4.5.07

Modismos (e os que rejeitam as modas não fazem uma moda?)


A entropia definhante: há por aí muita gente que sublima os sinais da derradeira moda. Há a roupa da moda, com os devaneios circulares que trazem os estilistas de regresso às modas passadas – parece-me, um laivo de imaginação esgotada. Há os autores e os pintores da moda, que podem escrever ou pintar banalidades merecedoras de aplauso unânime e valorização inflacionada. Há os músicos da moda, tantas vezes efémeros produtos da indústria musical, que depressa aparecem na ribalta e tão depressa vêm engavetar os alvores do esquecimento.

Em todos os registos, há curadores oficiais dos modismos. Falam e escrevem e influenciam comportamentos. Pessoas, aos magotes, são os carneiros do guru. Assim se giza a moda do momento. Passamos por elas com a levitação do tempo. Quando há tempo para resgatar as memórias emolduradas em fotografia, esboça-se um sorriso de desdém pelas figuras tolas de outrora. Eram modas de arromba, artefactos obrigatórios, um ritual que era sinal de socialização entre a tribo a que pertencíamos. E que ninguém venha dizer que nunca fez parte de uma tribo que tecia o cimento da identificação através destes pequenos sinais de socialização.

O mesmo vale para a música, os livros, os filmes que foram ícones no momento da estreia. Foram penhores do imaginário de tantos. Vinte anos depois, a sua revisitação traz perplexidade: como pude ouvir aquela música, ler aquele livro, ver aquele filme? Que identificação houve com estas performances que hoje, à distância do tempo e com a voragem dos padrões estéticos que se sucedem, soam a patético? É o momento em que a revisitação de tempos idos cauciona o gosto duvidoso de antanho. Sem sinal de arrependimento. Todas as coisas tiveram o seu tempo. A estética, para além de voraz, é volátil. Os modismos arremetem uns contra os outros, denunciam a trivialidade dos antecessores assim que um novo modismo ganha o seu espaço.

Os modismos são democracia em acção. São uma questão de maiorias. Se não há maiorias a prestar tributos aos ícones sagrados de um certo modismo, pelo menos há grupos numerosos que arregimentam à militância dedicada. Os sociólogos estão no seu altar preferido: os comportamentos de massas, o indivíduo que se desprende da sua individualidade quando sente a obrigação de engrossar a maré que o faz pertencer a um grupo. Os modismos são a proficiência do combate à solidão. Penhoram a identificação do ser com um colectivo. Não só são democráticos, são socializadores.

Há modismos que renego. Daqui confesso preconceito: contra modismos onde gravitam as massas, na cómoda massificação do saber, dos sabores, dos sons e das palavras, de qualquer estética que impõe sinais identitários. E, contudo, não consigo escapar ao alçapão dos modismos: há, em todo o movimento de recusa de um modismo, um modismo em potência. Um modismo diferente, que até pode não intuir um código de conduta ou de pertença, com os pequenos tiques que rotulam, as roupas que separam filiações, a música que define paradigmas. Pode haver entrega apaixonada a um modismo, fermentando a crítica dos que neles não se revêem: logo dirão, em tom reprovador de quem se alcunha moralista acima da média, que os desapossados de si em nome de um modismo retratam o esvaziamento de personalidade. É fácil esgrimir a crítica. E confortável, para os sacerdotes da mais elevada moralidade, aqueles que ungem com os seus dedos iluminados a benfazeja moral de que os tacanhos carecem.

Vivemos presos a modismos. Sejam os modismos das maiorias, os consumos culturais ou não que se instalam como padrão dominante. Sejam os movimentos alternativos, tantas vezes aparelhados pela fobia da dissidência, pela afirmação de um direito à diferença que nasce pela desidentificação dos modismos dominantes, ousando exibir trejeitos de superioridade; vejo-me neste grupo e não me repugna admitir que há sinais de identificação que assim se edificam, por antinomia aos modismos das massas. Não deixam de ser modismos, à sua maneira. Não deixam de aglutinar um rebanho de fiéis, que também sacralizam vasos de comunicação pelo código que constroem. Dependentes dos modismos, nem percebemos como se alastram entre nós, por dentro de nós, como insidiosamente se enraízam, correntes que aprisionam o livre arbítrio. Sobra a resignação. Mesmo para o individualista convicto, que pode desconfiar de todos os modismos, mas debica num deles aqui, noutro ali, fermentando o lastro de cada modismo tributado.

Estamos à mercê dos modismos. Uma das cicatrizes da socialização inevitável.

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