7.11.07

Segregação em forma de lei


O que me sossega é que estamos bem entregues nas mãos de uma casta onde só convivem aperaltados políticos e ululantes burocratas que pajeiam os primeiros. São perspicazes, sempre de lupa em riste em demanda das consumições da sociedade, para sem demora prescreverem miraculosa solução. Sempre em forma de lei, da enxurrada de leis e sucedâneos que impõem a ditadura da regulamentação. Pelo caminho, o detalhe – decerto insignificante, ou de detalhe não se tratasse – das pessoas ficarem presas à teia de leis para serem deglutidas por um aranhiço antropófago.

Nem é necessário andar de olho vigilante no Diário da República. A propaganda oficial, tão bem oleada, trata de veicular para a comunicação social as leis bombásticas. Aquela, preguiçosa, limita-se a fazer “copy-paste” dos comunicados fabricados nos gabinetes dos ministros, dos seus subalternos, numa esconsa repartição pública onde se acantona zeloso burocrata, ou, nos tempos de modernidade por que passamos, dos press release emitidos pela agência de comunicação que “faz” a imagem dos próceres da coisa pública. Mostram serviço, quando esbracejam com orgulho a mais recente lei que regulamenta ora assunto importante, ora o pormenor mais irrelevante. Sobem ao púlpito da vaidade: aparecem, compungidos, cheios de olheiras porque trabalham até más horas, tudo em nome do bem de todos nós. Agradecidos pela generosidade, logo depositamos o destino na iluminada aura que, esperamos, seja manancial perene de inspiração de suas excelências.

Por tão elevada produtividade, por serem os fautores do estado admirável em que nos encontramos, eu seria primeiro subscritor de um abaixo-assinado que promovesse salários mais altos e um rosário de benesses que premiasse a sua actividade. Que tem um travo metafísico, porque eles são os sacerdotes que curam de nós, os humildes mortais que sucumbimos diante de suas excelências, sabedores que somos da grandiloquência dos homens e mulheres que têm entre mãos as chaves do poder.

Aos hodiernos súbditos resta prestar vassalagem silenciosa. Como retribuição pelos serviços inestimáveis que aquelas almas desinteressadas oferecem. Embrulhados na manta do altruísmo, são os modernos cavaleiros andantes que espalham felicidade e bem-estar, combatendo os ferozes dragões que chegam disfarçados de pobreza, desigualdade, injustiça social. Os súbditos meditam pacificamente nas oferendas da casta. Entregam-lhes o destino, assinando de cruz por baixo. Nem lhes ocorre que por mais inebriados que estejam com a casta, mais hipotecam o seu livre arbítrio. O que é sintomático: de uma terra pequenina, em que cada pessoa é formatada para colocar o seu destino em mãos alheias. Os súbditos são isso mesmo – súbditos. Estão a léguas da condição de cidadãos. Enquanto estiverem amordaçados na menoridade de quem entrega o destino nas mãos de curandeiros e seu séquito de mangas-de-alpaca.

O exemplo mais recente é a distribuição de dísticos coloridos que os condutores vão ser obrigados a ostentar no pára-brisas dos seus automóveis. (Ia a escrever “o derradeiro exemplo”, quando repensei a expressão e a desfiz; oxalá este fosse, em retrospectiva, o derradeiro exemplo. Só o seria se o tempo ficasse inerte e não houvesse amanhã.) Esses dísticos vão distinguir os bons, os medianos, os maus condutores. Vão trajar autocolantes verdes, amarelos, vermelhos – respectivamente. Estou a ver os que nada têm a temer e se comportam como condutores exemplares a aplaudir a ideia, excitados. Hão-de argumentar que há por aí desde aselhas a assassinos encartados. Que devem merecer o estigma social, pagando o preço da vergonha aos olhos dos outros pelo cadastro de tropelias nas estradas nacionais. Dirão isso mesmo – que quem não deve não teme. E que a segurança rodoviária homenageia o sagrado valor da vida humana. Tudo o que for feito para que as estradas deixem de ceifar vidas deve merecer aplauso unânime.

Lamento desempenhar o papel de desmancha-prazeres. O ingrato de serviço. Por mais que dê voltas, não me convenço da bondade da medida. Primeiro, é inútil. A menos que o dístico tenha dimensões majestosas, não percebo como se há-de distinguir a sua cor quando nos cruzamos em velocidade elevada com outros automobilistas. Segundo, não há ninguém que desperte da anestesia colectiva e denuncie a obtusa ideia por segregar pessoas? Os feitores da harmonia social – que, para seu infortúnio, não pode ser decretado em forma de lei – ou desconhecem a História, ou não estão a par das modernas teorias políticas que renegam qualquer laivo de racismo (e também há racismo social, para além das fronteiras do tradicional racismo), ou fizeram de propósito dando ordens para que a nova cruz de David tenha tonalidade avermelhada e estigmatize quem anda na estrada.

Aquelas hipóteses ou sintonizam a ignorância da casta, ou a urgência em insinuar a sua autoridade, só para reforçar a longínqua distância que a separa dos humildes mortais. Nem sei o que será mais grave: desmascarar a ignorância da casta, ou perceber que ela cauciona novas segregações quando se pensava que esse era um esqueleto bem guardado dentro de um armário fechado a sete chaves.

1 comentário:

Anónimo disse...

Os nossos políticos "de tão fantásticos que são", só têm dois (graves) problema: 1-comem muito queijo do Sr de Ponte de Lima. 2- não ouvem os comentários sábios da "mulher da limpeza" e do "motorista de serviço". É que estes poderiam lembrar-lhes: "ó Sr. Dr. político, esses autocolantes fazem-me lembrar aqueles ovos carimbados (o famoso 90 dos recém encartados) que a CEE disse que eram discriminação; isso não será mais ou menos... a mesma coisa?