6.11.07

A demolição da casa e o estremecimento da mulher


No caminho entre a estação de metro e casa, do lado direito de uma ruela estreita acotovelam-se casas antigas. Defrontam-se com prédios novos, que se encavalitam uns nos outros mergulhando sobre a estreiteza da ruela. De regresso a casa, dobro a esquina que dá entrada na ruela e vejo, ao fim da recta, burburinho e azáfama. Obras, maquinaria pesada em laboração. Uma casinha térrea, antiga, a ser demolida. Do outro lado da rua um punhado de mirones testemunha a demolição.

Não detive o passo – nem por curiosidade técnica, que engenheiro não sou, e porque dançava no ar uma fina camada de poeira golfada pelo restolho. Sem deter o passo, reparei numa mulher que estava impressionada com o aparato, atónita com destruição a que assistia. De repente, desviou o olhar das pedras amontoadas que já desnudavam o interior da casa. Enquanto acenava a cabeça, não sei se em tom de reprovação ou se apenas pela impressão causada pelo acto destrutivo, percebi-lhe um estremecimento. Arrepiara-se com a facilidade com que a pá da máquina devastava uma casa onde outrora vivera uma família. A prova de como o acto destruidor se consome num instante fugaz, no contraste com a demora que leva o acto construtivo.

Sem parar, impressionei-me com o estremecimento da mulher. Sem arriscar adivinhar, não me parecia antiga proprietária da casa derrubada. Ou o arrepio que lhe percorrera o corpo havia de ser trespassado por um choro lânguido. Os passos nos paralelos frios da calçada eram transidos pelo estremecimento, como se nela houvesse um grito interior de revolta. Como se quisesse protestar contra a destruição da casa onde se acumulavam décadas de vida.

Enquanto passava ao lado da máquina que não cessava a sua impiedosa marcha contra os já escombros da casa, olhei fugazmente para a direita. Uma espessa camada de pó vogava sobre a nudez da casa, entre as paredes reduzidas a escombros e a nudez desvelada pelo telhado que acabara de ser desfeito. No lado mais distante da rua ainda aguentava, estóica, uma parede. Percebia-se, ao olhar para dentro da nudez da casa, que estava desmobilada. Num instante, fui envolvido por um amplexo de interrogações: que vivências acolheram aquelas paredes, que pessoas fizeram vida dentro daquela casa, quanta felicidade, ou quanto fel, se passearam no chão da casa. Todas as interrogações depostas diante das engrenagens da máquina pesada, que vomitava um fumo espesso do gasóleo tragado para dentro do motor enquanto prosseguia a função, comandada por operários e engenheiros que se apressavam friamente na tarefa.

Os engenheiros e os operários decerto sem formularem as mesmas interrogações. Ocupados com a tarefa, sem se darem conta de como a pá desapiedada avançava, esventrando o que outrora fora lar de uma família. A voracidade da especulação imobiliária não se compadece com o lirismo inconsequente. Diriam que a família morrera, ou se mudara para habitação mais confortável e moderna. E que aquela casa antiga, afundando-se às mãos da pá desapiedada da máquina que semeava destruição, daria lugar a habitação mais moderna, mais confortável. Diriam: que o bulldozer possuído por uma frieza mecânica selava um acto, pequeno que fosse, do progresso que move a humanidade. Salvífico, portanto. E de quantos actos destes o mundo inteiro é testemunha, todos os dias?

O estremecimento da mulher era a caução da complacência pela casa que tombava com celeridade às mãos do bulldozer. Não sei se vizinha de longos anos, choravam-lhe as entranhas pela nova geografia da ruela, despida de uma casa que se habituara a ter como companhia. No seu estremecimento, gritava o desassossego que lhe incendiava as veias. Penhorava a modernidade que a máquina se propunha a aplanar onde horas antes se erguia a casa, antiga e abandonada, mas património daquela ruela. Ela sabia que a cada fragmento das paredes que se esboroavam pela acção maquinal do bulldozer diluíam-se as memórias resguardadas pela intimidade da casa. Perdiam-se, as memórias, na máquina que se aprestava a refazer o futuro daquele espaço.

Com o seu estremecimento, não parecia a mulher convencida da triunfal marcha do progresso – ou da especulação imobiliária, caso o registo pessoal a trouxesse por activismos desse jaez.

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