9.11.07

Patriotismo constitucional

É um conceito estranho. Estamos habituados a empregar o termo “patriotismo” por referência à afinidade em relação ao país que nos viu nascer. Poderá até ser herética a distorção lexical: etimologicamente, “patriotismo” vem de pátria. Como se pode torcer a palavra e associá-la a “constitucional”, como se a afinidade deixasse de estar localizada num país e estivesse ancorada numa “Constituição”?


Vem isto a propósito de uma sociedade tolerante, aberta, predisposta a aceitar o “outro”, o estrangeiro, a conviver com ele como se fosse um dos seus? O “outro” tanto pode ser o estrangeiro que chega à nossa terra em busca de trabalho, como o turista que faz uma visita fugaz em lazer. É que o mundo é, dizem alguns, uma aldeia global. Por mais altas que sejam as ameias erguidas por legisladores antiquados que temem a entrada de imigrantes, as pessoas movem-se de um lado para o outro. Ora tirando partido das facilidades de deslocação, ora socorrendo-se de meios ilegais para entrarem à socapa nos prometidos oásis que, acreditam, trazem dignificação da vida e bem-estar. E, no entanto, às vezes os ditos países avançados, receosos de vagas de imigrantes que perturbem a vida organizada a que se habituaram, constroem ameias bem altas, quase inacessíveis. O problema nem é as ameias em forma de lei: é o efeito contagiante que passa para a sociedade, instruída para desconfiar do imigrante, olhando de soslaio para ele, acantonando-o num gueto.


O que me deixa perplexo é que a Europa que vai tecendo castelos inexpugnáveis aos imigrantes é a mesma Europa a braços com uma tremenda crise demográfica. A mesma Europa que necessita de abrir as portas, todos os anos, a milhares de imigrantes. Para que a sua segurança social não vá à falência. Para não perder posições no campeonato da competitividade. Há estudos demográficos que o comprovam. Parecem contar pouco na altura das decisões políticas. E são pregação no deserto quando se mede o pulso às atitudes predominantes dos nativos perante o “outro” que se coloca à sua frente.


Há esta dimensão demográfica, económica até, que nem é a mais importante. Se o problema for visto apenas desta forma, arriscamos a acusação de egoísmo. Isto é, da cancela ser levantada para deixar entrar alguns imigrantes porque precisamos deles. O risco de nos acusarem de estarmos a instrumentalizar os imigrantes. Verdade seja dita que há reciprocidade: os imigrantes têm melhores condições de vida nos sítios que escolhem para sua residência, eles também tiram partido da sua instalação nos oásis que demandaram. O risco é real, no entanto. E ofusca o que devia contar nesta osmose crescente entre nativos e imigrados: fomentar a tolerância pelo “outro” como etapa seguinte do amadurecimento da sociedade. Acolhê-lo, integrá-lo, saber conviver com ele sem embaraços ou resistências mentais, como se fosse necessário estabelecer uma diferença entre “nós” e o “outro”. É que a simples distinção entre “ele” e “nós” contamina a relação.


Mais à direita, o discurso do multiculturalismo é contestado. Não sei se apenas por ser uma bandeira que as esquerdas chamam a si – mais uma bandeira que elas, pateticamente, reivindicam ser seu exclusivo –, ou se por serem geneticamente contra a miscigenação dos povos, ou até porque nelas se foram desenvolvendo anticorpos ao multiculturalismo pelas dificuldades de integração de certas comunidades imigrantes, essas direitas (e não apenas a extrema-direita) são ferozmente contra o multiculturalismo e aceitam restrições à imigração. Essas direitas têm todo o direito de reagir ao que as desconforta. Até têm o direito de se agarrarem aos fragmentos que sobram do passado, pois tanto lhes custa admitir que o presente tem outras cambiantes. Mesmo não gostando de más companhias, neste assunto coincido com as esquerdas que são genuinamente cultoras do multiculturalismo (e não daquelas que se apropriam do discurso para efeitos tácticos).


Enquanto teimarmos em tecer estigmas que olham para o “outro” como o outro, sempre de pé atrás quando há um estrangeiro que se atravessa no caminho, seremos uma sociedade imersa numa infantil etapa de desenvolvimento. Enquanto isso suceder, o diagnóstico é sombrio: por dentro de nós fervilha o embrião da intolerância. Que hoje se dirige ao “outro”, mas amanhã pode ter como destinatário “um de nós”, se as divergências entrarem num declive tão acentuado que produzem danos irreparáveis.


Este valor, da tolerância pelo outro, devia merecer entrar na Constituição – nas Constituições dos países que se quisessem libertar das algemas da ancestralidade. Seria o farol da emancipação dos Homens diante do espartilho dos países a que se julgam pertencer, como se os países os titulassem, na mais deplorável submissão dos indivíduos. É por aqui que passa essa libertação: por elevar a valor constitucional a tolerância pelo “outro”, como forma de a garantir até em relação a todos os que pertencem ao “nós”. Este utopismo faria de nós (aqui englobando o “nós” e os “outros” num todo) cultores do patriotismo constitucional que assegurasse a convivência natural entre “nos” e o “outro”. Tão natural que a certa altura deixaria de fazer sentido a distinção.

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