1.1.07

Ad nauseum


Envergonhado, é como me sinto por fazer parte de um mundo que tem o despudor de passar imagens de um homem a quem lhe é colocada a forca à volta da garganta. Um mórbido espectáculo servido em prime time, apimentado acompanhamento dos almoços que passaram a ser indigestos a partir de então. Quando são as televisões que perdem a vergonha e não se auto-censuram, resvalando para a indignidade, perde-se o rasto do humanismo reclamado aos quatro ventos como património genético da nossa superioridade civilizacional.

Somos carrascos uns dos outros. Inundados com pormenores da execução, no deleite do acompanhamento à opípara refeição. O que o sanguinário ditador vestia, o livro sagrado que levou consigo, as orações que disse até a corda o asfixiar, a recusa em ser vendado numa encenação de estúpida coragem para quem julga que semeia as cinzas de um mártir. É neste prato fétido que nos lambuzamos, de olhos arregalados – outros apenas com a vontade de vomitar, de uma golfada só, nesse prato. Os detalhes mediatizados do enforcamento que entraram em nossas casas à força fizeram de cada espectador um involuntário carrasco da execução.

Não sei se é a loucura que se globaliza, com o fenecimento da dignidade que se acolhe na comunicação social. Com a chancela de governantes, a quem a imprensa com tiques de voyeurismo aplaca interesses. Percebeu-se a mensagem: divulgar o sórdido teatro da execução, para que não ficassem dúvidas que a execução do carniceiro de Badgad se fez, não fossem multiplicar-se mais teorias da conspiração acenando com o fantasma vivo de alguém que não teria sido executado. A câmara desligou-se uns instantes antes do corpo do ditador ter caído no cadafalso, o último gesto de decência no meio deste imenso mar putrefacto. Os serviços noticiosos não nos pouparam à cena macabra da corda colocada à volta da cabeça do condenado e depois ajustada para que a tarefa fosse cumprida com diligência.

Saddam não deixa saudades. Pelas mortes que gratuitamente caucionou, pelo êxtase de ensandecimento que mostrava com assiduidade. Dos piores ditadores que o mundo conheceu depois da segunda guerra mundial. Foi deposto, perseguido e preso, julgado (com imparcialidade e respeito pelas regras fundamentais de direito?), condenado à morte. Sou um acérrimo adversário da pena de morte, seja em que circunstância for. Não há ditador, por mais sanguinário que seja o registo passado, por maior que seja o rol de atentados contra a vida humana que carrega consigo, que mereça sentença de morte. A legitimidade de quem o criticou evapora-se no momento em que cauciona um tipo de sanção que ele próprio vulgarizou.

Tão céptico em relação ao legado das sucessivas gestas de portugueses (para aquilo que somos hoje), tenho orgulho de termos sido o primeiro país no mundo a banir a pena de morte. Um alicerce da nossa idiossincrasia. Que haja quem se confesse defensor da pena de morte, ajuízo-o como um estado de negação de um dos poucos aspectos virtuosos da nossa História colectiva. Nem sequer as sinuosas curvas da política internacional, com os seus descarados oportunismos, justificam a condescendência com uma sentença de morte. Há uma deriva irracional que não conseguem discernir: usar as mesmas armas do torcionário a quem a forca rouba a vida é jogar com as mesmas pérfidas regras do jogo. Deixa de haver diferença entre os carrascos e o condenado.

Estes aspectos são meros detalhes perante a violência das imagens do enforcamento de Saddam. Como se já não bastasse a teimosia de cumprir uma pena que largas porções do mundo condenaram, a aleivosia cavou mais fundo com as imagens do antes e do depois da execução. É que a execução do ditador iraquiano não resgata o passado, nem recupera as vidas que ele assassinou. Se alguém ficou contente ao ver as imagens do teatro do enforcamento, sugiro que consulte um psiquiatra. Quando teimamos em deixar falar mais alto os instintos de vingança, é o espelho de como estamos possuídos por um instinto animal que nos empurra, como espécie, para um preocupante lodaçal. A confissão da animalidade que povoa o espírito humano, nestes alvores de um século que, vê-se com clareza, se alija da depuração que o avançar dos tempos deveria anunciar.

Há momentos em que fala mais alto a vergonha das pertenças. Neste caso, a pertença à raça humana.

4 comentários:

Anónimo disse...

terminamos o ano com um emforcamento e a cobardia dos politicos em açeitar que os americanos fassam o que lhes apetese ao nao pedirem o tanbem emforcamento para buxeeee pelas pessoas inocentes que mandou matar no iraque

Rui Miguel Ribeiro disse...

