2.5.07

A censura por portas travessas – ou como fiquei contente com Pina Moura à frente da TVI


Vou contra a corrente. Páginas e páginas de indignação pela nomeação de Pina Moura para a administração da TVI. Criticas ao processo, denuncias à colagem aos interesses socialistas, olha-se para Espanha e percebe-se como o diário El Pais parece o órgão oficial do partido socialista também no poder. Contesta-se o Cardeal pelo ausente percurso na comunicação social. Muitas vozes insurgem-se contra a tentativa de condicionamento da televisão. Temem que esteja em causa o pluralismo da informação.

(Como há vozes, do lado de lá, que não percebem a indignação pública. Acham que o processo é exemplar em transparência. Pois se Pina Moura até – finalmente – abdicou do lugar de deputado e de todos os cargos dirigentes no PS. E exercitam a memória: contra os que lamentaram a falta de pudor do futuro controlador quando, em entrevista, admitiu que a sua escolha encerra um projecto ideológico, voltam umas páginas atrás no tempo e atiram para cima da mesa a entrega da TVI à igreja católica. E interrogam-se: não foi um projecto ideológico? Quanto a esta plácida tentativa de branqueamento, duas notas apenas: a igreja católica não é um partido; nem está no poder.)

Entre a tinta que escorre a rodos, tenho que remar contra a maré. Contra a maré dos que reagiram com o despautério do grupo Prisa, com o ternurento beneplácito do poder instalado, que não estranha um dos seus a controlar um dos poucos canais de televisão domésticos. Mas também contra a maré dos apaniguados do PS que dão o seu melhor para passar a imagem de que a normalidade não está em causa. É mais difícil ir contra a maré dos que reprovam este processo. É mais fácil, a quem esteja apenas comprometido com a imparcialidade, desconfiar que vamos ter condicionamento da informação pelos socialistas.

Largo daqui o meu aplauso à escolha de Pina Moura. Não podia ter sido melhor. Se faz jus ao cognome – Cardeal – é porque reza a lenda que, nos tempos de militante comunista, era exímio na manipulação e no controlo dos seus. Eis porque fiquei contente com a entrega da TVI nas mãos do Cardeal: se dúvidas houvesse acerca das intenções dos socialistas, elas esboroaram-se com este acto. E aplaudo porque prefiro que tudo seja feito às claras. É sempre preferível saber que, ao sintonizar a futura TVI, é muito elevada a probabilidade da informação ser instrumentalizada, como o já é na RTP. Assim como assim, o eleitorado deu maioria absoluta aos socialistas. Faz sentido que mais de metade dos canais de televisão reflicta a verdade de acordo com a cartilha dos seguidores de Sócrates.

Continuo a aplaudir: desconheço se é apenas coincidência, mas a urgência em compor o ramalhete dos canais de televisão depois da turbulência causada pela história muito mal contada da pseudo-licenciatura do primeiro-ministro traz pulga atrás da orelha. Se foi coincidência no tempo, é um daqueles acontecimentos cósmicos que quase entram no domínio da improbabilidade, desafiando as leis da física. Se não há coincidência, redobra-se a intensidade do aplauso. Percebe-se a manobra dos socialistas, que fazem tudo às claras e sinalizam que doravante haverá menos danos à cuidada imagem do primeiro-ministro. Só um dos canais terá liberdade para o fazer.

Como adoro transparência, acho-me esclarecido com o episódio. Sempre é melhor saber que os socialistas hão-de pautar a melodia da informação de três dos quatro canais de televisão, do que saber, a posteriori, que houve dias a fio que ministros e assessores passaram horas e horas ao telefone para as redacções de jornais, tentando condicionar a informação que ia ser publicada. Já que não há pudor para o não fazer, ao menos que haja pudor para não desperdiçar tempo – precioso tempo – a telefonar para jornalistas, em vez dos governantes fazerem aquilo que se esperava que fizessem: governar.

Finalizo este texto encomiástico dando razão aos que, do outro lado da barricada, não vêm problema na TVI liderada por Pina Moura. Estes seguidores do poder vão ao baú das memórias para justificar a escolha da Prisa. Argumentam que a SIC pertence a um dos fundadores do maior partido da oposição. O elogio da transparência cola-se a esta argumentação. Primeiro, os socialistas confessam que querem ter um canal sob a sua esfera de influência. Regista-se para os devidos efeitos. Segundo, ficamos a saber que as televisões têm a liberdade de informação cerceada. Aqui colhe o velho adágio: “à mulher de César não basta ser séria, tem que o parecer também”. Terceiro, os socialistas acautelam a futura cura de oposição que algum dia hão-de ter. Nessa altura, perdida a RTP para o PSD de regresso ao poder, terão na TVI a sua coutada privada.

Há, de tudo isto, uma ilação a retirar: a censura também se exerce por portas travessas. Há censura explícita, o célebre lápis azul do Estado Novo. E há censura implícita, a que jorra da cumplicidade entre partidos políticos e os órgãos de comunicação social mais influentes, como o são as televisões. Manipulação, é o nome disto. No rescaldo, o cidadão é o lesado (e a sua liberdade individual). Eis como os anos de ditadura perduram nos comportamentos. É congénito. Talvez por isso ontem, 1º de Maio, tenha visto, ainda madrugada, na Rotunda da Boavista, uma faixa com a seguinte mensagem: “Se tens saudade dele, junta-te a Salazar”. Hoje já lá não estava. Só não percebi quem a tinha colocado: se saudosistas da ditadura, se cínicos adversários que não hesitariam, se pudessem, em colocar os adeptos da extrema-direita sete palmos abaixo da terra, o estado actual do ditador. A faixa já lá não estava. É esta a liberdade de expressão que admiro!

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