12.12.07

Chicago? Não: Porto!


Está perigoso, o Porto. Os gangs andam à solta, desenfreados, a fazer a limpeza através das armas. É a justiça das balas – a boçal justiça que se faz pela força, implacável, sanguinária, irracional. Mete medo saber que qualquer um se pode cruzar com um desapiedado membro dos gangs rivais, a fatiota aprumada escondendo um arsenal de armas de fogo, armas brancas, soqueiras, o que quer que seja que destila a mais elevada animalidade de um homem.

Pelo meio, há alarme social. Com a ajuda de uma polícia inepta, que mais parece estar sossegadamente à espera que se matem uns outros até sobrarem os restos dos gangs. A lógica da covardia: para depois atacarem quando os gangs já tiverem derramado sangue e mais sangue e sobressaltado as pessoas que querem levar a sua vida normal. Nessa altura, esperará a polícia, os gangs estarão à mercê, já extenuados. O golpe de misericórdia será fatal, nos poucos que tiverem escapado ao troar as metralhadoras. Uma polícia assim é uma vergonha de polícia. Choro pelos impostos que fogem da minha algibeira.

Para aquecer o alarmismo social, vêm Pitonisas da desgraça sentenciar Chicago em pleno Porto. Estaríamos a cavalgar numa onda de criminalidade violenta só comparável às máfias de Chicago dos anos trinta do século anterior. Sempre fomos atreitos a exageros. É da têmpera do povo: tão depressa habita no oito como cai para o oitenta. Para perceber o exagero da analogia, estão aí os filmes que retratam Chicago dessa altura – ou ser mais exigente e perguntar às estatísticas. A imprensa punha ontem em parangonas: seis mortos em cinco meses nos ajustes de contas entre “seguranças” que gravitam no negócio da noite. Bastava puxar pela cinematografia: nessa Chicago tomada pelos gangs mafiosos, seis mortos era conta pouca para as rixas de um dia só.

Por mais apelativa que seja a comparação, ela tem o rigor de comparar as elevações da Holanda com os Himalaias. Não são apenas os números que o desmentem. Os rapazes que se entretêm a fazer matanças na área metropolitana do Porto andam de cueiros ao pé dos mafiosos que dominavam as ruas de Chicago. A sua coragem fala através do poder das armas de fogo – e nisso não se distinguiam dos mafiosos de Chicago. Não os estou a imaginar com a coragem física dos gangs de Chicago, que quando era necessário resolviam pela refrega, à força de punhos, disputas com rivais. Os corajosos militantes dos gangs da noite portuense refugiam-se em actos covardes, nas emboscadas que atraiçoam rivais que deviam ser mais cautelosos para não caírem na cilada. Desprevenidos e desprotegidos, carne fácil que sucumbe à rajada de balas vomitada pelas metralhadoras.

Apesar da falácia do Porto-versão-século-XXI-da-cinzenta-Chicago, o fenómeno não deixa de ser preocupante. Há muita insegurança nas ruas da cidade. A noite está particularmente perigosa. Quem semeia a insegurança são pessoas que pertencem à “classe” dos “seguranças”. Nunca as aspas se aplicaram tão bem como agora. Este é o melhor incentivo para o sono chegar cedo, substituindo o êxtase da noite pela cama acolhedora e, decerto, mais segura. Ao menos se tropeça em tiroteios que despejam uma enxurrada de projécteis sobre a vítima desprevenida. Uma enxurrada, só para confirmar que quem foi atacado está morto e bem morto. O último que caiu numa emboscada recebeu tantos tiros que a polícia recolheu quase cinquenta invólucros de bala. Nem que tivesse as sete vidas de um gato o desgraçado conseguia escapar.

E é preocupante porque já há quem faça a sagração desta violência através de videoclips hip-hop. Está lá tudo: por entre um insólito hip-hop entoado com o sotaque mais profundo da Cantareira, bólides de grande cilindrada, gangs feitos de gente que não aprendeu a sorrir, a violência apregoada em verso simplista. E as infindáveis dúvidas: onde foi gente de origens humildes buscar, de repente, dinheiro para os sinais de riqueza que se pavoneiam no videoclip? Os anéis, pulseiras e correntes de ouro maciço a enfeitar as roupas desleixadas, os carrões que transpiram potência e custam muito caro, e mais o resto que, num acesso de pudor, o videoclip não mostra – de onde vem o dinheiro?

O deslumbramento do poder grita mais alto. Porventura saberão que o poder que ostentam é efémero. No fundo, sabem que, mais tarde ou mais cedo, perdem o rasto ao poder. Ou porque morrem, apanhados por uma rajada de balas que os deixa, inertes e ensanguentados, numa fria parede que é seu túmulo. Ou porque lhes calha em sorte (em sentido literal) uma estadia prolongada no estabelecimento prisional.

Eu só gostava de perceber a vertigem desta gente pela vida que pisa todos os dias o risco. Perceber o que os motiva, se não têm a certeza se verão a alvorada seguinte. Dir-me-ão que o dinheiro corrompe. Parece-me que é só a apologia da violência como modo de vida. A afluência material é um dano colateral. E o credo na boca das pessoas inocentes, que podem ser apanhadas no meio do fogo cruzado entre dois gangs rivais.

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