13.2.07

Desconcertante


Na larga praça os olhares invisíveis cruzam-se. A mulher de meia-idade a correr para o autocarro que ameaça zarpar. Afogueada, esforça-se por levar as adiposas carnes até ao transporte público, que acaba por rumar à próxima paragem deixando-a, desconsolada, a carpir o atraso garantido. Pelo caminho quase atropelava dois adolescentes que tinham acabado a jornada de aulas. Com os auscultadores enfiados nos ouvidos, a gritaria da música que lhes traz um turbilhão de paisagens sonoras, enquanto vagueiam pelas ruas a caminho de casa e dos jogos onde se ensaiam mortes simuladas e se destila toda a violência que aprendem só por estarem de olhos abertos.

Mais ao longe, ao pé do beco escuro, os gatos remelosos esgueiram-se entre as pernas céleres dos transeuntes. Pressentem que a velhinha andrajosa já fez a visita diária, com a muda de água e o fornecimento habitual de comida. Estes gatos não andam ao lixo, empoleirados entre a imundície em demanda dos restos alimentares rejeitados pela abundância humana. Só às vezes são vistos em fuga com os restos do peixe na boca, até ao esconderijo onde devoram o manjar acidental. À noite, dão de caras com o vigilante da fábrica, o mal-encarado e sempre mal disposto homem do pescoço largo que faz a ronda. Já tentou afugentar a colónia de gatos com a sua especialidade: a violência, uns pontapés esboçados, sempre com a desdita de atingirem o vazio, que os gatos escapulem-se entre as pernas do gordo homem.

Pela alvorada, o segurança entaramela os olhos com o sono que se abeira. Espalha-o, contudo, com a luz do dia que irrompe. As pessoas começam a passar, ao início esparsamente, depois com mais cadência. O vigilante esquece-se das janelas da fábrica que batem com fragor sopradas pela ventania que se pôs, esquece-se dos gatos que se esgueiram entre os corredores à procura do esconderijo onde pernoitam o sono diurno. Embevece-se com as pessoas que acabaram de despertar do sono. E inquieta-se com o ar cansativo que muitas transportam por esta fresca hora da manhã. Diria que elas sim passaram a noite na estiva.

Por ali perto, aparca um potente automóvel, com a música bem audível a gritar das potentes colunas hi-fi. Descem três rapazes com cabelos desgrenhados, ainda as forças no auge após uma noite na folgança nocturna. Entram no café, que acabou de abrir as portas. Vêm ao pequeno-almoço e continuam a falar alto, muito alto, como se ainda estivessem contaminados pela música em gritaria da última discoteca visitada. Falam num dialecto imperceptível aos outros clientes, que esperavam o café para evaporar o torpor e embarcar no sacrificial trabalho.

O homem apessoado acabava de sorver delicadamente o café, parando quando o farfalhudo bigode aristocrático sentiu vestígios das poucas borras que nidificavam no fundo da chávena. Imperturbável com a algazarra dos rapazes, destoava do incómodo que outras caras vizinhas não escondiam. Mergulhado nos seus pensamentos, levantou-se, pousou a quantia certa no balcão e saiu, disparando um frio “até amanhã”. O guarda-chuva era a bengala que amparava os passos certeiros. Parou por um segundo, quando escutou as sirenes dos carros dos bombeiros que passaram a uma velocidade nada frugal. Todos pararam, na interrogação interior: “onde seria a tragédia?” Uns instantes de pausa nos trajectos rotineiros, o suficiente para o autocarro que ali passa religiosamente à mesma hora já ter partido.

O homem afidalgado – dir-se-ia não pertencer àquela madrugada tão proletária – tossiu e pôs o chapéu na cabeça. Deteve-se no bulício matinal em seu redor, no mercado de almas que se cruzavam na rua, pessoas reciprocamente indiferentes que apenas comungavam a coincidência dos caminhos acasalados. Muitas viam-se todos os dias, à mesma hora; e continuavam a sua marcha anónima, olhando para todas as outras caras já conhecidas como passaportes de anónimas figuras.

Sentou-se no banco do jardim, bem no meio da larga praça, como se fosse o juiz dos movimentos em seu redor. Os primeiros suspiros da manhã anunciavam um vento frio que penetrava até aos ossos. Puxou a gola do sobretudo, juntou o cachecol ao pescoço, na vã tentativa de obstruir a entrada do frio. Era a hora do charuto matinal, que partilhava em elípticas fumarolas com os desconhecidos que passavam de um lado e do outro da praça. Avançavam os ponteiros do relógio pela manhã. Era como se as portas da cidade se tivessem entreaberto à turba fugidia que pernoitou nos dormitórios. Desaguavam ali à sua frente, nos utilitários enferrujados, descendo dos autocarros aprumados, desfilando apressadamente (que àquela hora parece que toda a gente está atrasada).

Era o começo do dia do velho reformado, o pretexto para matar o tempo a mais que o cansava por fluir tão devagar. Ali ficava, por vezes com o olhar perdido no firmamento, de onde resgatava as páginas, ora doridas ora perfumadas pela alegria, que já só pertenciam ao retrato do tempo que fugira. A mulher de meia-idade saíra do autocarro, encetara o passo acelerado até se perder, outra vez exausta, na rua escondida pela esquina do quiosque. Do outro lado vinha uma velhinha com passo trôpego, carregada de sacolas, falando sozinha no acto contínuo de uma saudável loucura. Ao atravessar a rua, quase embatera de frente com o corpulento segurança da fábrica em apressada fuga para o travesseiro tardio.

Observava, como se de um ritual se tratasse, os passos habituais dos protagonistas daquela praça. Ele e as pombas, hasteadas no alto do semáforo, vigiando a manhã que se descerrava perante a indiferença das pessoas tomadas pela voragem do tempo.

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