29.11.07

E a ASAE, não há quem a encerre?


O higienismo militante tem a sua sacerdotisa na ASAE. Todos devíamos agradecer a sua existência. A sua acção incansável, palmilhando todos os recantos do território em busca de pérfidos agentes que cometem atentados contra a saúde pública. Se não fosse a ASAE, haveria mais restaurantes que nidificam na porcaria, mais fraude nas feiras, com uma maré cheia de contrafacção nas roupas e roubos de propriedade intelectual na música e nos filmes. Não teríamos o prazer de ver os agentes da ASAE irrompendo em feiras de artesanato, arrestando chouriços e queijos precisamente artesanais – hélas! –, ou tomando conta de lotas sem aviso prévio, sempre encapuçados e armados até aos dentes.

Será um pormenor – e, como pormenor que é, irrelevante – que ninguém tenha pedido à ASAE para existir. E que ninguém tenha clamado pelo proselitismo da ASAE, que espalha os sedimentos da nova religião que os poderes terrenos querem impor: a conversão forçada à ditadura do higienismo. É uma fobia. Se pudessem acabavam com as bactérias, houvesse decreto com poder tamanho. Incapazes de vergar os mecanismos da natureza, espiam com lupa atenta as bactérias que aparecem onde não deviam. Andam pelos restaurantes, pelas tascas, pelas feiras populares, espiolham bares e discotecas, vigiam o comércio de bens alimentares. Redesenham as regras para que a saúde pública não seja prejudicada por distraídos produtores e comerciantes que ainda vivem na pré-história da salubridade.

Não passa mês sem que a ASAE dê notícias. Lá vêm os agentes, fardados e com capuzes, empunhando G3, como se as pessoas fiscalizadas fossem perigosos terroristas que têm na arrecadação um arsenal ameaçador. Montam o circo com a ajuda da comunicação social, sempre ávida da espectacularidade que prende os espectadores. Varrem tudo a pente fino e, na dúvida, apreendem. São minuciosos. Ao mínimo deslize, apreensão e coima. Encerramento de estabelecimentos. E instruções para o legislador apertar a malha na produção e comercialização. Um rol infindável de novas regras é a cama perfeita para proibições a eito.

No Verão, foi a perseguição às bolas de Berlim vendidas nas praias do Algarve. No Outono, como as gentes deixam de frequentar as praias, mudança de palco. O primeiro frio convida às castanhas quentes que estalam na boca. O aroma que se solta dos assadores tradicionais é apelativo. A diligente ASAE não dorme: a nova proibição é vender castanhas assadas embrulhadas em papel de páginas amarelas ou de jornal. Na arte da adivinhação, aposta-se nas próximas perseguições e proibições. Proibir as feijoadas? O cozido à portuguesa? O algodão doce (porque os fios do açúcar suavemente caramelizado têm uma gavinha de madeira – material banido das cozinhas, pois já nem há colheres de pau)? As francesinhas especiais, pela mistela que compõe o molho bombástico? Os rebuçados da Régua, porque vêm embrulhados em papel que tem contacto com as mãos (lavadas?) das senhoras que os confeccionam? O que mais?

E a ASAE: não há quem a fiscalize? Só para termos a certeza que a ASAE não atenta contra a nossa higiene mental. Sabemos lá se os agentes da ASAE tomam banho todos os dias? E lavarão os dentes ao acordar e ao deitar? O tabaco foi banido dentro da ASAE, ou aplica-se o tão conhecido princípio “olha para o que digo, não para o que faço”? São perfeccionistas militantes da higiene absoluta? É que se a todas as interrogações anteriores a resposta não for satisfatória, é a ASAE que merece encerramento.

Imagino, com deleite, o cenário. Uma brigada irrompendo pelas instalações da ASAE e apreendendo secretárias e respectivo conteúdo, computadores, arquivos inteiros. Os agentes da ASAE detidos em quarentena nas instalações, apenas com direito a alimentação e higiene pessoal necessária. Documentos seriam destruídos, para não sobrarem vestígios das contra-ordenações e encerramentos compulsivos. Toda a ASAE lacrada. Enfim, livres da sanha persecutória da ASAE, haveríamos de rejubilar com o regresso à higiene mental que só a proibição de proibir permite, que apenas a liquidação do tutelar paternalismo atrelado ao higienismo doentio permitiria.

E se depois da quarentena o poder reinvestisse a ASAE, brigadas clandestinas seriam formadas para perseguir os agentes de cada vez que saíssem à rua na febre das apreensões, das coimas, do moralismo da salubridade, das tentadoras proibições. Brigadas para boicotar o trabalho da ASAE, desarmando os agentes e expulsando-os dos locais fiscalizados. Para as chegadas de supetão da ASAE sobrariam as ainda mais surpreendentes acções das brigadas contra-ASAE. É neste delírio que me envolvo quando vejo a pesporrência dos sacerdotes do higienismo militante, espalhando a “autoridade do Estado”, à qual nos temos que curvar. De cada vez que olho para o espalhafato da ASAE, apetece-me mergulhar em hábitos insalubres.

Sem comentários: