2.2.07

“A questão é saber se podemos obrigar as palavras a querer dizer coisas diferentes” (Lewis Carroll)


As palavras encerram os mistérios dos sentidos que lhes queremos dar. Umas vezes, palavras sofridas que escondem lugares onde só as emoções pertencem. Outras vezes, as palavras destilam todo o império da racionalidade – medidas ao milímetro, uma esquadria que roça a perfeição. E, todavia, quando regressamos às palavras entronizadas apetece tudo refazer, como se o autor vestisse agora outra personalidade.

Flúem, as palavras; são como espíritos voláteis, que acordam penhores das diferentes cores do mundo. Destoam as palavras coloridas, quando o pesado céu cinzento parece querer desabar sobre as nossas cabeças. O refúgio está nas palavras cheias de cor, que desmentem o plúmbeo dia tristonho. E dias há que amanhecem soalheiros, há-de pulsar das veias uma vontade indómita de fugir para as arcadas incolores, encerrar a alma nos volúveis caminhos onde o sol não chega a entrar. Servimo-nos das palavras empedernidas, compomo-las com as variantes que põem em cheque o necessário dever de partir em demanda de um arco-íris que rima com felicidade.

Temos as palavras que enchem a boca e se desfazem contra a pele na sua imensa vacuidade. Usamo-las, convencidos que são o monumento da pródiga verve linguista. Ensaiamos textos obtusos, nos umbrais da poética sublime. O adocicado travo que solfeja logo após a ardósia de letras desmaia quando no regresso a tais palavras jorra a decrepitude do criador. Como se o tempo futuro se recusasse reconciliar com o tempo passado; como se alguém tivesse tomado conta do corpo do criador, renegando tudo o que eram páginas dobradas pelo tempo. No temor de revisitar as palavras escritas, elas ficam para sempre emolduradas como retratos imóveis, intocáveis. Sem revisitação caucionada.

Poderia ensaiar-se um outro campo de flores onde vêm repousar as palavras gastas. Gastas de apenas serem escritas. Elas correm o risco de serem banidas se o criador a elas regressa. Ou temperadas com especiarias que tratam da sua adulteração. Por mais que haja trato delicado na coreografia das palavras escritas, o desassossego da perfeição inadiável retoma a centelha da reescrita. Sacrificada a genuína fluência das palavras, assim que o pensamento esbraceja contra uma dura parede de onde saltam fantasmas da impureza. Nem todos os campos de flores seriam o bálsamo aquietador para as palavras desgarradas que eternizam a solidão selvática.

As palavras são os seus próprios espinhos. Arranham com dor, arrancam pedaços de carne quando aparecem com sentidos não queridos pelo criador. É uma traição, intencional ou não, mas uma traição que ensanguenta os olhos cansados do escritor. Ao menos vinga a expiação interior através das palavras que jorram, ora lentas, ora à velocidade estonteante, nem sempre lúcidas.

O pior é quando fermenta uma ideia, uma imagem, quando queremos capturar a intensidade de um sentimento e as palavras não encontram retrato. Aí as palavras são o seu inimigo, uma masmorra que aprisiona o criador que entretece rudimentos no limbo das palavras. Quase sempre excitante, o juízo dos penhores das palavras desprende-se das amarras, de todas as amarras que só a solidão da escrita consegue destruir. É isso: um acto de libertação, a sagração da solidão do arquitecto das palavras; a comunhão com as palavras que escorrem das teclas para o ecrã diante dos olhos é a emancipação desse terrível ermo. E o mergulho noutra tremenda solidão, a que se encerra nas palavras que nunca morrem.

O encantamento transcende-nos: são mais as palavras que os dias que vivemos. Uma miríade inquietante, pelo horizonte que descobre sentidos insólitos para as palavras que dizemos e escrevemos. Figuras de estilo que emprestam a volúpia às palavras. Uma indecifrável codificação que arremete o escritor para o vórtice da solidão. Ensaística, apenas, ou um exercício de distanciamento do leitor. Ou talvez não: apenas a suprema libertação de quem lê as palavras que se entregam aos sentidos diversos. Nunca o destinatário será tão soberano da obra, na reescrita das palavras tratadas.

Há nesta indeterminação uma prisão voluntária do guardião das palavras. Ora as retoma com agrado, ora as renega num abortivo esboço onde não resta sequer uma vírgula de indulgência. O risco maior do resgate das palavras já retidas no tempo: a dor lancinante de regressar às palavras tomadas, ou a dor maior de obnubilar as cicatrizes espalhadas corpo fora, como se houvesse mister de refazer os dias que já se perderam na embocadura do rio.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente prosa,a roçar o sublime.A maneira como dominas as palavras e de como consegues transmitir emoções surpreende-me a cada visita.
A literariedade dos teus enunciados começam a colocar-te noutro patamar.
"estás em plena passagem para o outro lado do espelho"

Carter