29.8.07

Confissões de um governante (socialista)


(Pura ficção)

Acordo todos os dias e as palavras que acompanham o bom dia que me dou são “és secretário de Estado!”. Enquanto saio da cama e vou, ainda estremunhado, para a casa de banho, essas palavras fixam-se no horizonte mental. É o melhor despertar que posso ter, o lenitivo máximo para sacudir a letargia nocturna que teima num prolongamento matinal. A entrada na casa de banho é o seguinte momento de auto-comprazimento. É quando me olho no espelho e noto um orgulho formidável por ter chegado ao pináculo do poder. Como sou importante!

E, contudo, ser secretário de Estado é uma canseira. Muitas as preocupações, muita a obra para fazer nesta terra sempre inacabada. Muitos os remendos para compensar asneira dos meus antecessores, que, seria escusado dizê-lo, não chegam aos calcanhares da minha competência. É uma tarefa ingrata ser governante: há os que querem manter low profile e ninguém os conhece. Só vêm para a praça pública quando, por uma vez que seja, escorregam para a asneira ou distraidamente proferem uma frase assassina. Mas há os outros, os que nutrem uma simpatia excelsa pelo seu ego, aqueles que têm sede de protagonismo. Andam nas bocas do mundo e expõem-se a crítica amiúde. O preço necessário do mediatismo.

Sei do que falo: subi a pulso até ao estrelato. Não posso desperdiçar a oportunidade da ostentação do poder, de saber que existe uma corte que se desdobra em genuflexões à minha passagem. Adoro andar em locais públicos e sentir os olhares que se dirigem sobre mim, as pessoas sussurrando entre si “olha o senhor secretário de Estado”. Tudo isso compensa a canseira de governar, o trabalho hercúleo de tomar decisões, suportar reuniões infindáveis onde os assessores tentam brilhar, numa tentativa ingrata de me roubarem protagonismo. Cansa-me a leitura dos dossiers, a linguagem técnica embrulhada no português tecnocrático que resulta num linguajar hermético. Só leio os dossiers na diagonal. Entrego-os aos assessores para a primeira triagem. Cabe-lhes sublinhar as partes mais importantes. Depois resta-me ler os sombreados a verde alface.

Está na ordem hierárquica: os superiores não podem esgotar o seu tempo com as minudências. Essas são reservadas ao pessoal subalterno. São os operários que desbravam o caminho para a decisão final. É aí que todos esperam a minha sábia intervenção. Destaco-me também no agendamento de tarefas, na descoberta de mais um ínfimo detalhe que merece a atenção do governo. Na esteira do ambiente de claustrofobia benfazeja espalhada pelo timoneiro messiânico que é sua excelência o senhor primeiro-ministro, temos a incumbência de inventar soluções para todos os problemas sentidos pela sociedade. Nunca dormimos sobre os problemas da sociedade.

Somos os engenheiros sociais com suprema inteligência. Nas nossas mãos, uma varinha mágica que asperge milagrosas soluções para espinhosos problemas. Perante o nosso brilhantismo, não há tarefas vultuosas que desencorajem a acção. E se acaso somos pródigos em soluções rápidas, de tal forma que as soluções se antecipam aos problemas, temos a sagacidade de inventar problemas só para não perder a mão à acção governativa. Não consigo perceber como há sectores que nos perseguem com a crítica. Revelam ignorância, incapazes que são de aplaudir as soluções impregnadas de competência que desinteressadamente oferecemos à população. Às vezes sou levado pela tentação da intolerância: os críticos deviam ser calados, pela ingratidão que destilam na crítica fácil.

São cinco anos de fama. O povo comum contenta-se com cinco minutos de fama, quando um dia uma câmara da televisão aparece, inopinadamente, voltada para si. Eu tenho direito a cinco anos de fama, convicto que o senhor primeiro-ministro não vai fazer remodelação intercalar do ministério. São cinco anos que passam a voar. Tenho que aproveitar a sinecura, que o tempo, sempre efémero, vem a velocidade vertiginosa quando o poder se detém entre as mãos. E como é bom sentir o poder entre as mãos! Como as pessoas me dedicam tratos de polé. Embeveço-me quando escuto os subalternos, com o respeito que é devido, dizerem “senhor secretário de Estado”. Os autarcas vêm comer à minha mão. Os empresários marcam reuniões e procuram-me seduzir, multiplicando-se em elogios que afagam o ego enquanto estendem a mão em demanda da minha decisão de que depende a atribuição de mais um subsídio. A comunicação social faz fila à espera das minhas doutas declarações.

Pagam-me lautas refeições em restaurantes que nunca ousei frequentar. Vou ao alfaiate e abasteço-me de fatos caros sem jamais desembolsar um euro. Recebo convites para a tribuna de honra do estádio do maior clube do mundo. Tenho uma vida social intensa, pois o frenesim da governação reserva um quinhão de tempo para a excitação do ego social. E até já consigo aparecer nas páginas das revistas cor-de-rosa e ser recebido de braços abertos pela tão reservada nata social. É tão bom ser secretário de Estado. Agora todos me conhecem, quando antes o meu nome só era conhecido pelo meu ego. Será uma tremenda injustiça se o povo não reeleger o partido socialista. E a injustiça será maior se o senhor primeiro-ministro não me promover a ministro.

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