30.10.07

Envilecia

O tempo tecia a teia onde os vícios se amansavam. Dobravam os dias, densa a penumbra da experiência; julgava, até, que os anos acumulados, todas as decepções arquivadas e náuseas pelas entediantes curvas do mundo, eram lugares onde empedernia. As coisas passavam-se ao contrário. Contra as suas forças, contrariando a geometria da indiferença, notava uma consumição da alma pelos desatinos que esbarravam no peito. Reagia: a amargura destilava, abundante, espreitando de lado para os eventos que os dias ofereciam, gravitando na órbita de um implacável pessimismo da espécie.

O pior é que discernia envilecimento. Porventura, ingrediente da reacção contra o funesto que emergia do fundo do lodaçal, a espuma fétida que provocava náuseas repetidas. Envilecia não por maldade inata. Envilecia, porque as rugas e os cabelos brancos eram prova do desfalecimento diante dos olhos que o fulminavam, mesmo que os raios troantes nem lhe fossem dirigidos. Era deles vítima. Todos os dias eram dias de tempestade, com a feérica trovoada a despejar relampejantes raios que o feriam. As feridas sempre abertas, as tempestades constantes impedindo a cicatrização.

Quase desaprendera de sorrir. Muito do tempo era pasto para o desassossego que abria ainda mais feridas, um choro interior interminável. Descobrira um deserto de emoções a corroer-lhe as veias, dissolvendo o sangue num soro transparente, uma errante rota com os passos trocados, sem perceber se havia destino perseguido ou apenas o vogar aleatório. Umas vezes no conformismo de ser empurrado pelo vento dominante. Outras vezes na teimosia de remar contra as fortes águas sopradas do mais profundo por marés imparáveis. Às vezes olhava no espelho e não reconhecia a face que espreitava do outro lado. Era um estranho dentro de si mesmo. Quando olhava para trás e fazia o rescaldo da vilania a que se entregava.

Uma força incontrolável apoderara-se dos sentimentos, dos sentidos, dos gestos. Comandava as palavras. Quantas vezes dava por si a terminar frases que eram sentenças avassaladoras para quem menos as merecia. E por mais que houvesse impulso para a retractação, a exculpação tardava até que perdia oportunidade. Ganhavam espessura os traços odiosos que tinham o condão de afastar quem lhe queria bem. Os afectos perdiam-se no seu rasto, a cada passo mais ténue, já quase uma distante memória. Do mais alto de si gritava uma inexpugnável e fria parede de aço, um castelo impenetrável de onde fitava a sua solidão.

E, contudo, sabia: que a deriva pelo envilecimento, o roteiro das emoções ausentes, o ensimesmar suicidário, tudo era o funesto oceano onde navegava. Nada apascentava o bem-estar interior. Simulava soluções para provocar o reencontro com o que julgava ser o seu eu autêntico, aquele que aprendera a conviver consigo nos anos demorados. Mas desconfiava: que arrepiara caminho pela artificialidade da terapêutica, como se fugisse do lugar onde se acantonara e assim fugisse de si mesmo, daquilo em que se havia transformado, sem certeza de regressar ao que era – nem sequer com a certeza de que lá desejava chegar. As sombras negras não desistam de preencher o horizonte. Para onde quer que olhasse, pontuavam as dúvidas lancinantes, interrogações que se sucediam com voracidade, suplantando as respostas que não passavam de esboços.

Algures por entre a desorientação impante, amordaçado pela tempestade cerebral que o domava, os pontos cardeais esfumavam-se na penumbra. Cada passo, dado com hesitações, comandado pelas dúvidas do terreno pisado. Em redor só discernia uma plúmbea atmosfera que impedia retratar os rostos, as casas, as ruas, as árvores. Podiam ser notáveis os campos de flores que se estendiam na frondosa paisagem, que o nevoeiro que repousava diante de si ocultava a visão plácida. Em vez das cores garridas e do perfume das flores, apenas a angustiante ausente claridade que o acometia à labiríntica existência.

A certa altura perdera a noção das certezas. E até o envilecer metódico se estremunhava num dilema: apenas reacção hostil a um mundo condoído, ou já inércia que o domava, transformando-o em protagonista do seu mundo entregue nos braços do opróbio incontrolável?

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