29.1.07

Prostituição cívica


Não me canso de o afirmar: adoro este mundo onde vivo, sempre cheio de exibições insólitas que deixam a face boquiaberta. O planeta está transformado num museu constante de aberrações. A normalidade perdeu significado. E ainda bem. De outro modo, o que por aí abundava era a rotineira expressão da vida que definha, castrando a mais bela criatividade que puxa o lustro à imaginativa veia humana.

Há dias fiquei a saber que alguém teve uma ideia brilhante na Alemanha: criar uma empresa onde se alistam voluntários para manifestações alheias. São, portanto, manifestantes de aluguer. Caso uma organização qualquer, daquelas que vêm com frequência para a rua protestar com a voz já rouca de tantos pregões entoar, queira encher uma avenida com uma multidão; e se acaso acontecer que a mobilização das hostes não chegue para encher a avenida, um telefonema para a empresa de aluguer de manifestantes é a solução milagrosa.

De agora em diante, os governos e os alvos fáceis da contestação social que se cuidem: as manifestações de protesto serão multitudinárias. Não interessa que uma fatia das vozes de protesto seja de aluguer, vozes que só ali – e por conveniência, com as mãos aquecidas pela maquia paga para entoarem as palavras de protesto – soltam a militância da causa que desfila rua fora. Será impossível saber quantos manifestantes genuínos se misturam com os manifestantes de aluguer. Se estas exibições de cidadania de protesto fracturam as autoridades e os organizadores, quando fazem a contabilidade dos manifestantes, antecipa-se doravante um abismo ainda maior. As dores de cabeça das autoridades, a tentarem perceber quantos são os manifestantes genuínos e qual a percentagem de manifestantes de aluguer. Estou a adivinhar os comunicados de imprensa das centrais de informação que se devotam a cuidar da imagem dos governos sob protesto, na tentativa de minorar os danos: “o protesto reuniu não mais que 40.000 pessoas, das quais 20.000 foram contratadas junto da empresa de aluguer de manifestantes.”

Já li a denúncia do mau gosto da iniciativa. Os habituais pastores da moralidade e dos valores inquestionáveis acham que os manifestantes de aluguer são uma perversão da cidadania. Consideram que as pessoas que emprestam a sua presença e voz grossa a manifestações são almas tresmalhadas que tudo fazem contra a um pagamento. Ninguém os chamou assim, mas tudo se põe a jeito para serem apelidados “prostitutos da cidadania”.

A ideia não me choca. Nestes tempos de carência, qualquer rendimento extra é uma dádiva para os necessitados. Haja dinheiro entre as organizações que são useiras e vezeiras nas manifestações de rua e mais bem-estar será espalhado pelas pessoas necessitadas que engrossam as manifestações. No fundo, há aqui pura redistribuição da riqueza. Alta conotação social, que não se pode contrariar nos dias que correm. Podem alguns duvidar do gesto, questionar o tráfico de consciências que levará muitas pessoas a manifestações sem terem afinidade com o protesto. É o mau hábito dos que querem tutelar uma pretensa consciência colectiva: acham que têm uma palavra a dizer às consciências individuais que se desviam do caminho certo. No fundo, são os habituais pastores de um rebanho que se deseja ordeiro, acrítico, sem ovelhas tresmalhadas. Os pastores lá estão, do alto da sua superioridade moral, apontando o dedo às ovelhas que se afastam do rebanho. Nem que seja necessário entrar num domínio que se julga impenetrável: a consciência individual.

É com isto que fico perplexo, não com a possibilidade de uns milhares de pessoas virem para a rua entoar palavras de ordem com as quais não se revêem. Alguém tem o direito de denunciar as cambalhotas da consciência alheia? Que tenho eu a ver com a pessoa do lado que habitualmente diz piadas de gosto duvidoso acerca de homossexuais e depois esfrega as mãos com o dinheiro recebido por ter participado numa manifestação que reclama o direito dos homossexuais se casarem? Há incoerência? É verdade. O perigo da denúncia da incoerência alheia é o alçapão da nossa própria incoerência. Apetece glosar a velha máxima: o que não tiver pecado que atire a primeira pedra.

Dizem por aí que os manifestantes de aluguer subvertem a cidadania. Pelo contrário: se tanto se fala da demissão da cidadania, os incentivos financeiros para a participação em manifestações de rua podem ser o lenitivo para uma tomada de consciência individual, para virar a página na cidadania adormecida que se instalou. Pretexto para um economista sentenciar: é o lado positivo do dinheiro.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

É sui generis, mas só mostra a inovação e criatividade constantes que o Capitalismo estimula.
Antes este negócio do que a corrupção, essa sim destrutiva e geradora de desigualdades através da batota.

P.S. Já agora, também podiam pagar a quem fosse votar. Com retroactivos, já deveria receber um montante apreciável. Viva a Democracia!