4.9.07

Postais britânicos (I)

Já não vinha a Inglaterra há um ano. Entretanto mudou o primeiro-ministro. Blair, proto-herói da esquerda moderna, acalmado por alguma direita trauliteira que simpatizou com a decisão de entrar na guerra do Iraque, cedeu o lugar ao delfim que esperava há tempo demasiado. Gordon Brown é mais discreto, tem uma ligeira gaguez que todavia não é imperceptível, e prometeu uma viragem à esquerda. Ainda ontem ouvia, talvez toldado pelo vinho que escorreu ao jantar, um inglês adepto do partido do governo desprezar Blair, que nem sequer vai ficar na História, a não ser pelas piores razões – ter alinhado com o sacripanta do Bush, a teimosia da guerra do Iraque, e passar férias com pessoas estupidamente ricas e estúpidas em si, pela ignorância que destilam (ocasião para troçar de Berlusconi, como se já não fosse cadáver político). A memória é curta e cheia de conveniências. É ela que cultiva a vertiginosa descida de estrela reluzente a personagem que entra para o firmamento do anonimato.
Reparei, no trajecto londrino entre o aeroporto e uma estação de comboio, que os caixotes do lixo desapareceram. Andei largos minutos a carregar as malas com um papel amarfanhado numa das mãos, os olhos atentos em busca do primeiro caixote do lixo. Podia ter deixado o papel esquecido no chão, simulando um distraído escorregamento do papel mão abaixo, fazendo de conta que não tinha reparado que estava a poluir. Seria uma poluição inadvertida. E sempre poderia sossegar a consciência ambiental, caso me ela viesse incomodar, que à falta de receptáculos para o lixo ele não podia continuar a empestar as minhas mãos.
Seria a inovação sintoma da mudança de ares no governo? Podia ser que Brown não gostasse do efeito inestético dos recipientes que acolhem o lixo. Fiquei intrigado. Não só pela liquidação sistemática dos sítios onde as pessoas podiam acamar o lixo. É que as ruas e os túneis do metro estavam impecáveis, sem sujidade à vista desarmada. Só uma solução possível para o mistério: a substituição dos incaracterísticos e imundos receptáculos por brigadas de limpeza que vasculham todos os cantos da cidade à cata do lixo, graúdo e minúsculo, que os transeuntes deixam para trás. A solução teria o condão de combater o desemprego, embelezando uma política que quando vem atrelada ao adjectivo “social” atrai a simpatiza dos votantes e eterniza socialistas no poder. A ser verdade, seria o truque miraculoso para os prometidos 150.000 empregos que o “Eng.” Sócrates garantiu se lhe saísse em prémio a sinecura de primeiro-ministro.
Para adensar o mistério, não havia brigadas de pessoal de limpeza a patrulhar as ruas e corredores do metro na apanha dos restos que deslustravam o entorno. Podia-se pensar que a extinção dos locais adequados para deixar o lixo tivesse dado lugar a um recrutamento maciço de lixeiros – ou, para usar a linguagem politicamente correcta, e mais anódina, dos socialistas de todo o lado, “auxiliares de recolha do lixo”, ou “técnicos de alindamento do entorno”, ou qualquer fórmula semelhante.
Só restava uma hipótese: as pessoas foram instruídas para guardarem o lixo consigo. Todo o lixo que fazem desde que saem de casa ou do trabalho é arquivado, mas escondido dos olhares alheios, até chegarem a casa onde se encontra o inestético balde que o vai acolher. Onde é guardado nos interstícios, é matéria que não indaguei. Nos bolsos, ou em sacos onde se acumulam as sobras, ou uma outra solução que escapou ao olhar furtivo. É admirável como a mudança num espaço de um ano trouxe efeitos visíveis. Quando havia baldes do lixo espalhados por Londres, as ruas e corredores do metro eram sujos – não tanto como nas cidades lusas, ainda assim. Para além do inconveniente inestético, que os locais onde o lixo é depositado são peças de mobiliário urbano que não agradam à vista. Estaria quase convencido da bondade e da eficácia da do novo primeiro-ministro – não fosse dar-se o caso de, por mais que tente, não conseguir vestir a pele de socialista.
Após largos minutos sem avistar um balde do lixo onde deixar o papel que começava a entranhar algum do suor da mão, só a entrada no comboio trouxe a presença do utensílio. Feita a viagem, cheguei a Portsmouth e vi imediatamente baldes de lixo. Afinal não era Brown o arquitecto da estética purga de baldes do lixo. Terá o cunho do mayor de Londres. Fiquei sossegado por não ter que tecer loas ao delfim de Tony Blair.
Não consigo deixar de pensar na facilidade com que as pessoas se adaptam. Londres, por paradoxal que pareça, ficou a ganhar com o extermínio dos baldes do lixo: é que o lixo desapareceu das ruas. Detenho-me por uns minutos, a imaginar o que aconteceria se a medida fosse adoptada na Lusitânia.
(Em Portsmouth, Inglaterra)

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