26.1.07

O lamento


As angústias perenes, no ressarcimento dos erros cometidos. O lamento vindica o seu lugar. Confunde-se com a introversão onde impera humildade. Pelo lamento expia-se um arrependimento, sobrepõe-se o humilde reconhecimento dos erros que sobram do passado. E, no entanto, quantas vezes o lamento é um grito lancinante perante o desespero que corta a respiração? Quantas vezes, apenas um último fôlego antes de os olhos acordarem para a realidade que desagrada?

Num lamento, escondem-se as lágrimas que nunca chegaram a ser gastas. A combustão das lágrimas aprisionadas nas pálpebras, mercê da desditosa vergonha que esconde dos outros as lágrimas que anseiam soltar-se. Há quem diga: os lamentos são o substituto das lágrimas, o lugar onde as mágoas se expiam, um paliativo para a amargura dolente.

Mercantilizam-se, os lamentos. Estranha condição, esta. Acha-se que os lamentos são acto da mais profunda individualidade do ser. Um espelho onde apenas reflecte uma imagem – a imagem da pessoa que se entrega no pungente acto que desagua em lamentos vários. Porém, traficam-se lamentos. Pois há na exibição dos lamentos uma mensagem para o exterior. Um correio invisível, sinais sublimes dedicados a outrem. Mostrar a alguém que o que está feito seria desfeito houvesse o tempo de regressar ao passado, antes do acto consumado que motiva o lamento. E assim caucionamos ou sancionamos os lamentos dos outros. Sobretudo quando notamos que eles encerram os sinais que só nós podemos descodificar. Mas também quando interferimos nas lamentações que passam na linha ao lado.

Há almas torturadas viciadas no lamento. Parece que erram por sistema, só um pretexto para o encontro marcado com o lamento regenerador. Sabem que limpam o espírito das impurezas que descobrem o lamento. Impuros outrora, o lamento reencontra-os com a indulgência. Andam em círculos, portanto. A errante condição dos nómadas que vagueiam entre os apeadeiros que escolhem no critério puramente aleatório. De umas vezes acordam com o travo amargo, investindo a lamentação expiatória. Outras vezes aceitam o caminho traçado, até que um mergulho na consciência mais profunda desperta os sentidos para a percepção do lamento. Viciante exercício, procuram o lamento como penitência do passado, de todo o passado que vem embrulhado numa indiferenciada parede betuminosa que ameaça, indestrutível, destruir a memória.

O lamento sistemático é um estupefaciente. Apenas um pretexto para esconder as manchas dos tempos idos. Uma encenação que traz a ilusão dos praticantes da lamentação: retornam ao mesmo lugar de onde partiram para mais tarde arribarem ao pináculo do lamento. De erro em erro, de lamento em lamento. O lamento é o fio condutor que tece o caminho até ao próximo despiste.

Teria lógica dizer: os sacerdotes dos lamentos não são cultores da teimosia. Esses, mergulhados no convencimento da sua messiânica aura, nunca se ajoelham no humilde resgatar do erro cometido. São penhores das suas certezas inabaláveis, onde o lugar ao erro não existe – ou, se existe, fica refugiado no mais profundo do seu íntimo, incapazes de reconhecerem aos olhos dos outros o passo em falso dado algures, num tempo já recolhido. Estão divorciados do lamento, palavra que arremetem contra a boca arrependida dos outros a quem denunciam erros passados. O lamento existe para os que não se envergonham da humildade, aqueles que sabem que o erro pertence à rotina das coisas. Sobra do mercado dos lamentos a diferença entre a casta dos arrogantes que passeiam a indisponibilidade do erro e os outros, condenados à revalidação da bússola interior, através do perdão do passado que entretece a ponte com os dias vindouros.

Há no lamento um regresso ao passado, onde as coisas foram erradas, as palavras ditas arrependidas, os actos cometidos envergonhados agora. Pelo lamento, um mergulho no passado como aprendizagem do porvir. Mas sempre com a disponibilidade para as impurezas que hão-de marcar reencontro, mais adiante, com outros lamentos. A humildade constante para empossar o lamento incensa os dias ainda desconhecidos. Por ele, a recusa do endeusamento de si, a clarividência para receber de braços abertos os erros, intencionais ou não, que urge admitir. No lamento, a grandeza maior dos espíritos.

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