao convidar os consumidores portugueses a puxarem lustro à pertença lusitana como cartão de embarque à preferência pelo que é produzido entre muros, diria que esta é a fórmula moderna do “orgulhosamente sós”.

Quem recomendar aos concidadãos para não tocarem em bens importados, escolhendo concorrentes “made in Portugal”, assina a confissão da sua incapacidade. No jogo limpo, há empresas portuguesas relegadas para a traseira do pelotão. O fantasma da crise cresce, ameaçador. O jogo deixa de ser limpo, tolda-se com a seta de Cupido que os publicitários enviam, através do cartaz, aos consumidores desprevenidos. Desatentos, dirão “presente” quando convidados a “comprar o que é nosso”. Para perderem dinheiro de cada vez que o façam.

De repente, estou a imaginar um cenário idílico: o empresariado lusitano recolhido na campanha, com a bênção das esquerdas que noutras batalhas denunciam os lucros generosos que esses empresários não partilham com o “operariado”. De mãos dadas, pois o sucesso de uns coincide com a estratégia dos outros. Há que não esquecer, as esquerdas são militantemente a favor dos interesses das classes desfavorecidas. Sabem que o rumo errante das empresas nacionais inscreve o desemprego na agenda das prioridades. O cenário mais fantasmagórico que um “operário” pode recear por estes dias. As esquerdas hão-de andar na rua a fazerem a pedagogia patrioteira dos empresários portugueses. Estranha aliança, é verdade, mas a convergência de interesses obriga a engolir sapos.

Pena é que esquerdas e sindicatos não percebam que o alistamento na campanha que toca ao coração amolecido do concidadão seja contrário ao que defendem. O “nacional é bom” para os bolsos dos abastados empresários que vêm adensadas as nuvens negras ao sentirem que a concorrência com os outros expõe as suas fraquezas. Se não conseguem ser competitivos, é sinal que de outros países chegam bens mais baratos, de melhor qualidade. Permitindo poupanças aos consumidores. Eis como as esquerdas não percebem o logro em que caem: seduzem o “operariado”, que já vive à míngua, a preferir o que “é nacional”. O “operariado” empobrecerá alegremente, agarrado à bandeira nacional, que decerto não lhe dá sustento. Os empresários, contentes com o sucesso da campanha, e com os bolsos mais cheios. Com a bênção das esquerdas. Irónico!

Os mais atentos estarão prontos a retorquir: é impensável que as esquerdas e os sindicatos alinhem na campanha. São inimigos figadais dos empresários. Discordo: se o fizerem estão a abandonar à sua sorte os “operários” das empresas que de outro modo caminham para o declínio. Não é essa a sua função. Só lhes resta a “má companhia” dos empresários, puxando também eles pelo brio de ser português. No seu caso, pela solidariedade classista que os obriga a não deixarem na orfandade os “operários” que são a sua base social de apoio.

Um ingrato dilema sobre as cabeças dos esclarecidos militantes desta causa. Se ao menos as suas vozes se fizessem ouvir, as vozes que ecoam cânticos contra a maléfica globalização que nos torna permeáveis ao que vem de fora. Essas vozes dissidentes que querem revisitar uma espécie de Albânia fechada sobre o seu umbigo. Desgarradas vozes, só lhes restam estratégias batoteiras para que, pela afectividade, os consumidores rejeitem o que não é nacional. Ainda que isso seja mau para a maioria dos cidadãos que não podem deixar de ser consumidores.

Assim como assim, é muito duvidosa a noção de democracia das esquerdas e de certos empresários ainda saudosos de um regime que terminou há mais de trinta anos. Irmãos de armas, é o que são, por mais que se julguem inimigos de sangue.

2.10.06

Ao fundamentalismo de uns, o fundamentalismo-e-meio de outros: a vitória da ignorância global


Lá vai o cortejo de religiões, com os seus (mentalmente) anafados sacerdotes, na espiral rumo ao escuro fundo do poço. De onde não há saída possível – a menos que queiramos acreditar, como se fosse nova fé a sobrepor-se à irracionalidade das crenças diversas, que do caos se ergue uma frondosa vereda para a humanidade. Lá vamos atiçados às profecias, às doutrinas incontestáveis, ao ódio atirado de um lado para o outro. Querem-nos convencer que somos grupos contra grupos, e todos fazemos parte de um grupo. Sem escapatória possível.