Como licenciado em Direito (mesmo que não gostando), sabes melhor do que eu que a execução da pena capital, cumpridos os trâmites e exigências legais vigentes, é totalmente diferente de um homicídio.
Essa de comparar o carrasco ao assassino (mais a mais quando é um mass murderer), é um recurso populista recorrente, mas não é correcto.

PVM disse...

Rui Miguel:
Fiquei sem perceber a relação causal entre a minha licenciatura e o assunto. Há dois aspectos que me deixam perplexo: primeiro, por cima do respeito da lei estão as nossas convicções, alicerçadas no entendimento filosófico que temos em relação aos fenómenos que nos envolvem. Posso ser licenciado no que sou; mas nunca hei-de ver como legítima a pena de morte (seja em países “bárbaros”, seja em países que se dizem a vanguarda da civilização…); segundo, fazes alusão ao respeito dos trâmites legais vigentes. Ora são por demais conhecidos relatos que questionam a imparcialidade do julgamento do carniceiro de Bagdad. Ou será que algumas organizações de defesa dos direitos humanos fazem parte da terrível conspiração anti-EUA? E a morte dos os advogados de defesa do ditador, apenas uma infausta coincidência?
Muito estranho que tu, pessoa dotada de uma inteligência muito acima da média, aceites a pena de morte (como já confessaste algures) com a ligeireza de quem se diz adepto do Benfica. Estas coisas não se compadecem com análises superficiais. Não se pode afirmar a concordância com a pena de morte “porque sim”. É a vida humana que está em jogo. A vida humana tão glorificada, pelo menos na retórica da civilização ocidental, na sua ânsia por enfatizar a superioridade civilizacional. Porventura é só uma fachada. Areia atirada para os olhos de uma turba que se contenta com as declarações pomposas das autoridades, em todo um simulacro do que afinal não somos.
Sou visceralmente contra a pena de morte, seja em que circunstância for (correndo o risco de me repetir). E sou-o porque a reflexão filosófica que fui empreendendo ao longo da vida aí me conduziu. Acho a pena de morte intolerável, um instrumento selvático que empresta aos países que a aplicam uma feição medieval. Os requintes de malvadez passados para o exterior (da execução do ditador) não são próprios de um Estado de direito; são a sua negação. E não me venhas com o pretexto fácil de que os tribunais iraquianos são independentes, que o Iraque é um país soberano, como justificação para a putativa passividade de quem os efectivamente domina. Esse é um falso argumento. Aposto que, no teu íntimo, estás convencido disso mesmo.
Por fim, eu não comparei o carrasco ao ditador liquidado. Relê com atenção, para não seres atraiçoado por uma interpretação indevida. O que fiz foi criticar a comunicação social que passou, sem um pingo de vergonha, imagens inqualificáveis. Se eu fosse director de informação de um canal, podes ter a certeza que dava ordens para aquelas imagens não serem difundidas (ainda que isso me custasse, depois, a demissão). Custa-me a crer que até os mais empedernidos apoiantes da sentença de morte a Saddam não tenham sentido náusea ao verem todas aquelas imagens (primeiro as fotografias; depois – e ainda pior – as imagens captadas pelo telemóvel de um dos algozes). Na minha maneira de ver as coisas: o regozijo de quem viu e reviu essas imagens faz dele(a) um carniceiro em potência.
PVM

Rui Miguel Ribeiro disse...

Paulo:
Agradeço o elogio (exagerado, talvez pela amizade), but I resent a acusação de ligeireza que me fazes.
Desde a minha juventude que sou defensor da pena de morte. Pensei sobre isso, discuti-o em longos serões de conversa e debate com amigos, pesei a problemática do respeito pela vida humana versus o castigo justo para certos crimes e a conclusão a que cheguei é a de que a vida humana é, a priori, inviolável.
No entanto, quando o indivíduo escolhe cometer actos que se "distinguem" pela sua barbárie, ferocidade, repetição, crueldade e características, penso que não existe remissão possível e o criminoso deve ser eliminado.
É polémico? É. É minoritário? Talvez. É contestável? Certamente. É inconsciente? Não.

P.S. Não sou adepto, pelo contrário, do exibicionismo das penas ( de morte ou outras). Aí sim, está presente um incentivo à vingança, à alarvidade de massas sedentas de sangue, ao voyeurismo doentio e à crueldade.
Não vi o filme (que foi clandestino), e não aprovo a sua exibição. Uma simples fotografia como que a que coloquei nos "Tempos Interessantes" é mais do que suficiente.