18.1.07

E de repente, tudo estranho


Os dias de cansaço expõem as agruras da alma. Os sentidos perdem o norte, espezinhada a bússola por um passo desastrado. Uma desagradável sensação de estranheza apodera-se por dentro. Toma conta das veias, do sangue volátil que parece estagnar à espera que regresse a banal normalidade. Nesses dias do triunfo da estranheza das coisas e das almas, as cores esbatem-se. Regressa um antiquado filme a preto e branco. Um solfejo frio invade as entranhas; mas não é o frio que vinga, nem a dolorosa tempestade que corrói os ossos. Apenas o abúlico despertar para as caras desconhecidas, a começar pela própria.

As frases dos livros parecem desarticuladas. Os animais são comportamentos erráticos. Os óculos embaciados iludem a seca imagem que desliza diante da vista. Havia também chuva, sem que pairassem no céu nuvens carregadas que anunciam precipitação. Ignoram-se as pessoas queridas, porque já são queridas e não carecem afectos. Sabe-se que está errado, mas um poderoso turbilhão empurra para onde não queremos ir. Fazemos o que não queremos, na compungida laceração da carne. Os dedos apertam-se e não se sente nada. As mãos enrugam-se nos cabelos frios, compondo a melena desgrenhada. Ao olhar no espelho, a melena teima descomposta. Os dedos passearam pelos cabelos em vão.

Os alimentos perderam o sabor. A água já não mata a sede. As águas dos rios, dos lagos, dos mares adormeceram num protesto pelo absurdo que grita a cada instante. Os olhos percorrem o mapa da estranheza e não querem perder-se no sono que seria a contemplação dos sonhos de outrora. O cansaço consome até a vontade de dormir. De todos os lados aparecem pessoas que erram sem destino, como se fossem autómatos com personalidade esvaída. Dão passos maquinais, trazem rostos inexpressivos, os lábios cerrados e a respiração meticulosamente compassada. Comandados por uma pulsão guerreira, evitam o contacto com os demais que envergam as suas roupas negras e prosseguem um caminho interminável, rumo ao vazio.

Em toda esta estranheza, as ruas estavam desertas de veículos. Entregues às pessoas que persistiam numa romaria insólita, na indiferenciação do vestuário. Quem sabe, na indiferenciação dos vultos anódinos que vegetavam na perseguição das suas sombras. Perdidos os limites das coisas, desapossados do saber, eram cognatos de uma lúcida loucura. Teriam perdido tudo: as memórias, o passado, as pertenças, os afectos. Vagueavam na insolência dos monstros emparelhados com a ensandecida janela. Alguns de cigarro na mão, levando-o à boca e simulando os tufos de fumo, coreografia espúria pelo cigarro apagado. Tudo encenado nos passos trocados pelos eternos transeuntes. Eles também desconhecedores do descanso, dantes balsâmico.

Um enxame de gente apinhava as grandes cidades. Vinham dos campos, das vilas e cidades pequenas, dos dormitórios onde já não havia sono a cumprir. Amontoados na cidade, demorando-se nas avenidas largas onde ainda não se atropelavam. Alguns metiam-se pelas ruelas esconsas, aventuravam-se em becos de onde a turba havia furtado o sinal de rua sem saída. Ao verem que a rua terminava num alto muro, estancavam a marcha e ali ficavam, horas e dias, a olhar para o alto. Sabiam que o porvir era do lado de lá do muro, nem que fosse um baldio desinteressante. Tomados por uma doentia inércia, não eram capazes de sair do estagnante dilema.

Os dias corriam o seu sentido, com os ponteiros do relógio acertados para a marcha convencionada. Os dias seguiam-se às horas acumuladas. No entanto, os corpos pareciam ter hibernado. As unhas não cresciam, os cabelos dispensavam escanhoamento, a pele permanecia fresca, não se ressentia do banho ausente. Era um tempo traiçoeiro. O condão de decepar os conflitos, no inexistente relacionamento. Era um mundo resumido ao extremado individualismo. Mas um tempo traiçoeiro: na ilusão dos corpos que pareciam ter entrado em agnosia, a crença que a velhice jamais chegaria.

Desengano. Os ponteiros do relógio só pareciam imortalizados, pura ilusão de óptica dos acometidos pela estranheza. Quando dessem conta, quando voltassem a fazer uma visita ao espelho, notariam todas as rugas marcadas, os cabelos brancos ou as calvícies fátuas, os olhos cansados que já não viam com nitidez. Só então os corpos se desprendiam da letargia que os amordaçou tanto tempo. Todo o tempo, entregues nos traiçoeiros braços de um fariseu da eternidade. A estranheza era tanta que nem as promessas de perenidade semeavam tergiversações. Ao despertar do inconsciente estado de hipnotismo, a dolorosa visão do fim, do outro lado da rua que pedia para ser atravessada.

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