18.7.07

Educar é formatar?


A história da humanidade é fértil em choques de gerações. Mudam as preferências com a passagem de testemunho geracional: nos hábitos, na cultura, nas múltiplas expressões de cultura. Hoje, os mais velhos mostram-se inquietos com os hábitos culturais dos adolescentes (ou melhor, com a ausência desses hábitos e com a qualidade duvidosa dos escassos hábitos). Reprova-se a falta de sensibilidade pela leitura, o total alheamento da poesia. Critica-se a aversão pela sublime música clássica, substituída por produtos de consumo fácil e que tão depressa entram no ouvido como são remetidos ao lugar do esquecimento. Os mais velhos, sobretudo os que são pais, discutem se lhes assiste o dever de um envolvimento activo na educação cultural dos filhos.

Num registo pessoal, não me custa concordar com o diagnóstico. Pelos meus padrões pessoais – o que tem, logo à partida, o viés da subjectividade – a leitura, o teatro, o cinema (sem ser o fátuo cinema de entretenimento que enxameia as salas de cinema), a música, a literatura, a pintura são ingredientes imprescindíveis para o crescimento das pessoas. Por mais que se envelheça, há sempre lugar ao conhecimento de novas expressões culturais. Agem como nutriente que sustenta a existência para além da insípida vida dominada pela monotonia.

Que os mais jovens tenham outros horizontes, que levem as suas preferências por caminhos que nada motivam a minha atenção, será um problema meu. Se gostam do cinema carregado de efeitos especiais, que desvaloriza a intensidade narrativa; se gostam de rap, hip-hop, os de outras xaropadas que se consomem na voracidade do tempo; se o pouco que lêem é a duvidosa qualidade da “literatura light”; se apostam em séries de televisão para o público juvenil, com uma linguagem que só o público juvenil consegue decifrar; se estes são os produtos que atraem os adolescentes e os pós-adolescentes, o mínimo que se pede a quem não se revê nesta “estética cultural” é respeito pela opção. Ainda que ela se dilua em manifestações que não reúnem o nosso agrado e que olhemos para elas e sejamos assaltados pela perplexidade – como é possível alguém consumir daquilo, é a interrogação sobrante.

Regresso ao início: as diferentes gerações não têm a separá-las apenas o hiato da idade, uma espessura temporal que cava um fosso que tantas vezes impede a comunicação inteligível. Entre elas emergem diferentes gostos, diferentes modas (que, para os críticos, hão-de ser sempre modismos, com a conotação depreciativa que a palavra encerra). Também as separam diferentes manifestações de cultura. Nem que aos mais velhos surja, pela sua lente, o diagnóstico de anti-cultura, ou de negação da cultura, ao apreciarem os formatos que reúnem a preferência dos mais novos. Este é um juízo que deve ser combatido por dois motivos: primeiro, depreciar as preferências dos mais jovens revela um desrespeito que não entra nos cânones da tolerância que, essa sim, deve pertencer ao legado educacional; depois, os mais velhos não se podem esquecer que na sua juventude as manifestações de cultura que elegeram também passaram pelo crivo negativo dos que eram mais velhos.

Há um aspecto importante que se junta a esta discussão: como pais, deve a educação para a cultura ser tributária de um activismo militante, que condiciona, pressiona, proíbe? Devem os pais interferir nas preferências dos filhos, orientando-os para manifestações de cultura purificadas pela experiência dos mais velhos? Podem os pais desviar a atenção dos filhos, rejeitando determinados produtos que considerem nocivos para o seu amadurecimento? Podem impor manifestações culturais que fazem as delícias dos pais, mesmo que os filhos sejam feitos de outra massa e não mostrem sensibilidade para tais produtos? Todas estas perguntas merecem um não como resposta. De outro modo, o que temos é a formatação de personalidades que espezinha a sua individualidade. E que pode colocar os mais novos em rota de colisão com outros da sua idade. Nestas idades, desalinhar dos modismos pode levar à marginalização, com as consequências dolorosas para quem fica ostracizado.

Acho que se dramatiza de mais quando se observam os hábitos dos mais novos, as suas preferências no domínio cultural (ou a sua escassa sensibilidade para o domínio). Os movimentos que aglutinam as preferências dos mais novos não nasceram de geração espontânea. E ainda que pessoalmente alguns deles, nas suas exibições, repugnem, não devemos condicionar o acesso aos mais novos. Se o fizermos seremos educadores que se impõem pela imperatividade compulsiva, na pretensão de que os mais novos herdem à força as nossas preferências culturais. Educar não é formatar. É responsabilizar. Resta-me a prova dos nove: saber se consigo levar à prática todos estes preceitos que, para já, são ainda teoria. O tempo trará estes dilemas.

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