12.2.07

Sim, o referendo está morto


Nem aqui o povo tem razão: nem à terceira foi de vez. Convidado o povo a exercer o poder através do referendo, mais de metade absteve-se. E bem podem os políticos apelar ao melhor da retórica para nos convencerem que o referendo não está morto. Os esforços esfumam-se perante a frieza dos números.

Só tive paciência para aguentar meia hora dos programas de televisão que acompanhavam o escrutínio. Nessa longa meia hora, saltaram-me à vista duas curiosas manifestações: os políticos, com o esforçado Marcelo Rebelo de Sousa à cabeça, a formatarem o pensamento da turba assegurando que o referendo está de boa saúde; e alguns dos adeptos do “sim” e do “não” que sublinharam a elevação da campanha eleitoral e o civismo que reinou no dia das eleições.

Começo pelo fim. Como é possível encontrar elevação no debate numa matéria que exacerba os espíritos, que traz emoções desbragadas à flor da pele de um lado e do outro da barricada? Como é possível dar por garantida a elevação do debate quando todos os dias tropeçávamos em exibições de desonestidade intelectual, quando amiúde adeptos de ambas as causas abriam a boca para soltar o maior dos disparates, elo com uma grotesca ignorância? E mais perplexo fiquei ao ouvir da boca de uma senhora que lutou pelo “não” o aplauso ao civismo do acto eleitoral. Por acaso a senhora estava à espera de tumultos, bofetadas entre militantes adeptos das causas contrárias? A democracia em que vivemos ainda não chegou à maturidade. Daí a confundir-se com um qualquer país latino-americano vai uma distância abismal.

Quanto ao que mais interessa – a sobrevivência do referendo a uma terceira experiência de abstenção maioritária – alguns comentários avulsos. Primeiro, o deleite de ver Marcelo Rebelo de Sousa com uma tremenda incomodidade perante as projecções da abstenção. Sem a tonitruante convicção das suas certezas, lá se foi esforçando em puxar a percentagem de votantes para cima. Ele ia por ali acima – 45, 46, 47, 48% – e só não continuou porque teve que parar para inspirar uma golfada de ar. Fica o aplauso para o wishful thinking de Marcelo Rebelo de Sousa. Nem com os números que caiam em cima da secretária conseguiu discernir que os votantes não tinham ultrapassado 43% do universo de eleitores.

Segunda observação: os políticos (e comentaristas, inevitavelmente de braço dado com a classe política) manifestaram contentamento com a participação no referendo. Com um raciocínio deslumbrante: a abstenção diminuiu dos sessenta em alguns por cento para 57%. Já é mais próximo da fasquia que legitima os resultados de um referendo. Parece que não perceberam o significado dos números. Uma abstenção de 57% traduz-se no seguinte: mais de metade dos eleitores decidiram não escolher. A crueza do número não satisfaz a classe política, que teima que assobiar para o alto quando chega o momento de discutir o significado da abstenção. Pode a abstenção ter diminuído. Não deixa de ser uma vitória de Pirro para os políticos que encenaram este esboço de democracia directa como expediente para a sua desresponsabilização. No rescaldo fica apenas a frieza do número: 57% é mais que 50%. Se isto é uma vitória, ou se representa o sucesso do referendo, apenas mais uma prova da abnegação dos políticos em distorcer a realidade. Sugiro o seguinte: continuem a insistir em referendos, uma e outra vez, sobre as coisas mais mundanas que se possa imaginar. Pode ser que à enésima tentativa consigam obter um referendo com menos de 50% de abstenção.

Se nem à terceira foi de vez, e depois de uma campanha eleitoral que parecia mostrar um grande empenhamento da sociedade civil, o diagnóstico parece nítido: o referendo morreu. Não estamos preparados para o referendo. Porventura o povo exibe a sua atracção pelos totalitarismos que parecem congénitos. A abstenção tão elevada terá múltiplas interpretações. Uma será a de que um número significativo dos eleitores não acredita nas virtudes do referendo. Falo por mim: descontando o facto (importante) de não considerar referendável a despenalização do aborto, não percebo como se pode entregar decisões importantes directamente nas mãos de um povo inculto. Arrisco o rótulo de elitismo inconsequente, arrisco até o isolamento dos que ousam dissidir do politicamente incorrecto. Mas é assim que penso.

Para terminar, outra perplexidade: não consigo perceber como os políticos, em uníssono, tecem loas ao referendo. Através do referendo devolvem o poder ao povo, que se pronuncia através da cruz que inscreve no boletim de voto. O que me causa confusão é ver como os políticos, empossados na condição de decisores numa democracia parlamentar representativa, se demitem das suas responsabilidades. Ou bem que é mais uma incoerência da classe política, ou apenas um fogo-fátuo que procura convencer o povo que, de vez em quando, tem a decisão nas mãos. Por definição, os representantes deviam evitar um método que esvazia os seus poderes. O seu contrário leva a desconfiar que dizem o oposto do que pensam. Sem surpresa: é a arte da ilusão que preenche a carreira dos políticos.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Como tive oportunidade de referir no último post do meu Blog, o Referendo NÃO deveria ter um requisito mínimo de participação. Se as eleições não têm não vejo nennhum motivo para que os referendos o tenham. 44% de participação não é, obviamente, nada famoso, mas também não é nada que não se tenha já visto em eleições europeias e com uma mobilização partidária superior.
Eu sou grande adepto da Democracia directa em complemento à representativa e, ao contrário de ti, penso que a maioria dos políticos (Marcelo é uma das excepções) não gosta de referendos, precisamente porque eles os vinculam por vários anos, mesmo com votações abaixo dos 50%. Quanto à capacidade das pessoas, se ela existe para votar em eleições, não vejo porque é que não existiria para votar em referendos.
P.S. Gostava de saber se dentro de 8 anos estaremos a votar novamente nesta matéria. Não sou bruxo, mas aposto que não vamos. As democracias europeias também têm alguns caminhos ínvios...