21.8.07

Chamem-me reaccionário, que não me importo


Estou embevecido com certas reacções depois da trágica bebedeira de violência dos querubins da moral ecológica que generosamente vieram do céu para nos salvarem. O Bloco de Esquerda meteu férias, calado que permanece. Só fala Miguel Portas. E de cada vez que fala ou escreve, desdobrando-se em justificações, o mais que consegue é afundar-se no ridículo. Ele assegura que estas acções dos activistas (que não são vândalos, por conseguinte) são necessárias, trazem para a praça pública assuntos que de outro modo ficariam remetidos ao obscuro silêncio. Agora juntou mais um ingrediente: a famosa teoria da conspiração, pois os transgénicos são outra façanha do inominável capitalismo (as multinacionais, ai as multinacionais, diabos em potência).

Ainda bem que temos direito a estes salvadores da humanidade. Seríamos uma horda acrítica, comendo e calando os desmandos da coligação neoliberal que irmana governos e interesses das multinacionais. Supõe-se – apenas se supõe pela ausência de provas concludentes – que os primeiros estão comprados e são servis capatazes que modelam políticas ao sabor das conveniências das segundas. A salvação da humanidade está prometida para breve, por mais que os tentáculos das multinacionais se estendam por todo o lado.

Umas trupes de jovens que vivem em perfeito comunitarismo, despojadas dos interesses materiais, são o exército de salvação. Contra os tentaculares interesses do capitalismo neoliberal, que asfixiam e asfixiam os povos, iludem-nos com a drageia adocicada do consumismo e do crédito que os endivida até ao tutano, o exército de salvação espalha a boa nova pelos quatro cantos do mundo. Persegue as reuniões das organizações internacionais onde se acoitam os malévolos interesses do neoliberalismo, usando a destruição como contrapeso. Os fracos usam as armas que têm à mão. Contra o poder tenebroso dos poderosos, a violência é consentida. Em pequena escala, dão-se a conhecer com acções que “ceifam” milho transgénico porque são contra os transgénicos, outra maquinação das multinacionais.

Note-se: “ceifam” milho, como se fossem as debulhadoras que colhem o milho; mas o que fizeram foi destruir o milho, inutilizando-o. Uma diferença que não é um detalhe. Um eufemismo para dar cobertura a uma acção violenta que convenientemente vem mascarada com uma capa qualquer que não a da violência. Pessoalmente, até me agradam estas manifestações eivadas de folclore: desnudam o jaez desta gentalha. Aguardam-se os efeitos secundários: saber se as elites citadinas, aburguesadas e intelectuais, enamoradas pela esquerda caviar, sancionam a bestialidade e concordam com as cambalhotas argumentativas do guru Portas.

Se há noção que emerge do episódio, como ontem sublinhava, é a vitória da indomável lógica dos fins que justificam os meios. Esta acção do que parece um grupo fantasma (“Verde Eufémia”) leva a tecer uma ponte com a greve do fim-de-semana marcada pelo sindicato do pessoal de handling que opera nos aeroportos. Não foi coincidência o agendamento da greve para o fim-de-semana com mais movimento de voos e passageiros. Vem nos manuais da prática sindical: uma greve só tem o efeito pretendido se afectar o maior número possível de pessoas. Ainda que as pessoas afectadas sejam vítimas colaterais, apanhadas no meio de um fogo que não lhes diz respeito. Se há conflito é entre o sindicato e uma empresa, sendo pouco lógico atirar as culpas para os utentes dos serviços afectados com a paralisação. Não sei se a isto se pode chamar boicote do funcionamento da sociedade.

Esta é uma das matérias que foi entronizada no reino dos “direitos adquiridos”: não se questiona o direito à greve, direito inalienável dos trabalhadores. Eu prefiro olhar para o assunto por outro prisma. Primeiro, cotejando os interesses dos trabalhadores em greve e dos utentes afectados. Devem os interesses da minoria (os grevistas) sobrepor-se aos interesses da vasta maioria dos atingidos pela paralisação? Isto é compatível com o que nos ensinam, desde os bancos da escola, sobre democracia? Os sindicatos mais activos, aqueles que servem de correia de transmissão a um partido que é tudo menos democrático, têm uma concepção enviesada de democracia. O problema é deles. E de quem persegue na teimosia de fechar os olhos a estes atropelos, só porque o direito à greve não pode ser beliscado. Há uma imagem lapidar de greves de transportes que sintetiza a letargia geral perante o fenómeno: quando os microfones se estendem para o povo, em demanda de opiniões sobre a greve, é vulgar escutar pategos que nunca mais chegam ao trabalho acusarem “o governo” em vez de acusarem o sindicato.

Em segundo lugar, ninguém avalia a responsabilidade dos sindicatos. Como tudo lhes é consentido, porque na acção dos sindicatos vinga a ideia de que todos os meios justificam os fins, eles vogam como entidades a quem não é exigível uma actuação responsável. Não lhes interessa saber se vão perturbar pessoas que não têm culpa do conflito laboral. Aliás, quanto mais utentes atingem, maior o sucesso da greve. Ora isto está nos antípodas da responsabilização. Todavia, a greve é intocável. Enquanto o poder dos sindicatos for insindicável, somos (enquanto utentes dos serviços públicos onde há mais probabilidade de greves) reféns dos sindicatos.

Mas talvez o problema seja meu: e minha a miopia analítica.

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu grande amigo Paulo Vilas
Se todos os que em dada altura da humanidade se preocupassem tanto com a legalidade das suas acções talvez, ainda hoje, visses os negros sentados na trazeira do autocarro.Quanto a esta atitude de legalidade discutivel, teve o mérito de me chamar a tenção para algo que eu desconhecia; a possibilidade de plantar trangénicos em Portugal.
Um abraço
ABS

ana v. disse...

Lamento discordar, caro anónimo, mas isso não foi um mérito. A sua ignorância sobre qualquer assunto (problema seu, se o desconhece ou não) não vale um acto desta natureza só para chamar a sua atenção e fazê-lo procurar informar-se. Se assim fosse, uma morte na cadeira eléctrica poderia ser justificada, por absurdo, com o mérito de fazer alguém mais distraído descobrir que a pena de morte existe.
Além disso, não vejo em que é que a legalidade deste acto seja discutível. O campo era propriedade privada, a plantação era legal. A invasão é que não, sob nenhum prisma.

ana v. disse...

Chamei-lhe anónimo porque não vi a assinatura. Sorry.

Anónimo disse...

Cara ana vidal
a minha assinatura encontra-a no final do texto, como é hábito; ABS