16.8.07

Torga, as dores de parto de um Portugal doído


Conheço mal a obra de Miguel Torga. O pouco que li já faz muito tempo, pelo que sobram algumas memórias difusas. Por estes dias o escritor voltou à ribalta, por ocasião do centenário do seu nascimento. As evocações da vasta obra de Torga sucederam-se, na imprensa e em celebrações mais ou menos oficiais agraciadas com o supremo desprezo do governo.

Tive a oportunidade de retomar o contacto com a obra de Torga através de um documentário que passou na RTP2. Dos excertos declamados e dos testemunhos produzidos, perpassa a imagem de um escritor atormentado com o Portugal que o viu nascer. Alguns disseram-no: uma relação de amor-ódio. Daquelas relações mal resolvidas, em que a personagem não se consegue libertar do espartilho que é o foco da sua atenção. Muito se demora no alvo, ainda que seja para dele desdenhar, para ressaltar os seus lamentáveis traços. Só que a todo o momento a ele regressa, ainda que dele se queira distanciar, confessando a amargura pela incapacidade de se entregar nos braços do Portugal que merece o seu desamor.

E, no entanto, Torga descreveu à exaustão a paisagem, a rica paisagem que o encantava. Parecia haver na sua obra o contraponto entre a prolífica, e terapêutica, paisagem e o alvo maior das fraquezas, quem a habitava, os portugueses. Por isso, os especialistas discutem se há na obra de Torga um bucolismo militante, uma paixão assoberbada pela paisagem tão variada para território tão exíguo, apoucando os habitantes que são remetidos a uma condição de pequenez, a fonte do Portugal adiado. Em parte do seu testemunho, Álvaro Barreto oferece o exemplo do Douro como negação do bucolismo de Torga. A pungente viagem pelas escarpas do Douro, talhadas a pulso e sangue pelos trabalhadores explorados, será, no entender de Barreto, a prova de que o escritor se distancia do bucolismo.

As palavras cruas de Torga querem mostrar que a paisagem foi sulcada pelo sacrifício dos homens submetidos ao jugo dos patrões insensíveis. A paisagem, sem dúvida majestosa, só o é por acção humana. Para Barreto, o escritor sagrou a grandiosidade da paisagem exaltando, ao mesmo tempo, o penoso desbravar do xisto, a luta contra o terreno acidentado e o clima agreste, numa palavra, como os homens tiveram que dobrar a severa paisagem para dela fazerem o vitral que extasia quem se detém diante dela. Negar-se-ia provimento aos que vêm na obra de Torga uma profundo pessimismo antropológico sobre a portugalidade. Afinal haveria uma gesta de lusitanos heróis, e não apenas aquela gesta de descobridores que acorrenta gerações e gerações ao estúpido mergulho no passado que já não regressa.

Retenho a atenção na dialéctica entre a paisagem e Homem, sem curar dos pormenores neo-realistas do muito suor derramado, das penitências impostas em incontáveis jornas de trabalho em que esforçados operários da paisagem a foram tecendo, pacientemente, do rude nada à monumental escadaria que se encavalita no Douro, como a conhecemos hoje. A interrogação é esta: faz-se a sagração de uma paisagem imponente, desvalorizando o contributo humano, ou entroniza-se o factor humano em desvalorização da paisagem que desfila diante dos olhos dos visitantes?

A paisagem não seria o que é sem o contributo dos homens que a cinzelaram. Parece indubitável. Pertencer ao elenco do património da humanidade é prova irrefutável. Contudo, a paisagem em bruto existe antes da intervenção humana. Heroicizar o Homem, desvalorizando a paisagem, é uma apreciação enviesada da natureza duriense. Aos neo-realistas será reconfortante a exaustão das palavras que descrevem, ao pormenor, a dureza das condições a que se sujeitaram os homens que fizeram os socalcos, conquistando a inóspita paisagem para o altar das monumentais construções humanas.

Eu prefiro olhar para o lado escondido da equação. Os trabalhadores sacrificados foram actores maiores da gestação da paisagem que abraça o Douro. Mas foram os actores necessários, os actores que se entregaram no sacrificial altar das pedras amovidas, do xisto amaciado, das talhadas de montanha subtraídas para edificar os degraus onde viriam a ser plantadas as vinhas. Foram aqueles homens os rostos anónimos da paisagem demoradamente esculpida. Não fossem eles, a tarefa teria cabido a outros quaisquer, a outras gerações. Aquela foi a encomenda de que um cantinho da humanidade, num determinado momento, foi incumbido. A variável independente continua a ser a paisagem intervencionada.

Sem comentários: