25.5.07

Ecos do mau feitio


Alturas em que o tempo pára para olhar para dentro. Interrogar se não há miopia na maneira como vejo as coisas, tão desalinhado do sentir geral. Inquirir às entranhas do ser se os princípios que me regem são teimosia ou desassombro, mania da rectidão ou ingenuidade.

Às vezes sou tomado de assalto pela convicção que é apenas incorrigível mau feitio. A necessidade de me saber a remar contra a maré dominante, ver passar os outros em sentido contrário e reconfortar-me com a imagem. É verosímil que seja defeito de carácter. Ou uma lente desfocada através da qual decanto a realidade. Questiono o código de conduta que comanda as acções. Não quero, nem posso, perseguir a pretensão que o mundo se reconduz a um binómio, entre o que é certo e o que está errado. Nem sequer posso moldar a imagem do mundo à percepção resignada que há acções que reprovo mas que estão enquistadas no planalto do pragmatismo. Como se o pragmatismo deturpasse princípios, os moldasse à imagem da acomodação a que somos convocados em tributo dos novos tempos. Sem laivos de conservadorismo, inquieta-me sentir que o labirinto da vida nos coloca no limiar deste precipício.

Será mau feitio, apenas, nos conflitos que não consigo evitar. Demoro a reagir, notificado pela fonte do conflito. Avalio as opções: reagir, entrar na pendência, comprar a desconfortável sensação da acareação; ou, tomado pelo pragmatismo, olhar de lado para a fonte do conflito, simular a sua ausência em homenagem à acalmia interior. Quase sempre, um instinto empurra-me para a segunda hipótese. E, quase sempre, acabo por deixar vingar a primeira. Não consigo deixar incólumes fragmentos que se estilhaçam na minha janela, que fica partida. Se a busca interior pelo conforto falasse mais alto, haveria que substituir a vidraça estilhaçada, só isso. Acontece que só o consigo fazer depois de confrontar quem a partiu, digladiar argumentos, resolver a pendência. Não o faço para mostrar superioridades argumentativas, ou provar que a razão – essa coisa tão volátil – está do meu lado. Faço-o para apaziguamento da consciência. Teimo em acreditar que careço desse passo para herdar o sono tranquilo.

São as dores do pensamento a minha prisão. As dores do pensamento que fermentam o mau feitio que me traz refém. Esse pensamento que me traz em sobressalto, quando esbracejam episódios que semeiam a indignação, incapaz de lhes passar ao lado, ou por cima, e privilegiar as coisas mais belas da vida que estão algures. E prisão, contudo: a alternativa é fazer de conta que o estrondoso murro na minha porta não soou, na demissão do pensamento. Acovardado, se seguisse por esse caminho. Sobram as masmorras do pensamento ditador. Um dilema angustiante: deixar que o pensamento siga os tortuosos caminhos, no único mérito de me achar dotado de racionalidade; ou asfixiar o pensamento, iludir o que me rodeia, num ensimesmamento que seria profícuo à deriva por um bem-estar interior, porventura um enganoso bem-estar interior.

Assim dividido, entre um refúgio interior que anestesie as dores do pensamento e a reiterada mortificação quando tropeço nas desilusões dos outros que atraiçoam a ingénua confiança depositada. Não sei se os princípios que me orientam são inflexíveis. Não sei se esses princípios vogam em nuvens idílicas, mas insustentáveis. E não sei se os passos que dou, as ruas que decido percorrer, são um espelho do erro. O nutriente do obstinado mau feitio que semeia tormentosos dias.

De mim apodera-se uma vontade indomável de fazer as coisas diferentes. De domar as dores do pensamento. E quebrar as algemas que me trazem preso à ditadura do pensamento. Vogar sobre os fragmentos que hoje estilhaçam a minha janela e transtornam o sono. Vogar sobre eles, indiferente às dores que provocam. Só tenho que descobrir a anestesia certeira. Mas temo, dividido nas extremidades do dilema, que domando as dores do pensamento haja demissão de mim mesmo, na voragem da covardia que me deixa desassossegado. É então que reparo que para as dores do pensamento não há morfina que valha: pois são as dores do pensamento que gritam, desesperadas, ao intuir a urgência em domesticá-las.

Acho que estou fadado a conviver com o mau feitio inato. Dominado pelo pensamento ditador que me manieta. Pela incapacidade de saltar para o dorso e tomar conta das rédeas do pensamento tempestuoso que me dobra. Este é um tortuoso labirinto donde não vislumbro saída. Há dias em que fala mais alto a decisão de mudar. São os dias em, interrogados os confins do ser, sobra a indecisão, a prisão que me não deixa marcar encontro com a urgente mudança.

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