Jogam-se os fundamentalismos num lamentável campeonato onde campeia a ignorância. Com os fundamentalismos levanta-se a violência inaudita. Violência física e violência verbal. Aos desafios de uma violência sucedem-se respostas do mesmo calibre, ainda que deslocadas para outro nível. À violência assassina e hipócrita segue-se a violência das armas, porque não retaliar é capitular. Com o complemento da violência retórica, que irrompe com intensidade dos dois lados da barricada. A discussão, interminável e perigosa, é uma deriva para o ensandecimento colectivo. Uma estaca bem afiada com pingos da ignorância que asfixia o discernimento.


Uns pedem sangue e semeiam sangue entre inocentes vítimas. Do lado dos ofendidos, grita-se o incómodo de quem se sente injustiçado, com razão. A solução é uma só: cavalgar na violência. Fazendo-se o jogo tão desejado pelos violentos cegados pela sede de despedaçar a tolerância mestra da civilização ocidental. Sem perceberem como se estatelam numa armadilha, os sedentos de vingança, os que caucionam a perseguição infindável aos que espalham terror, descem ao nível dos que combatem. Vão adensando o ritmo da incerteza, sem convencerem que as acções de policiamento global trazem resultados. Sem entrar na órbita dos loucos que se perdem de amores por absurdas teorias conspirativas, que mensagem reter do relatório de dezasseis agências secretas dos Estados Unidos, que concluem que a “guerra ao terrorismo” aumentou as probabilidades de ataques terroristas?


Há sinais perturbadores neste arremedo de violência que vai aquecendo em lume brando. Um túnel sem luz ao fundo. Apenas a escuridão total, sem saber o que nos espera quando o final do túnel chegar. E há a pressão para cada indivíduo se considerar parte do grupo, de um dos grupos que se digladiam em estupidez perene. Sem haver lugar às dissidências grupais aos que não se revêem nos chicotes dogmáticos. A ousadia para não engrossar a matilha é pecado capital que, de um dos lados dos fundamentalismos, traz a lapidação ou o enforcamento; do outro lado, dá lugar à incompreensão, arrostando o rótulo de amigos do inimigo ou correndo o risco de caírem no estigma da capitulação ao inimigo.


Inquieta-me a deriva de certos fundamentalistas do lado de cá. Têm razão quando se indignam contra o fundamentalismo do lado de lá, contra a violência carregada de hipocrisia. Perdem a razão quando, num assomo irracional, começam a falar a mesma linguagem. É nessa altura que a virtude dos seus valores se abre a excepções. A tolerância abre brechas: se não formos intolerantes com os que são intolerantes com o nosso modo de vida, eles, o inimigo, acabarão por minar a nossa forma de vida. Apologética profecia, tão útil para quem nela encontra um pretexto para mostrar musculada força. À superioridade civilizacional há-de se adicionar a superioridade pela força. O mundo numa sublime imagem!


Os tão ofendidos do lá de cá entregam-se a uma guerra sem quartel contra o fundamentalismo do outro lado. Desnorteiam-se pelo caminho. Perdem-se na linguagem e na prática dos que criticam com razão. Perdendo a razão quando rivalizam na linguagem entontecida, empenhando-se num fundamentalismo que rivaliza com o fundamentalismo que combatem. É vê-los a dissertar sobre as virtudes dos valores ocidentais, tolerância, valor da vida humana, etc; e a negar esses valores quando se emproam centuriões sagrados dos valores ofendidos pelos islâmicos exacerbados. Aqui são contra a pena de morte; no campo de batalha aceitam que sejam estropiadas vidas humanas, inocentes ou culpadas, com a mesma frieza de quem bebe um café.


Neste mundo vertiginoso, tudo se globaliza. Mesmo a ignorância. Tudo se contagia, especialmente o grotesco. Na minha inocência, acreditava que a melhor maneira de nos distinguirmos de quem repudiamos é estarmos nos seus antípodas. A lição que nos entra olhos dentro é oposta: só os vergaremos à derrota se falarmos na sua linguagem, se pusermos em prática o seu código de valores. Nesta altura, já pouco restará da aclamada civilização ocidental para aspergir pelos quatro cantos do mundo. Talvez os derrotemos pela força das armas; sem se perceber que, então, eles nos terão derrotado silenciosamente, porque nos inquinaram com os seus valores que são a antítese dos nossos.