10.10.07

O Che é só um produto de marketing


É curioso como até os que se aperaltam com a laicidade atrelada às ideias se deixam seduzir por misticismos, mitos convenientes que se entrevêem numa condição divina. Este assunto interessa-me, tão debruçado nas águas gélidas do ateísmo. De resto, tudo me separa destes amantes das revoluções latino-americanas, ainda cientes que Cuba é um regime recomendável – ou, admitindo que não é uma democracia, não a diabolizam. E interessa-me por reparar que também têm os seus deuses, ainda que a cegueira ideológica os impeça de ver como os heróis vêm oferecidos no papel de deuses.

Ao passarem quarenta anos sobre a morte de Che Guevara, soaram as trombetas do lirismo de certas esquerdas ainda desorientadas pela orfandade internacional. Che Guevara: o mito, o ícone que lutou pelos oprimidos, contra os interesses imperialistas e o nefando capital que, braço dado com o poder corrupto e os serviços secretos, nunca se cansaram de espezinhar os interesses do povo. Quarenta anos depois de cair em combate – ou “cruelmente assassinado”, segundo os seus indefectíveis – povoa o imaginário destas esquerdas como mostruário daquilo que elas nunca conseguiram ser quando o poder político lhes veio parar às mãos. Para além de ícone de um romantismo letal, Che Guevara invade as t-shirts dos adolescentes que, adivinho, na maioria das vezes nem sequer sabem quem foi, e o que fez, o barbudo retratado na camisola.

É isso que ele é: Che Guevara, mito e instrumento de marketing. Não que estas esquerdas sejam cultoras do marketing, que pertence ao aparelho capitalista que elas renegam. Reconforta-as saber que há um nicho de mercado que se serve da face do eterno guerrilheiro para o disseminar na coisa cosmopolita. Que interessa se tanta gente nem sabe que façanhas fizeram de Che Guevara um herói? Aliás, o melhor será ocultar a biografia do guerrilheiro, pelo menos aquela parte em que, depostos os aliados do imperialismo yankee, Che Guevara foi um torcionário impiedoso que, a sangue frio, tirou a vida a opositores e até a antigos companheiros que se haviam desviado da ortodoxia que a pandilha esboçara quando desceu da Sierra Maestra para Havana.

A glorificação do ícone prova a viscosidade patética do relativismo da análise. Ora temos ditadores denunciados pelas atrocidades que cometeram, ora temos românticos heróis que também mataram arbitrariamente e são elevados a um altar divino de onde sobra um culto de imagem que não se diferencia dos seguidores de religiões e anjos e santos e quejandos. Che Guevara, à sua maneira e com as particularidades ideológicas de quem lhe apascenta o culto hagiográfico, é um santo da devoção de muita gente. Daquela gente que fecha os olhos às atrocidades, ou acusa de mentirosos os que descobrem que Che foi sanguinário e implacável, prolongando as tácticas de guerrilha para a governação de Cuba. E se se diz que a ignorância é o alimento da fé – quando a fé encandeia o discernimento e leva os crentes ao limiar do irracional – que se dirá quando os seguidores do ícone se deixam cegar pela revisitação da história que nega os crimes que, está documentado, Che Guevara cometeu?

Os heróis só o são depois de mortos. Algumas esquerdas notabilizam-se por delirantes teorias da conspiração que julgam reveladoras de como o “grande capital” tudo manipula. Vi há dias pichado numa parede o seguinte: “www.usademolitions.com” seguido de “11 Setembro 2001”. Os imaginativos decoradores de imóveis urbanos davam a entender que tudo não terá passado de uma orquestração oficial para implodir as torres gémeas, sacudindo a culpa para os néscios fundamentalistas islâmicos e empurrando os Estados Unidos para acções militares no estrangeiro, que os stocks de armas se acumulavam nos armazéns das empresas que as produzem e os lucros estagnavam. Houvesse a mesma febril imaginação por aqui, também se podia interrogar se o guerrilheiro não foi morto por balas amigas, na avaliação de que morto servia mais a causa do que vivo, na antecipação da beatificação revolucionária que sobre ele iria cair.

Che continua a alimentar o imaginário de muitos revolucionários descontentes com o actual estado do mundo. E a servir de inspiração a arrebatamentos revolucionário-populistas que se deixam convenientemente cobrir pelo lirismo do guerrilheiro. Não é só pelas t-shirts envergadas por desconhecedores adolescentes e menos adolescentes que se confirma Che como produto de marketing. É-o também por ser a marca de água do franchising que cimenta alternativas revolucionárias que desmentem o continente americano como quintal dos Estados Unidos.

Amanhã, quando passarem quarenta anos e um dia do assassinato do revolucionário, só os indefectíveis e os ingénuos que envergam as t-shirts da moda se lembrarão dele. E os oportunistas que hão-de continuar a chorar a sua morte, só porque ela foi instrumental aos regimes que se dizem inspirados em alguém que não deixou doutrinação política. Estranho mundo este, em que as esquerdas tão avessas ao horrífico capitalismo entronizam um herói só para fazerem dele utensílio de marketing dos respectivos interesses.

3 comentários:

Anónimo disse...

Não consigo, na minha vida, defender uma só ideia com todas essas certezas absolutas.Nesta sociedade a quem um amigo chamou de ditadura da informação, não sei nunca o que escolher.Admiro os Comunistas com as suas verdades mas também gosto de ouvir a Direita, porque também ela se rege por uma cartilha e também gosto de ouvir a Santa Madre Igreja Católica com os seus dogmas. Em que é que ficamos?Será que a minha escolha é mais acertada do a do meu parceiro? E porquê, porque sou eu que tenho razão?
Ajudem-me os iluminados.

Um grande abraço

ABS

Anónimo disse...

Correcção; Será que a minha escolha é mais acertada que a do meu parceiro?

ABS

Anónimo disse...

Este ABS podia era ir para outro lado com os seus problemas existencialistas.
Mas alguém lhe perguntou alguma coisa?
Oh ABS, queres mais uma certeza absoluta? És parvo!
Sofia