2.8.07

O dinheiro corrompe?


O direito à incoerência é um direito como outro qualquer. Os que são apanhados no alçapão da contradição expõem-se à exercitação da memória. Vai-se às profundezas do baú recuperar coisas ditas, frases feitas, participação em manifestações e outros fragmentos para recordar como o que hoje é dito ou feito nega o passado recordado.

Os líricos que vivem espalmados num castelo de nuvens, e que continuam empenhados na fé de que o vil metal resume todos os males do mundo, não se cansam de apregoar que o dinheiro corrompe. É frequente a razão ser coroada nas suas férteis cabeças. Há muito boa gente que é capaz de se vender por meia dúzia de dinheiros. Tive um professor na universidade que, rumando contra a maré, assegurava que todos somos corruptíveis; o que varia é o preço pelo que nos deixamos corromper. E se há alguns que se prostituem por pouco, outros gabam-se de um elevado sentido de dignidade e elevam a fasquia. O tal professor, em jeito de metáfora, confessava que até ele tinha um preço: que fizessem dele rei de Inglaterra.

Não dou razão às aves agoirentas que sentem cada nota, cada moeda a destilar a pestilenta vilania que corrompe a pessoa. Mas às vezes tenho que sucumbir aos predicados da sua teoria. Há ocasiões em que têm razão, ou que me é conveniente dar-lhes razão, pelo triste espectáculo de umas personagens mediáticas que ora dizem uma coisa, ora fazem outra bem diferente. E quando toca a serem levados pelo encanto de uma conta bancária recheada de euros, algumas dessas figuras têm uma fantástica capacidade para passarem uma esponja pelo rasto que foram deixando. Militâncias activas, daquelas que estão na moda: o nefando capitalismo, a perversa globalização, os capitalistas que só querem mais e mais riqueza e são imunes às dores de consciência pelos desvalidos deste mundo – eis alguma da retórica de que são campeões. Constroem uma imagem pública, uma certa intervenção cívica até, agarrados a este linguajar.

Direito que lhes assiste. Desconte-se algum oportunismo que emerge das lições de marketing que recebem: em alguns artistas, este sucedâneo de intervenção cívica cai no goto do público e arregimenta mais clientela, que confunde prestações artísticas com envolvimento em causas politicamente correctas. E assim se levanta a ponta do véu: as militâncias a que alguns se colam são ardis montados para melhorar as vendas. Afinal, o capitalismo denunciado tem nesses detractores expoentes de primeira água. O singelo povo tem um adágio que sintetiza o descalabro em que são apanhados estes figurões: “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

Eles dirão que não são vendilhões que se deixam inebriar por meia dúzia de cobres. E que não se vendem aos encantos materiais do combatido capitalismo. Que jamais chegam a entrar no panteão dos capitalistas, que tanto vituperam. Dirão, apenas, que recolhem uma migalha, a parte a que têm direito pela produção artística de inestimável qualidade. Será a paga pela prestação de serviços que apanha com o adjectivo prestidigitador: público. Limitam-se a dar o rosto pela politicamente acertada redistribuição de rendimentos. São os imensamente ricos capitalistas que os tentam para contratos milionários. O pecúlio que lhes cabe? Uma ínfima parcela da riqueza acumulada dos capitalistas que oferecem o contrato publicitário. Na redistribuição da riqueza, há socialismo em acção, justiça social a troar, audível. O mesmo socialismo em acção não é um apeadeiro quando chega a esses artistas. É estação final. O socialismo em acção perde gás e fica emoldurado nas diáfanas afirmações que embelezam discursos que excitam as massas e não têm reprodução prática.

Há tempos foi o contestatário Abrunhosa que deu a cara pelo Banco Millennium. Ontem, às compras no supermercado, eis senão quando mais um episódio de espanto veio bater à minha porta. Dando azo às tentações consumistas que me entregam de bandeja no altar das marcas americanas, saltou para dentro do carrinho de compras um pack de doze latas de Coca-Cola. O invólucro de plástico acamava a surpresa: Da Weasel são o rosto da empresa norte-americana, no anúncio de um concurso qualquer que premeia os que beberem mais refrigerante acastanhado durante o Verão. Será o mesmo Packman (o vocalista do grupo) que erguia o punho numa manifestação qualquer de rua e gritava “la lucha contínua, hermano”, fazendo lembrar esse ícone da juventude que ficou conhecido pelo pacifismo dos seus métodos, Che Guevara?

Exercício especulativo: hoje, Che Guevara seria um estandarte da McDonald’s? Ou, descendo do altar da especulação, o sintoma fatal: somos todos burgueses.

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