2.10.07

Haveria de confessar: não desejo sucesso à presidência portuguesa da União Europeia


Os que se predispõem para o pensamento positivo hão-de perdoar esta confissão impregnada de destrutivismo. É que me incomoda a soberba dos vaidosos. Perturbam-me as maquinações que engendram para virem à superfície como heróis, quando são outros os credores dos encómios – quando os louvores são devidos. Na política, os protagonistas especializam-se na arte narcisista de recolher os louros que pertencem a quem trabalha por eles na retaguarda. É por isso que me causa náusea a composição de imagem deste primeiro-ministro, ainda por cima por lhe ter calhado em sorte um semestre de farta exposição internacional que alinda a imagem para efeitos domésticos.

Quando olho para trás, para a conjugação de circunstâncias que fazem ou destroem a carreira de actores políticos, noto que este primeiro-ministro teve uma inaudita sorte ao jogo. De como um típico carreirista político foi subindo na escada das oportunidades estendida pela militância partidária, vindo do nada para a ribalta que já nem sequer se limita às fronteiras da paróquia nacional. E poderei chocar algumas consciências, mas não resisto a soltar este diagnóstico: de como a mediocridade vinga, derrubando barreiras e acamando no púlpito do poder. Porventura, à imagem do que somos.

Dizia, a este primeiro-ministro calhou a taluda da sorte. Se não tivesse defrontado o lastimável Santana, não teria chegado à maioria absoluta. Há quem defenda que até a vitória de Cavaco foi o melhor resultado que poderia ter ambicionado. A sorte grande continuou: seis meses na ribalta internacional, pois o calendário fez coincidir o mandato com o semestre de presidência da União Europeia. Como se a sorte não fosse bastante, caiu-lhe nos braços o explosivo dossier da Constituição da União Europeia. É toda uma Europa que está espera dos bons serviços de Sócrates e entourage para desatar o nó que prendeu a Constituição – e o futuro da União Europeia – a um impasse. Tudo a ajudar a compor a imagem – sempre a imagem, só a imagem – do “Eng.” Sócrates.

Da sorte dos outros poderei, quando muito, exalar uma inveja sem chegar aos limites do doentio. Aborrecem-me os que esbarram na antítese do azar. São herdeiros da ventura, sem quase nunca se esforçarem por marcar encontro com ela – cai-lhes no regaço, aleatória. Parece que há predestinados para a fortuna da vida, como se a sorte estivesse marcada no roteiro por uma qualquer inspiração divina, ou mercê do acaso, ou determinada pelo destino – consoante crenças e convicções pessoais. Este primeiro-ministro encaixa-se no protótipo. Não bastasse a sucessão de acontecimentos que sublinham a sua fortuna, somos cercados por uma orquestração bem maquinada que embeleza a figura. Uma composição de imagem muito bem elaborada, extenuante, que consome as energias do público e lhe desvia a atenção para o que interessa – saber o que é feito, avaliar o hiato entre os anúncios pomposos e as realizações, desmerecer a fatuidade da imagem oferecida às massas.

É por tudo isto que venho aqui oferecer mais uma prova de anti-nacionalismo ao confessar o desejo íntimo de que a presidência portuguesa da União Europeia fracasse nas negociações para desatar o impasse da Constituição. Convém elaborar a explicação. Convictamente europeísta, interessa-me que o problema da Constituição da União Europeia seja resolvido. Para a fazer avançar. E porque a Constituição reforça as garantias dos cidadãos contra quem exerce o poder político. Não me preocupa se o impasse só for resolvido no próximo semestre. É o preço necessário para não ter que suportar mais bazófia do primeiro-ministro, que logo chamaria a si o sucesso das negociações e exportaria a sua “aura” messiânica da pequenez lusitana para a grandeza do território europeu. É que se já me cansa a manipulação de imagem para consumo doméstico, imagino como seria redobrada a canseira se houvesse que levar com o novo herói europeu – pelo menos, com a feitura de imagem nesse sentido.

Dizia-me ontem uma colega, uma das que partilha comigo o ensino de Organização Política da União Europeia: “era bom para nós que o Tratado [que vai ressuscitar a Constituição da União Europeia] ficasse associado a Lisboa – o Tratado de Lisboa”. Compreendo que haja quem ponha o “interesse colectivo” acima de alergias pessoais. A personagem a quem calhou a rifa de primeiro-ministro, com a sua interminável prosápia, fermenta tamanha irritação pessoal que não me consigo deixar levar pela excitação colectiva dos que antecipam um Tratado de Lisboa registado, a letra de ouro, na historiografia da União Europeia. É-me superior.

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