27.8.07

Muito se aprende no estádio do “dragão”


Não sei por que motivos insondáveis vou a um estádio de futebol ver um jogo do meu clube. Aliás, tirando a herança familiar, ainda hoje não consigo explicar porque sou do Sporting. E mesmo se sou um adepto lúcido, incapaz de ferver durante um jogo, é ao ver o fanatismo, a cegueira dos adeptos sempre descontentes com o árbitro, dos adeptos que batem recordes mundiais de visão à distância, tamanha a sagacidade para discernir pormenores do lado contrário do campo, das claques bestializadas que se dedicam a rituais primários por entrega ao clube que “amam” mais que os entes queridos – por tudo isto, sinto a vontade de afogar a pertença clubista. Como me é superior, vou perdendo a paciência com os jogos da minha equipa.

Ontem lá fui para o meio da turba fanática da agremiação regional da cidade que me viu nascer. Bem no meio dos sócios, daqueles que compram cadeirinha para o ano inteiro. Das poucas vezes que na vida senti o complexo de insularidade. Não vou falar de futebol, do jogo. Deixo a tarefa para os catedráticos da bola que fazem do jogo uma ciência passível de elaborados registos académicos. Porém, antes de ir ao que me interessa, lavro daqui a profunda azia do derrotado. Não custa perder quando é merecida a derrota. Dói muito quando ela é imerecida e nasceu de um erro infantil do guarda-redes da minha equipa. E antes que escorram acusações de incomodidade pela derrota, cá está a confissão em todas as letras: é de azia que se trata.

Concedo: esse estado de espírito entrega-me nos braços do mau humor e influencia o que se segue. É que naquele estádio se aprende muita coisa. Os minutos de espera pelo jogo são um exercício deveras educativo. De tudo o que observei há matéria-prima para um arremedo de análise sociológica. Não do comportamento das massas, ou do entretenimento barulhento que, dizem, faz moda, um espectáculo dentro do espectáculo que não acho atraente. Todos os rituais a que turba se entrega – as coreografias ensaiadas, mote dado pelo frenético speaker, os cânticos das claques que se contagiam aos demais, os assobios impiedosos ao adversário e os nomes feios com que alguns são mimoseados – têm tanto de religioso como de primário.

A horda fica extasiada com os sinais que cimentam a fidelidade canina ao clube que “amam” (como se fosse concebível amar uma coisa – que um clube é uma coisa, por mais que se esbocem lucubrações provando o contrário). Entre os muitos rituais de que fui testemunha, eis o zénite: tudo muito bem treinado, momentos antes do começo do jogo. Uma claque da agremiação regional descerrou um cartaz gigantesco, que se estendia do tecto do estádio até ao relvado. Lá estava o mítico dragão, o inexistente animal que simboliza o clube regional, e as palavras “orgulho em ser tripeiro”. Foi nessa altura que me senti reconfortado, e orgulhoso, em ter nascido portuense – portuense, e não “tripeiro”. À medida que o público se arrepiava com o “orgulho em ser tripeiro”, o speaker entusiasmava as massas, convocava o brio que os adeptos do dito clube sentem por o serem, culminando a vozearia com esta pérola de intensidade metafísica: “aqui está um espectáculo tipicamente tripeiro” enquanto soavam, estridentes, acordes de uma música xaroposa dos Scorpions (“the final countdown”, se o título coincidia com o refrão). Aprendi: que os Scorpions e uma música cantada em inglês, em registo de heavy metal sinfónico, são o protótipo de um “espectáculo tipicamente tripeiro”.

O outro episódio com muita pedagogia passou-se com a inusitada chegada de oito meninas vistosas, brasileiras, mas vistosas pelos dotes físicos e por aquele maneirismo próprio de quem se dedica à profissão mais velha do mundo. Ao meu lado alguém disse, em tom simultaneamente jocoso e orgulhoso, “olha as amigas do Pinto da Costa”. Foi então que percebi tudo. As vistosas meninas, que concentraram as atenções dos olhares ávidos em redor, com as formas esculturais e os umbigos à mostra à mistura com decotes provocadores, carregavam consigo uma enorme carga simbólica. Os investigadores do “Apito Dourado” têm que frequentar o estádio do “dragão”: há ali sinais reveladores da trama. É que algumas das meninas da noite traziam cartões de sócio, daqueles que dão direito a lugar fixo para todos os jogos.

Como não se imagina que elas tenham nascido adeptas do clube regional, e por mais que seja o esforço imaginativo, é pouco crível que sejam de alma e coração “tripeiras”, a posse dos ditos cartões diz muito. Como há gestores de empresas que têm direito a cartão de crédito da empresa, as meninas que, de acordo com o processo “Apito Dourado”, são a sobremesa a que árbitros comprados estão habituados, têm direito a um “fringe benefit”: um cartão anual no estádio do “dragão”. E sempre tem a vantagem de conhecerem os homens do apito com quem vão privar de seguida.


1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Divertida e interessante crónica! Não te imaginava capaz de te misturares com os fanáticos da "agremiação regional" num jogo do Campeonato Nacional! Eu não seria. Terei mais pudor...
Notas:
1- O Sporting perdeu não por um erro infantil do guarda-redes, mas de um erro pouco infantil do árbitro.
2- O "Final Countdown" não é dos Scorpion, é bem pior: é dos inenarráveis Europe! Do pior que é possível encontrar no arquivo da piroseira pop-rock (?!?) internacional. O tema e o grupo conjugam-se na perfeição com a dita "agremiação regional".
3- "agremiação regional": parabéns! Esta designação é impagável.