9.8.07

Nas ameias do sono


Dormia, por enquanto. Refugiava-se dos dias claros que espelhavam a sombra que teimava em seguir todos os seus passos. Não havia momento em que a luz cristalina se somasse. Os dias todos tomados pelo nevoeiro carregado que aturde os sentidos. Andava pelas ruas e chegava a casa sentindo a roupa carregada da fuligem dos plúmbeos dias que tinham um trago doentio. Ao fim do dia, quando a água do chuveiro escorria pelo corpo, via as partículas negras que toldavam a água assim que vertia pelo ralo. Os dias assim passados eram torturantes cancelas para lugar algum. O sono, um refúgio.

Ao menos, durante o sono, podia vogar em paisagens idílicas – acreditava. Nuvens acasteladas que conseguia pisar. Praias exóticas onde os odores dos frutos se misturavam com a maresia matinal. Ou uma viagem longínqua até às serranias perdidas cobertas de neve, a pureza gélida do ar que iria estranhar, tão entranhado o negrume dos dias citadinos que perfumava as faces carrancudas que via todos os dias. Aliás, ele próprio face carrancuda, sem destoar.

O sono demorava a chegar. Havia insónias telúricas, obstáculo herdado do dia que parecia perene, entrando a fundo nas entranhas da noite. Todos estes dias da atroz luz diurna perfurando a quietude da noite eram a espada dos dias eternos que existem no Verão árctico. Os minutos alongavam-se num tapete de impaciência. Tentava suster a respiração mental, como se trouxesse, por magia, o sono ambicionado. Debatia-se nos lençóis, amarrotava a cabeça com a almofada, sufocando a mínima réstia de luz que entrava nos olhos. Ia ao frigorífico, julgando que dessedentar fosse o truque fatal para asfixiar a insónia incomodativa. Estendia as pernas no sofá da sala; podia ser que o sono viesse sem avisar, atraiçoando a insónia demorada. Esgotavam-se as tentativas desesperadas de convocar o terapêutico sono: vinha à varanda receber na face o frio da madrugada, na tentativa vã de domar a insónia torturante.

Estava já longa a madrugada quando os sentidos começaram a confundir as imagens. Sem dar conta, o sono vingara. Tarde demais para um sono apaziguador. Seguia-se mais um ignóbil dia da semana, com a sequência de passos que configuram o indizível quotidiano. Escassas horas com os olhos fechados, refugiado do mundo que o cerca. Poucas horas para se deitar nas ameias do sono que o protegem contra a estridência dos dias claros, das pessoas desfiguradas, das palavras ditas pelos outros que agridem a toda a hora. Ao menos no sono há lugar a gentis personagens que sabem o que é o afecto. No sono, esperava ele, os montes e vales e as cidades também só fossem lugares de luz vítrea, caras sorridentes, trato cortês.

Sonhava que enquanto dormisse houvesse lugar para um sítio diferente, em tudo nos antípodas do lugar irrespirável que o acolhe. Mesmo sabendo que a matéria onírica é o esbanjamento dos dias acordados, envolvia-se numa luta interna, incapaz de derrotar os querubins que impediam o sono. A cada noite de insónia demorada, acumulava-se o cansaço, forças exauridas pela dupla face do pouco sono e de, através desta escassez, voltar a face ao castelo de sonhos que oferecia a alternativa à destemperança dos dias corridos.

Haveriam as coisas de piorar. Já nem o sono era o refúgio prometido. E se nem as insónias bastavam, como se fossem prolongamentos dos dias hediondos que queria apenas olvidar, eram as poucas horas de sono salpicadas por pesadelos grotescos. Pesadelos que faziam do espaço onírico um lugar ainda menos recomendável que os dias plúmbeos de que pensava escapar através do sono. Deixara de ser um refúgio, o sono; ganhara a purulenta imagem de masmorra onde se acumulava a carne podre dos prisioneiros, um cheiro fétido da insalubridade, a intimidade forçada com as ratazanas que anunciavam doenças letais. E os carrascos sem cara que, sem aviso, tiravam um prisioneiro do cadafalso para a avenida dos horrores. Onde tudo, por fim, terminava.

Já nem sabia. Se preferia o traço indelével dos dias sombrios, ou o sono que deixara de ser refúgio e passara a doloroso martírio.

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