5.9.07

Postais britânicos (II)


Algo está errado quando um país reclama a condição de prósperas liberdades e se apura a multiplicação de liberdades mutiladas. É o que mais me inquieta quando estou de visita às ilhas britânicas e percebo que as câmaras de vigilância estão espalhadas por todo o lado. Dizem os que condescendem que é o preço necessário para defender a liberdade contra aqueles que insistem em atentar contra ela. A justificação não convence, nem a inversão dos papéis: a liberdade está tão restringida e as câmaras de vigilância (e outras medidas de supressão das liberdades em nome da segurança) tão vulgarizadas que a segurança ganhou o lugar da regra e as liberdades foram despromovidas à condição de excepção.


O argumento dos defensores do clima de segurança apertado é simplista: por causa das câmaras de vigilância, os investigadores de crimes têm mais possibilidades de os desvendar. Quando se deram os ataques terroristas no metro e num autocarro em Londres, foram as CCTV (a sigla por que são conhecidas) que ajudaram a descobrir os autores materiais dos atentados. E ficam todos exultantes – investigadores criminais, políticos que sancionam o clima securitário, e cidadãos que aceitam a padronização das restrições às liberdades – com o sucesso nas investigações. Apaziguados por se descobrir quem praticou os crimes hediondos e como foi orquestrada a operação terrorista – ou um qualquer outro crime que tenha sido apanhado nas malhas das câmaras de vigilância.


Tão entusiasmados, nem dão conta que o olhar está focado no lado errado do problema. A criminalidade está a aumentar e nem a panóplia de câmaras de vigilância é suficiente para impedir ataques terroristas. A consolação que resta aos defensores do gigantesco sistema de vigilância é saberem que têm meios para chegar aos fautores do mal – quando eles não se desvanecem em cinzas com a detonação da bomba que carregam. Pelo caminho, quem quiser cometer crimes ou planear um insidioso ataque terrorista não recua nas intenções só por saber que existe uma rede infindável de câmaras de segurança. Depois choram-se as vítimas, uma inevitabilidade contra a qual as CCTV nada podem. No rescaldo, não se garante a segurança e as liberdades esfumaram-se. O pior dos dois mundos.


As câmaras de vigilância hão-de servir para vários propósitos. Há as que são objecto do olhar zeloso de funcionários que passam o dia de trabalho a olhar para o que é transmitido por essas câmaras; há muitas outras que só são passadas a pente fino quando a localização de um crime obriga a rebobinar imagens gravadas. Na ânsia de encontrar meliantes em plena prática delituosa, ou apenas na corriqueira vigilância quotidiana feita em remotas e obscuras centrais de vigilância, todos somos potenciais criminosos, todos estamos expostos à lente perfunctória de uma câmara de vigilância. Subverte-se o princípio e a excepção, uma vez mais. E pouco sobra de um princípio do Estado de direito, de que o Reino Unido foi marco histórico: a presunção de inocência.


Sermos actores sem o sabermos, a partir do momento em que uma câmara de vigilância, escondida ou visível, nos filma, é uma privação da liberdade. Um beijo furtivo entre um casal de namorados é espiolhado na central onde as câmaras desnudam o que se passa nas ruas. O distraído, ou não, acto de tirar com o dedo uma excrescência do nariz em plena estação do metro há-de ser alvo de troça dos funcionários que espiam as câmaras. E se alguém estiver a ler um livro enquanto aguarda pelo autocarro, um cinzento zelador da segurança colectiva tomado pela curiosidade voyeur descobre o título do livro. São pequenos actos que não ameaçam a segurança, hão-de dizer os mais condescendentes. E dirão mais: se essas pessoas não cometem crime nem atentam contra a liberdade de todos, se nem aspiram à condição de terroristas, não têm razão para melindre por aparecerem, sem o quererem, nos ecrãs da central de segurança. Eu vejo o problema por outro prisma: se não sou sequer suspeito de nada, porque hei-de ver os meus passos, os meus actos, os meus tiques, as minhas leituras espiolhados de uma forma que desconjunta o meu direito à privacidade?


O problema tem a dimensão gigantesca quando tece as teias do combate ao terrorismo. E tem, também, uma dimensão micro, que junta os ingredientes para um moralismo intrusivo que vem contra a corrente da tradição liberal soprada desde as ilhas britânicas. Há dias vi numa rua um insólito sinal de trânsito pedonal. Ameaçava com multa de oitenta libras a quem tenha “bad social behaviour”. Não sei se existe lei a definir os critérios do mau comportamento social, ou se os juízes chamados a julgar um caso destes o fazem pela sua cabeça e os seus padrões. Nem interessa. A mensagem do sinal de trânsito é que as pessoas têm que andar bem comportadinhas nas ruas. Não há lugar ao mínimo deslize, ou a carteira tem que dizer adeus a oitenta libras. As câmaras de vigilância lá estarão preparadas para vomitar todos os maus comportamentos sociais. Um cutelo permanente sobre as cabeças dos “súbditos”, forçados a uma vida dentro de um colete-de-forças.


É então que vem à memória um jantar onde estavam amesendadas pessoas de variadas nacionalidades. Um chinês era acossado com perguntas e mais perguntas sobre a situação política na China. Alguém interrogou se ser membro do partido comunista obriga à delação. Ele anuiu. Eu digo que é a forma menos sofisticada, sem a ajuda da tecnologia, de espalhar câmaras de vigilância por todo o lado.


(Em Reading, Inglaterra)


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