3.10.07

Na vanguarda social, estou eu


Sem aviso, levanta-se a cortina e o palco mostra a sua nudez. À minha frente, espraia-se um cortejo feérico com um funambular dragão que vomita chamas que me encandeiam. As chamas deixam para trás um rasto, na forma de uma palavra a pesar sobre a cabeça, ininterrupta: “incoerente – incoerente – incoerente”. Atónito pela incensada palavra que teima em vaguear sobre mim, interrogo-me das razões de sentença tão lapidar. É tão vitorioso o sentimento ao denunciar incoerências alheias, que a perplexidade toma conta de tudo quando a acusação esbarra no fautor, atingindo quem tanto se gaba de arruinar vaidades alheias pela detecção de incoerentes ideias ou palavras.

Pergunto aos algozes pela fonte da incoerência de que venho acusado. Da côncava abóbada do teatro desce um holograma. Retrata notícia publicada em jornal:

De acordo com os dados do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, citados pelo “Diário de Notícias”, só 438 pais beneficiaram de subsídio de paternidade em 2006. Se atendermos a que nascem por ano cerca de 100 mil bebés, o subsídio de paternidade não abrange mais de 0,5% dos pais.

O subsídio de paternidade é património genético do assistencialismo moderno, que vem repensar o Estado social europeu adicionando-lhe novas componentes que tanto agradam ao império do politicamente correcto. Não é só sobre o subsídio de paternidade que a notícia devia reflectir. Devia indagar sobre a percentagem de progenitores que beneficiaram da licença parental, duas semanas de paragem na actividade profissional para acompanhar os primeiros dias de vida do bebé, ajudando na dolorosa recuperação do parto que espera a mãe. Para já ainda é um direito garantido aos pais, dependente de requerimento para que possa ser usufruído. Que ninguém se surpreenda que um dia destes passe a ser coutada do obrigatório, com os pais forçados a ficarem em casa durante as duas semanas que se seguirem ao parto.

Não é só pela imposição que me desagrada este activismo social. Ele traz a compensação dos votos, tanta a gente seduzida pelo vanguardismo social e pelo acréscimo de bem-estar do agregado e de cada progenitor. Mas, ao ser impositivo, é cerceador do livre arbítrio de quem concebeu o nascituro. Entramos, de supetão, no paternalismo que prolonga a adolescência dos cidadãos para a sua idade adulta. Um novo paternalismo: já não não filial, um paternalismo que, querem-nos convencer, é cimento da cidadania.

Este activismo social, que se desmultiplica em direitos, subsídios, assistencialismo que perpetua a dependência de quem generosamente presta tantos apoios, acho-o nauseabundo. Educados para conviver com a tutela garantística do granítico Estado, nem damos conta de como a pulverização do Estado assistencial é uma ilusão, um furto insidioso ao livre arbítrio individual, uma sementeira de votos que fideliza eleitorado e eterniza monopólios de poder. De cada vez que estendemos a mão às migalhas, mas generosas, aspergidas pelos burocratas magnânimos, hipotecamos a emancipação que uma cidadania independente, sem amarras à paternal âncora do Estado, supõe.

Estes fragmentos servem para desnudar a incoerência que veio bater à minha porta, quase três anos depois de ter sido pai. Diz a notícia que o número de progenitores que solicita o subsídio de paternidade “(...) está a crescer de ano para ano, embora de forma muito lenta. Em 2004 contavam-se apenas 391 casos, que passaram para 413 no ano seguinte, chegando aos 438 em 2006.” Assim tomei conhecimento que em 2004 estive entre a escassa minoria dos que se saciaram no subsídio prometido. Fui eu e mais trezentos e noventa – uma ínfima percentagem da totalidade dos nascimentos, nem meio por cento. Não que só agora tivesse descoberto a incoerência ideológica que me apanhou pelo caminho, pois entre 2004 e o dia de hoje não mudei de ideias quanto ao estafado assistencialismo. Como é de bom-tom, há explicações para o tiro no pé: primeiro, a emoção do acontecimento aconselhava duas semanas de pausa no trabalho (e não, não é preguiça, nem ausente disposição para o trabalho). Segundo, a graça de acompanhar todos os segundos do início da vida da minha filha. Terceiro, já que pago tantos impostos, por uma vez me fosse trazida contrapartida. O materialismo falou mais alto que as convicções ideológicas. Desbaratando-as?

Para escapar do desconforto da incoerência – hoje posso ser acusado de ser mais um a dizer “olha para o que eu digo, não para o que eu faço” – a grata percepção que estou entre um escol, uma elite informada que tem conhecimento da existência destes apoios aos pais que o acabaram de ser.

Sem comentários: