31.7.07

Postais algarvios: os capitães de borda-d’água



(Quase como se fosse um simpatizante da extrema-esquerda caviar ou do partido saudosista de Moscovo dos tempos áureos)

Estar de férias numa estância que bordeja uma afamada marina tem riscos. E contrapartidas, há que o admitir. O espaço é deslumbrante, desde que seja madrugada e as pessoas estejam embrulhadas nos lençóis. Ou que o pôr-do-sol seja admirado de uma janela que cerceie o horizonte à passagem da muita gente que se pavoneia na avenida marginal. Os iates aportados emprestam um ar pitoresco. E fartamente burguês também, que por ali ululam muitas vaidades num frémito de ostentação. A par com fortunas ancestrais, das famílias de boas linhagens que se espraiam pela linha de Cascais e curtem as carnes nos seus iates luxuosos.

Estes barcos que custam fortunas colossais não me retiram o mínimo esboço de admiração. Não fico boquiaberto diante do último grito da moda estacionado na marina. Não acastelo sonhos idílicos pensando nos momentos inolvidáveis que poderia passar caso a abastança material tivesse a simpatia de me pagar uma visita, indo logo a correr a um stand da linha de Cascais encomendar iate com todos os preceitos da moda. Navegar nas plácidas águas algarvias não faz parte dos meus prazeres sublimes. Respeito quem tenha preferências opostas. Percebo que haja pessoas extasiadas em capitanear um iate destes, a motor ou à vela, de grande ou pequeno calado, em águas calmas ou furando a fúria das ondas. E que certos arrivismos sociais obriguem a manifestações de ostentação de empertigados proprietários destas embarcações, que esbofeteiam os comuns mortais com manifestação da abastança sinalizada pela embarcação aportada.

Nada disso me enoja. Não gosto, não o faria se algum dia a prodigalidade material se encostasse à minha porta. Coisa diferente é estar na fila de um supermercado e conviver meia dúzia de minutos com três proprietários de embarcações que ali coincidiram. E que travaram conhecimento enquanto esperam que o cartão de crédito de platina pague os mantimentos acotovelados no carrinho de compra. O cartão de platina, lentamente exibido perante a funcionária da caixa. Para que quem vem atrás tenha tempo de se aperceber que o cidadão possui platinado cartão. Para quem não saiba, sinal de riqueza na certa. E se à primeira sinto asco por todo aquele exibicionismo, esbarro num turbilhão de sentimentos contraditórios. Já não é asco, é comiseração. Já não é asco, é contemplação por haver sempre a necessidade de alguém que faz as vezes de palhaço, os bobos da corte que o são sem darem conta da façanha que cometem.

Ali, em meia dúzia de minutos, fiquei a saber o calado das embarcações dos pipis de Cascais. Que um deles “praticamente” nasceu a navegar. O mesmo que não resistiu a contar a gloriosa história das três representações que “sacaram” numa feira de iates em Londres. E que todos trajavam pólos de marcas conceituadas, bermudas coloridas de marcas que timbram os navegantes, o exigível sapatinho de vela. Indisfarçável homogeneidade que tributa a tanta vacuidade vomitada numa singela meia dúzia de minutos.

Estou enquistado ao turbilhão de paradoxos. Comecei por exalar o enojamento dos capitães de borda-d’água que se entretinham em conversa vã. Empurrei o estigma para trás das costas, ensaiando humorística reacção diante das risíveis personagens. Mas regresso às dores de cabeça, quando dou por mim dominado por uma súbita vontade de ser militante devoto do PC, ou frequentador assíduo dos acampamentos de Verão do Bloco de Esquerda, só como reacção a estas figuras da alta sociedade lisboeta. Terapêutico seria desviar a atenção, ignorar a palavrosa conversa cheia de tiques tão próprios de pessoas bem situadas na vida que desfilam entre Cascais e Lisboa. Seria. Incapaz disso, vejo-me prisioneiro do desencantamento de mim pela antítese dos outros, daqueles que me levam à repugnância. E depois há este sintoma doentio, de querer ser o que sempre mais rejeitei na vida apenas por reacção adversa a outros que me trazem o vómito intelectual.

Sintomas das férias que só agora começam, o cansaço que destempera o discernimento e leva a atenção por onde ela deve andar ausente.

30.7.07

Ora bolas


De Berlim. Recheadas com creme de ovos, abundantemente polvilhadas por grossas pepitas de açúcar. Servidas nas praias do Algarve, depois de um banho de mar. Preenchem o meu imaginário. Hão-de deixar, por imposição da inquisitorial ASAE que zela pela nossa saúde. Cientistas descobriram mais perigo para a saúde pública. Bolas de Berlim com creme recheadas não andariam acondicionadas de harmonia com as regras de higiene. Hão-de ainda descobrir, com anos de distância, um número muito rigoroso de mortes que se ficaram a dever à incúria, de braço dado com a insuportável gula, de tragar uma tragicamente deliciosa bola de Berlim recheada com creme de ovos no meio do areal algarvio.


A ASAE é nossa amiga. Dormir descansados, é o que nos resta por sabermos da mera existência da ASAE. Os fiscais desdobram-se em actividades mil, perseguindo os empresários do sector alimentar que espezinham elementares normas de higiene. Vamos às lotas e temos a certeza que o peixe é todo fresco. Vamos às pastelarias e temos a certeza que durante o processo de fabrico das guloseimas os cozinheiros não puseram um milímetro de tecido cutâneo nas massas. Descansados, assentamos arraiais nos restaurantes, que o pessoal nos bastidores foi todo industriado para respeitar os procedimentos de higiene. As doenças causadas pela manipulação indevida de produtos alimentares vão acabar. A ASAE merece comenda a 10 de Junho. Se ela for esquecida, abaixo-assinado para o esquecimento ser reparado no ano vindouro.


É que nem se imagina o sacrifício dos agentes da ASAE em plena fiscalização. As condições de trabalho, penosas, fazem deles heróis. Zelosas brigadas espalhadas do Barlavento ao Sotavento algarvio, palmilhando tórridos areais com o radar afinado para homens de branco que carregam a tiracolo a bolaria. Fico com uma dúvida ao tirar o retrato da actividade inspectiva. Os fiscais da ASAE andarão à paisana, disfarçados de comuns banhistas, apenas com o calção (versão masculina) ou com um discreto biquíni (as funcionárias)? Ou terão que farejar os possíveis infractores dentro de roupa não estival, enfardando ainda o colete azul-escuro que patenteia os dizeres “ASAE” em letras garrafais, em manifesta ostentação da autoridade? Imagino o pânico dos vendedores ambulantes: em cada banhista, tanto há um cliente potencial como potencial fiscal da autoridade fitossanitária.


Se os fiscais forem autorizados a vaguear pelas praias em trajes banhistas, acautela-se a penosidade da função. Poderão suportar o calor da estação em trajes apropriados e, nos intervalos da pesquisa inspectiva, tostar a pele e depois refrescá-la nas águas tépidas. É que assim o disfarce é mais perfeito. Se estiverem empenhados na fiscalização e não tiverem olhos para mais nada (nem para as beldades que ocasionalmente passam diante dos seus olhos – e aqui penso apenas nos fiscais e naquelas fiscais que tiverem uma orientação sexual alternativa) serão detectados à distância. No meio da muita tez escurecida pelos raios solares, lá estarão a exibir alva epiderme. No meio da mancha de corpos bronzeados, só não se distinguirão dos esquálidos turistas britânicos que aterraram no aeroporto de Faro na véspera. Sobra uma hipótese: hão-de misturar-se com os demais veraneantes, como se fossem turistas comuns em demanda dos prazeres estivais.


Se os vir na praia, em plena passagem de contra-ordenação a um vendedor ambulante que haja esquecido de acondicionar as bolas de Berlim – sem creme – em malas refrigeradas a sete graus centígrados, hei-de me acercar deles. Não será para os abraçar, ao mesmo tempo que me desfaço em agradecimentos mil. Será para lhes dirigir uns impropérios, que congeminar a ingestão de bolas de Berlim desprovidas de creme de ovos é tão lógico como comer uma francesinha sem molho, morangos com chantilly sem o chantilly, e por aí fora.


Agora me ocorre: a ASAE ainda não se lembrou de perseguir as típicas portuenses francesinhas. Não sei se o não fará para não alimentar a espúria guerra norte-sul, se o director da dita entidade é portuense de gema, ou se é apenas esquecimento. Por este andar, terão que multar o sol. É que saio da praia e dou de caras com um simpático e pueril sinal que dá as horas do “sol perigoso”. Como há cidadãos que teimam em torrar ao sol entre o meio-dia e as quatro da tarde, das duas, uma: ou saltam para o areal de bloco de contra-ordenações em riste, multando os ignaros veraneantes que se expõem a um cancro da pele, ou engendram expedição ao sol e prendem-no, por irradiação ultravioleta assassina.


Adenda – Alvíssaras aos diligentes agentes da ASAE: hoje de manhã andavam vendedores ambulantes a apregoar “bolas de Berlim, com e sem creme”. Matéria-prima abundante para contra-ordenação sem cessar. Adoro as leis feitas para ninguém cumprir! Dão um arzinho da desautorização ao emproado Estado, sempre insaciável na exibição da sua autoridade.

27.7.07

Faz de conta


Bombástico: seremos o primeiro país do mundo a criar um centro de mediação de conflitos no “Second Life”, medida tirada da cartola por este governo que temos. A modernidade é tributária dos avanços tecnológicos, barómetro do desenvolvimento dos países. Por esta bitola, orgulhosamente encabeçamos o campeonato dos “infoincluídos”. Agora que os governos dos países gostam de mostrar quão avançados são exibindo façanhas do “e-government”, o governo do “engenheiro” Sócrates há-de ficar conhecido a nível mundial pela pedrada no charco.

Há que o dizer: a medida é de uma importância desmedida. Para o perceber, importa primeiro tomar o pulso ao “Second Life”. Como estava a leste do dito jogo, informo-me. Ao que parece, há gente que dedica uma parcela significativa do seu tempo num jogo interactivo em que se fazem passar por outras personagens, diferentes daquilo que são na vida de carne e osso. Simulam-se vidas alternativas, como se o jogo caucionasse o desdobramento de personalidades servido de bandeja através do contacto na Internet. O “Second Life” é uma telenovela tecnológica que democratiza a actuação num palco que passa a ser virtual. Pessoas comuns, sem preparação para actores, emprestam as suas personagens fictícias ao enredo que se vai tecendo com os contributos da comunidade virtual.

Pessoalmente, isto perturba-me: o “Second Life” tresanda a esquizofrenia colectiva, mas do alto do livre arbítrio cada qual faz o que bem lhe apetece com o seu tempo disponível. Assim como assim, há quem jogue curling, quem se entretenha com karaoke, outros dedicam-se à política e um escol convence-se dos seus dotes messiânicos na governação dos outros.

Na posse destes dados, percebe-se melhor a enorme importância da decisão do governo. O “Second Life” é um sucesso mundial. Há comunidades virtuais que empenham pessoas de variadas nacionalidades. Sendo um simulacro da vida real, o mais natural é que surjam conflitos entre as personagens. Afinal, a história da humanidade é um rol infindável de conflitos, que por vezes têm desenlaces trágicos. O governo socialista faz jus à divisa que gosta de apregoar: a governação com rosto humano, dirigindo as prioridades para os problemas que afligem as pessoas. E como as pessoas parecem entreter-se com redobrada intensidade num mundo virtual, este passou a ser um domínio que exige soluções dos poderes públicos. Lamentavelmente, os países mais avançados ainda não conseguiram perceber que os conflitos no “Second Life” concitam as atenções da aldeia global. Foi necessário o arrojo intelectual dos socialistas portugueses para se perceber que o mundo virtual se confunde com o mundo real.

O boy que é secretário de Estado da justiça, um João Tiago Silveira, debitou no noticiário radiofónico arrazoado típico de especialista de informática e de redes de informação. Explica que a medida é uma antecâmara do futuro, quando as pessoas e as entidades se relacionarem intensamente na Internet. Os conflitos hão-de perder a actual materialidade, ganhando uma coloração virtual. As autoridades dos países têm que estar habilitadas a dar resposta à desmaterialização dos conflitos. Eis o inestimável contributo do pequenote Portugal. Somos pioneiros na antecipação do futuro, usando o “Second Life” como laboratório.

Entre as palavras entusiasmadas do juvenil João Tiago Silveira – aposto que contagiado pelo seu colega de governo, o fanático “infoincluído” José Magalhães – falta saber se há ali a confissão por meias palavras de alguém que ocupa muito tempo a fazer de conta dentro do “Second Life”. Porventura o secretário de Estado andará com o espírito perturbado porque o seu avatar está mergulhado num intrincado conflito com outro avatar qualquer de um longínquo país. A oportunidade faz a ocasião, no dizer do adágio popular. Bem-haja, João Tiago Silveira, que em vez de se dedicar a cem por cento à exigente função da governação das coisas da nação se entrega às delícias esquizofrénicas do “Second Life”. Não fosse isso, e hoje não estaríamos de peito cheio, orgulho ao alto, porque todo o mundo está de olhos postos no pequenote Portugal que teve a sageza de inventar um centro de mediação de conflitos para o “Second Life”.

Um governo do faz de conta. Um governo faz de conta.

26.7.07

Amanhecer


A luz matinal encerra a magia que rejuvenesce da noite cansativa. Dito adeus ao sono tempestuoso, depois da noite entregue nos braços do revolvido mar atirado pela ventania dos sonhos bizantinos, chega a alvorada retemperadora. Uma luz esquálida que se descobre entre as garras da noite, da longa noite que escondeu o sono inútil. Não é a noite que abraça o descanso do espírito. É o despertar de mais um dia, a luminosa aurora, ainda que pincelada com o acinzentado das nuvens que descarregam chuva.

A brisa matinal, refrescante, tonifica o corpo para o dia que desfila pelas horas fora. É ela que perfuma todos os poros, na languidez dos passos da cidade ainda adormecida, pelas ruas desertas que acordam, ainda estremunhadas, nos escassos automóveis que cambaleiam, nas poucas pessoas que saíram à rua tão cedo. Andorinhas que ensaiam coreografias em voos embriagados exaltam a alegria da manhã. Contrastam com as faces carregadas da multidão que aos poucos apinha as ruas, a multidão irada com a erupção da manhã. Contraste que também encerra a beleza matinal: o dia avança e com ele desagua a multidão atarefada, contrariada pela manhã furtar o sossego do leito. É aí que a manhã se banaliza e se quebra o fio condutor com o remanso que só a alvorada temporã permite.

E se os minutos gastam o encantamento da manhã, é porque as ruas carregadas de pessoas contrariadas corroem a leveza do ar matinal. Até a luz encontra o seu lugar trivial, sem os matizes enigmáticos que a primeira claridade vem trazer. A escassez de tudo que arremete com a alvorada é a caução da sua imponência. Que nasça tímida, custosamente empurrando o breu nocturno para o seu próprio descanso, é sinal do lento renascimento que se faz para outro dia, ensinando a recriação da vida. Da noite que finda, o recolhimento das velas, mastros desamparados onde repousa o orvalho nocturno. Os primeiros raios de sol hasteiam as velas em toda a sua grandiosidade, para que venham abraçar a luz intrépida que se levanta com o ciciar dos incessantes ponteiros do relógio.

Do amanhecer guardo a centelha da noite que a luz matinal transforma em imagem natural. Já não a feérica luminosidade que encandeia, o palpitar das luzes dos candeeiros que professam a luz artificial; é a vez dos candeeiros se apagarem para a luz natural irromper, majestosa. Só um punhado testemunha a sumptuosa alvorada, extasiados com a magnificência da luz matinal que se ergue detrás do horizonte, a luz ao início ainda baça. É como se fosse um farto pequeno-almoço, cheio de coloridas frutas que adornam o dia nascente com o perfume frutado.

A manhã fresca sedimenta a energia pueril, quando tudo se abraça com a obstinada força desalmada só possível pelo cansaço ainda virgem. A manhã que tudo renova, luz matinal que destoa do empalidecido rumor tardio que derrota o corpo cansado pelas curvas sinuosas do dia extenuante. Apetecia guardar os singelos, escassos momentos desta luz matinal, da sua alva frescura que bate contra a pele que se entrega, corajosa e solitária, ao vento que sobra da noite. Apetecia emoldurar esses instantes tão belos, reproduzi-los nas horas diurnas que vão consumindo a paciência. Só para perceber o discernimento do impossível, penhor da perfeição matinal que se resguarda na sua intensidade momentânea. Não, afinal não apetece reproduzir a fulgurância matinal para além do horizonte da manhã, ou deixava a manhã de ser pletórica.

É o bálsamo, alvorada tão cedo pelo mister de saciar em todas as gotas aspergidas pela manhã que acaba de emergir do lado nocturno. O amanhecer só meu. Vida que sai da hibernação com medo da escuridão semeada pela noite, as pétalas que se abrem com sede de entrega aos primeiros batimentos do dia. Flores que exalam o perfume do encantamento da vida renascida. O dia que começa, instantes nascentes que tudo emprestam opulência às coisas. Fosse tudo sempre a magia matinal e não haveria lugar aos baixios que a marcha do dia acostuma.


25.7.07

O livro da vida


A neblina que rasava o solo sondava o etéreo lugar de um sonho. A luz, domada na sua baça tonalidade, ofuscando a claridade das coisas. Só havia silêncio, um perturbante silêncio. Por momentos sentira-se só no mundo, como se em seu redor não houvesse vivalma a partilhar o legado da humanidade. Para o aterrador silêncio contribua a ausência de outras formas de vida. Nem o chilrear de um pássaro, ou o rumor de um regato, nem sequer o silvo dos arvoredos quando vinha o vento embater na vegetação. Só o som dos seus passos, os sapatos ciciando contra as pequenas pedras que alcatifavam o caminho empoeirado.

Num amontoado de pedras maiores, estava um livro entreaberto. As páginas levemente amarelecidas. No papel pesado – dir-se-ia, um papiro antigo – repousava uma pedra que não deixava esvoaçar as páginas quando o vento esbracejava. Era um livro grande, grosso, pesado, majestoso. Guiado pela curiosidade, achegou-se ao promontório onde o livro se mostrava. O silêncio interrompido por uma voz sussurrando ao ouvido, uma voz sem rosto que o arrepiou, tanto quanto o que a voz lhe segredava: “este é o livro da tua vida.”

Ficou inerte e embaraçado. A preciosa racionalidade não o deixava acreditar no que se passara. Uma voz pertence sempre a um rosto. Aquela voz que lhe segredara ao ouvido vinha do nada, de um misterioso vazio, desprendida de uma face, anuindo a estranheza que o atrapalhara. Olhou e olhou nas redondezas em busca de uma personagem escondida detrás dos arbustos rasteiros, ou numa cova tapada pela vegetação densa. A racionalidade teimava em alimentar o embaraço que não deixava acreditar que a voz se fizera ouvir, que pronunciara aquelas palavras tão estranhas. Convencia-se, a cada instante que passava, que só podia estar mergulhado nas profundezas de um sonho, tão bizarro como soem ser os sonhos.

Largos minutos depois, convencera-se que a ilusão estava desfeita. Ou sonho ou não, as palavras sem rosto não cessavam de ecoar, repetitivas. “Este é o livro da tua vida. Este é o livro da tua vida. Este é o livro da tua vida”. A desorientação cedera lugar à resignação, o resultado das forças que se exauriam à medida que as explicações esbarravam em perguntas sem resposta. Já nem lhe interessava saber se estava amarrado a uma dimensão onírica ou não. Cedeu aos caprichos da ininteligível razão, acercando-se do promontório que desnudava o livro da sua vida. E seria mesmo o livro da sua vida, como se alguma entidade misteriosa houvesse retratado todos os momentos da sua vida, como se afinal os dias e as noites que se sucediam estivessem a ser vigiados por essa entidade?

A medo, subiu ao púlpito onde as páginas se descerravam. Uma fina camada de pó cobria as páginas abertas. A encabeçar a página estava, em letras vigorosas, a data do dia. Um marcador aveludado adormecera no regaço das páginas do dia, à espera que a manhã seguinte fosse testemunha de mais uma página dobrada, o novo leito onde viria o marcador deitar-se por outras vinte e quatro horas. Estranhamente, a página do dia de hoje estava em branco. Suspeitou que afinal o livro da sua vida era um embuste – ou que a sua vida era o embuste, esvaziada de conteúdo, na diluição de significado que a tornara uma tremenda página em branco, o vazio perene.

Não se resignou perante a decepção que o flagelava. Recuou uma página, mortificado por uma curiosidade que desconhecia em si. Outra vez o cabeçalho denunciando o dia correspondente. Tudo fazia sentido, até porque as imagens que começavam a passar não deixavam mentir o que acontecera no dia pretérito. Dividido entre e curiosidade e temor, recuou uma maço de páginas para confirmar se toda a sua vida estava retratada naquele livro. Escolheu uma data marcante, retida na memória, e viajou até à página correspondente. Assustadoramente rigoroso, o livro impedia a reescrita do passado. Era penhor desse passado. Das cicatrizes e dos momentos gratos, todos ali emoldurados.

Subitamente foi assaltado por um impulso de rejeição. Não que renegasse o passado, mesmo os momentos de que não se orgulhava. Não lhe apetecia gastar o tempo, o tão precioso tempo que escasseia até à vida se perder nos meandros da morte. Não queria continuar a desfolhar os tempos idos, um desperdício de tempo. Essa vida fora vivida no seu tempo. De repente percebeu que havia um maço de páginas à frente do marcador que assinalava a data presente. Seria a revelação dos dias vindouros. Uma tentação. Reprimida, por nem querer saber quantos os dias que faltavam para ser furtado à vida. E por resistir a desembaciar o que lhe reservavam os dias à frente, nem as coisas boas nem as agruras ainda por suportar. Impaciência curiosa derrotada pela asfixia do sonho. Porque só podia ser um sonho, o livro da vida ali exposto, a vida toda aberta a quem a quisesse esquadrinhar.

Sempre aprendera que o futuro é o desconhecido. Uma aventura que se dedilha à medida que os dias se sucedem. O livro só podia ser um fragmento dos sonhos que semeiam ansiedade.

24.7.07

Quando a verdade leva à crucificação


A fronteira entre verdade e mentira, sempre tão esguia. A diferença entre a mentira ostensiva e a mentira que não o chega a ser pelo triunfo do silêncio – as omissões que apascentam a mentira que se insinua nas palavras não proferidas. E há as verdades incómodas, que de serem ditas arrastam quem as disse para o sarcófago da censura social, como se fosse preferível a mentira à verdade impertinente.

Quando tanto se fala da ténue fronteira entre verdade e mentira na política, e quando se denuncia a crise do regime por causa de mentiras despudoradas cirurgicamente compostas como verdades insofismáveis, eis que tudo se confunde ainda mais com um episódio passado em Inglaterra. Uma ministra confessou que há trinta anos fumou uns cigarros de haxixe. Foi o reboliço. Que os partidos da oposição se tenham, com oportunismo, colado às afirmações para tirarem proveito, é compreensível: estão no seu papel. O que se não entende é o moralismo ofendido dos que ficaram incomodados ao saberem que uma governante teve desvarios de juventude que a trouxeram pelos caminhos do ilegal. E que ilegalidade, esta de fumar haxixe!

Qual é o mal de um político confessar que fumou uns charros há trinta anos? Pelos vistos, é preferível a mentira. Talvez a senhora ministra devesse responder ao imperativo dos bons costumes, que um ministro deve ter um passado impoluto para dar o bom exemplo aos jovens e para recato de consciência dos da sua idade. Se necessário for, recompõe-se o passado, com uns pozinhos de reconstrução histórica que emprega o receituário estalinista. Os governantes têm que exibir um passado impoluto. Não lhes é reconhecido o direito ao pecado em tempos idos, nem o percurso por caminhos ínvios aos olhos da moral e dos bons costumes. Se por acaso o governante foi recauchutado de um passado tresmalhado, não convém que se saiba para sossego das almas atormentadas com a governação pacífica do reino.

Uma mentira necessária, portanto. Que não deixa de ser uma mentira. Não vejo que uma mentira, só por ser necessária, deixe de trazer consigo a perfídia da intrujice. É em momentos destes que apetece parar para reflectir no que se passa em redor: e reconsiderar os valores, porque somos convidados a essa revalidação. Ao que parece, a categoria da “mentira necessária” encaixa-se melhor na tranquilidade social do que a categoria da “verdade incómoda”. Porque a primeira é necessária e a segunda traz a incomodidade a certos espíritos, transforma-se a escala de valores para fazer a vénia à mentira e cercear a verdade. Os bons costumes vitorianos (que se entaramelam com um código contemporâneo de vida que resvala para a devassidão) ficaram boquiabertos com a frontalidade da senhora ministra. Tudo se resume à censura social que dilui as capacidades de alguém só porque essa pessoa foi honesta ao ponto de confessar que teve os seus pecadilhos na juventude.

O mau exemplo vem da reacção vitoriana. Na voragem da competição política, onde os aspirantes à ascensão na hierarquia das sinecuras não olham a meios para atingir fins, há-de vingar a mentira como preceito habitual. Aqueles que tiveram excessos juvenis ao arrepio das convenções sociais e das leis anacrónicas saberão que não os podem confessar. Saberão que devem dar de si uma imagem imaculadamente pura, asséptica, como se todos tivessem sido meninos e meninas exemplares. Têm que mentir. Serão, os mentirosos, os premiados no mercado da política onde interagem com a audiência dos governados, que preferem a mentira necessária à verdade incómoda.

A escala de valores sofre mutações, sinal de uma vitalidade social que se aplaude. Todavia, não posso deixar calar alguma perplexidade perante a inversão de valores e de como as pessoas reagem a despropósito perante minudências e se calam perante atentados. Não muitos se insurgiram contra o passado pouco recomendável de Joschka Fischer, ministro dos negócios estrangeiros do governo alemão liderado por Gerhard Schröder. Na juventude, enquanto activista de extrema-esquerda, esteve envolvido em violentas acções que não andavam longe do terrorismo. Reconverteu-se – e quem não tem direito à reconversão ideológica? Tirando os adversários movidos por interesses partidários, poucos questionaram o passado de Joschka Fischer. Mais grave será o devaneio juvenil de uma ministra britânica que fumou uns charros, essa coisa tão grave.

Moralismos impenitentes fazem dos seus sacerdotes os arautos da hipocrisia latente. Da hipocrisia que nos cerca, impante, tão ciosa de exercer a vigilância voyeurista sobre os outros. Tenho para mim que aqueles que tanto se afadigam em ajuizar os outros e exercer sobre eles os padrões da moralidade vigente, são os que se embrenham numa existência viciosa.

23.7.07

Um excurso abstencionista


Esta demissão dos cidadãos em relação às suas responsabilidades deveria ser sancionada (...). Trata-se de um gravíssimo sinal de desdém pela democracia”. Inês Pedrosa, Única/Expresso.

É quando apetece ser abstencionista com mais força. Quando sou esbofeteado por verdades axiomáticas com esta, assoma à superfície a vontade indomável de ser mais um entre os ausentes das mesas de voto. É por coisas destas que fujo das esquerdas a sete pés: auto-intitulam-se campeãs da liberdade, mas não basta o registo histórico para caucionarem o papel de penhores da liberdade quando, no presente, impõem comportamentos que não merecem desvios, sob pena de severa punição. Assim temos as esquerdas fautoras de atropelos às liberdades.

Aos que se incomodam tanto com a crescente abstenção, convém que saibam que o voto compete a quem o deposita. Na minha esfera de liberdade individual inclui-se, entre tantos outros aspectos, o livre arbítrio para fazer com o voto o que bem me apetecer. Se voto em A, B, C ou D, por mais obnóxias que sejam as propostas eleitorais; se me recuso a colocar a cruz num dos candidatos, pondo o boletim de voto à mercê de um escrutinador que, à socapa, inscreve nele a cruz no partido da sua conveniência; se decido não comparecer na eleição, engrossando o maior “não partido” (o da abstenção) – são decisões que pertencem ao meu íntimo, decisões que não admito que alguém questione. Sob pena de também questionar o voto de quem se incomodar com o meu abstencionismo militante. Inês Pedrosa não gostaria que alguém a chamasse ignorante por ter votado em quem votou.

A frase da escritora é de uma gravidade que, essa sim, merecia ser sancionada. A frase merece ainda outra tarefa – ser dissecada. Primeiro acto: a abstenção é uma “demissão dos eleitores em relação às suas responsabilidades”. Enquanto o voto for um acto individual, não vejo como este arremedo de responsabilidade colectiva se sobreponha à responsabilidade individual. Inês Pedrosa revela desconforto com a taxa de abstenção espectacularmente elevada. Fazendo coro com a classe política, sacode a água do capote. A culpa mora sempre ao lado, ainda que ela habite na nossa casa; que é como quem diz, não lhe ocorre diagnosticar que as causas da abstenção galopante poderão estar no descrédito dos políticos e no descontentamento dos cidadãos com o processo político.

Quando a esmola é muita, o pobre desconfia. Tantos eram os candidatos à câmara de Lisboa que as pessoas nem souberam quem escolher. Poderia lá estar essa grande esperança nacional, que acabou por vencer embrulhado num sucedâneo de União Nacional. Ou até a arquitecta Roseta, ao gosto de Inês Pedrosa, agora candidata independente, como se alguém que sempre viveu abraçada ao partidarismo possa aparecer, com um golpe de magia, com a capa de “independente”. Nada disso consegue afastar os ventos da fraca qualidade dos que se ofereceram para presidente do município lisboeta. Eu continuo a achar que o voto não é, não pode ser, a escolha do mal menor. Se entre os candidatos todos são maus, mesmo muito maus, temos que aplicar a cruz naquele que for o menos mau, só para sobre nós, eleitores, não recair o opróbrio da “demissão das responsabilidades”? Escolher quem é mau é compatível com a consciência? Não, pelo menos no meu caso.

Segundo acto: a demissão dos eleitores “deveria ser sancionada”. Como se fosse crime de lesa-majestade. Como se votar, para além de dever, não fosse direito. E um direito que precede a qualidade de dever. Porventura Inês Pedrosa tem uma poção mágica para sonegar a crise do regime e do processo político. A poção mágica consiste na ilusão estatística: para acabar de vez com os malefícios da abstenção, obrigue-se o povaréu a ir votar, sob pena de cair sobre as ovelhas ranhosas (os abstencionistas) o cutelo de uma sanção pesadíssima. Três comentários: repito, o direito de voto precede a faceta de dever; segundo, eis a democracia em todo o seu esplendor, a democracia musculada de que as esquerdas são garbosas patrocinadoras, que altera a ordem dos factores e entroniza o voto como dever antes de direito; terceiro, que sanção vai na cabeça iluminada de Inês Pedrosa? Prisão? Perda de voto no seguinte acto eleitoral? Uma multa pesada, como na Bélgica e na Austrália?

Terceiro acto: a escritora é da opinião que a abstenção é o cancro da democracia, pois a democracia existe para os cidadãos e estes, enquanto abstencionistas, manifestam “um gravíssimo sinal de desdém pela democracia”. Este argumento morre à nascença, se recordar que antes de ser uma obrigação, votar é um direito – e da esfera individual de cada eleitor. Cansam-me estes moralismos colectivos, como se tivéssemos que ir em manada, todos pelo mesmo caminho, o caminho iluminado pela candeia dos predestinados que nos pastoreiam. Estou em paz com a consciência de cada vez que me ausento das mesas de voto. E não admito que alguém, seja quem for, do alto da sua tão elevada moralidade (que deve ser superior à dos hediondos abstencionistas, portanto) sentencie que quem se abstém desrespeita a democracia.

Só faltou à D. Inês Pedrosa rematar o diagnóstico desta maneira: os que se abstivessem deviam ser riscados para sempre dos cadernos eleitorais. Seria a punição pelo desdém pela democracia, pois mostravam não serem merecedores da democracia. Só não sei se o acto que se segue é ostracizar quem vota mais à direita, porque só as esquerdas é que são sensatas.

20.7.07

Vacas poluentes


Um desafio aos sacerdotes do ambientalismo: insurjam-se contra a praga noticiada há dias no Reino Unido. Não é uma praga de gafanhotos, que logo haveria de se achar uma sinistra teoria que culparia o capitalismo pela migração inesperada dos insectos. Foi o meu amigo J. que enviou um e-mail dando conta da descoberta: as vacas e as ovelhas são responsáveis pela emissão de gases poluentes para a atmosfera, justamente através dos gases que compõem a sua actividade flatulenta.

Há pormenores deliciosos no achado científico (traduzo da notícia estampada no Times online): “as emissões de metano originadas pela flatulência de bovinos e ovinos têm causado tanta preocupação ao governo que a comunidade científica foi encarregada de estudar meios que permitam diminuir essas descargas poluentes, que representam cerca de um quarto do total do metano – um gás vinte vezes mais poderoso que o monóxido de carbono na alimentação do efeito de estufa – libertado para a atmosfera no Reino Unido. Todos os dias, os dez milhões de bovinos britânicos libertam entre cem e duzentos litros de metano. O equivalente a 4.000 gramas de monóxido de carbono, nada que se compare com os 3,149 gramas emitidos por um Land Rover Freelander se viajar em média trinta e três milhas por dia”.

Isto dá que pensar. Dá pano para mangas de reflexão. Começo pelo enviesamento dos ambientalistas. Nunca se lhes ouviu uma palavra, nem se lhes viu manifestação ruidosa, atacando o teor poluente do gado bovino e ovino. Agora que alguém tocou na ferida incómoda para os interesses dos protectores do meio ambiente, das duas uma: ou eles deixam de assobiar para o lado, caindo em si e fazendo de conta que andavam distraídos com a poluição gerada pelo gado, despertando para o combate dos efeitos nefastos da existência de vacas e ovelhas; ou perseguem a senda do radicalismo misturado com a criatividade que desvela teorias da conspiração, atalhando dose significativa de falta de rigor científico, para concluírem que a denúncia da poluição animal foi uma invenção da indústria automóvel para desviar as atenções das acusações que a cercam.

Porventura haverá alguns adeptos do ambientalismo que não estão desatentos. Recordo-me de ter ouvido, no programinha de educação ambiental que a RTP passava antes do noticiário da oito da noite, uma mensagem curta mas subliminar: diminuir o consumo de carne vermelha ajuda a proteger o meio ambiente. Não eram dadas explicações. O que não é surpresa, atendendo à usual falta de rigor científico dos sacerdotes do ambiente, à forma como passam as suas verdades retumbantes – tão retumbantes que dispensam justificações (aliás, se curassem de fornecer explicações, as verdades decerto deixariam de ser assim tão retumbantes…). Agora que sei que a flatulência bovina e ovina deteriora tanto a qualidade do ar (e não é só pelo odor nas imediações), percebo a mensagem. Se comermos menos carne, menor será a criação de gado, menor o impacto ambiental causado pela libertação de metano.

Há soluções finais para problemas tão agudos. Teço um paralelismo com a fobia dos ambientalistas contra o automóvel. Desdobrando-se em iniciativas que sensibilizam as pessoas a prescindirem da utilização do automóvel, argumentando que o automóvel é um dos maiores focos de poluição atmosférica, só restará aos ambientalistas proporem a proibição da criação de gado. Perfila-se uma opção radical e uma opção gradual. A primeira atalha o mal pela raiz: os governos ter-se-iam que pôr de acordo para matar todas as cabeças de gado bovino e ovino, uma espécie de genocídio animal. A segunda opção consistiria num plano para a eliminação gradual das reses, passando pela esterilização e progressiva liquidação de vacas e ovelhas. Os vegetarianos teriam motivo para cantar gloriosa vitória. Mas seria admitida uma excepção, motivada pela idiossincrasia dos indianos que não haveriam de abdicar do estatuto de sacralização da vaca.

Dos males emergem grandes soluções. E da mesma forma que houve quem tivesse descoberto utilização alternativa para o milho, que será a prazo mais matéria-prima de combustíveis (o biofuel) em vez de fonte de alimentação humana, haverá quem descubra solução para aproveitar o metano que o aparelho digestivo das vacas e das ovelhas liberta com tanta prodigalidade. A solução preferida para os amigos do ambiente que são ao mesmo tempo amigos dos animais: inventar-se-ia um mecanismo de recolha dos gases das reses, evitando que se perdessem na atmosfera. E como estes gases são inflamáveis, o seu envasamento seria canalizado para a produção de energia.

19.7.07

O vento incessante


O homem de negro subia aos mais altos promontórios, onde o vento crestava até as pedras mais indomáveis. Entregava-se ao vento como sinal da purificação que buscava. Era o vento a sua catarse, altar do recolhimento silvestre onde as feridas abertas se saciavam numa cicatriz. Subia bem alto, ao inóspito lugar que mais ninguém ousava frequentar com severa ventania. Por ali ficava, sem saber que o tempo prosseguia marcha célere. Parecia que o vento tão veloz abrandava os ponteiros do relógio. Dir-se-ia que ali, exposto ao vento, conseguia reter o tempo entre os dedos.

As serranias escondiam a fúria ventosa que alisava os sopés, desgrenhando os arbustos rasteiros que resistem aos elementos devoradores. O homem de negro, tão só como as pedras restantes desnudadas à erosão, estava no seu elemento. A abrasadora ira dos penhascos por onde tombara, os fogos demoníacos que o haviam consumido, todas as lágrimas que escorregavam os sedimentos de bondade, tudo carecia de cura nas peregrinações ocasionais que o mortificavam nas gélidas bofetadas de vento. Nesses momentos sentia-se asceta. Um zénite de extremos – ancião penhor de renascidas forças, pescador no sopé do monte, pescando o idioma que estendia o pesar por mais dias de antinomia de sacrifício.

Preferia os atravancados caminhos até ao alto da serrania. Por vezes, deixava-se enamorar pelo vento fresco que se misturava com as salgadas gotas do mar sopradas pela borrasca atlântica. Nem o sagrado mistério do oceano, em toda a sua tremenda exuberância, chegava para vingar o enamoramento. Não passava de um instante que se diluía na mansidão incomplacente do sopé deserto. As cercanias do mar são sempre habitadas. Nelas não podia escapar à presença humana, quando tanta era a urgência no refúgio da espécie. Lá no alto, depois das curvas retorcidas e dos impérvios caminhos pedregosos, nunca avistou vivalma em redor, nem na vastidão que o horizonte descerrava diante dos seus olhos. Só ele e o vento.

De cada vez que a revoada de coléricos sopros embatia no seu peito, não conseguia esconder um esgar. A máscara acomodava a raiva que se foi sedimentando desde a última peregrinação sacrificial. A habituação trazia de volta a serenidade do rosto. Os olhos cerrados sentiam o movimento ondulante das rajadas, que na cumeeira esvoaçam na doce anarquia que reprime a macilenta rosa-dos-ventos. Ainda de olhos fechados, empurrado de um lado para o outro, faces maceradas pelo gélido vento invernal que vinha apascentar a sua calma. Não havia desconforto físico que suplantasse a quietude interior que o percorria. O vento entranhado nos poros era o efeito balsâmico. De vez em quando abria os olhos. Às vezes tinha que os fechar pela coreografia de poeira que tingia o ar. Outras vezes o vento agredia a vista, desprendendo as lágrimas que coalhavam na secura da face. Chorava sem chorar: lágrimas apenas da vista agredida, não lágrimas sancionadas pela emoção ou pela tristeza.

Pela noite, o zumbido do vento polar permanecia no imaginário. Convencia-se que os ouvidos tinham ficado retidos na noite escura, emprenhando os acordes do vento que entoam uma melodia ímpar, uma melodia que só se escuta no alto da serrania. À velocidade vertiginosa do vento sucediam imagens esculpidas: das gargantas que uivaram sonoras bravatas, dos dedos atapetados na sua pele em sinal de desafecto, de todas as hipocrisias vis da gente comezinha, dos sítios que só a miopia da vista e da companhia pesavam como idílicos. O desassossego da ventania tinha o predicado de tudo questionar. Dos mais fáceis instantes de mágoa, aos pedaços outrora agasalhados no cobertor refulgente das memórias gratas, estes de insondável matéria que urgia renegar.

Ele sabia. Sabia que carecia de um tonificante banho de vento. Só os rugidos enfurecidos do vento eram nutrientes da exigida expiação. O vento, de tão forte, lava-lhe todos os poros, mesmo os mais recônditos. Impregnava-se no mais profundo do ser. Passado o vento, já do outro lado tingido com a matéria infame que assim se desatou, podia regressar imerso num banho de rosas invisível, que só ele conseguia captar tão perfumado odor. E todo o vento que se esmagara contra o seu peito arrancava das entranhas o remoinho que o mergulhava em negras profundezas, de onde não havia mister de se soltar.

Esse vento, não de soslaio olhado: cumpria a dignidade que fosse enfrentado de frente, com a totalidade do ser entregue aos silvos irados que amansavam o flagelado intérprete da desarmonia.

18.7.07

De como a gramática atrapalha

José Manuel Fernandes, director do "Público", no editorial de hoje: "Da mesma forma que não seria saudável que, há esquerda do PS, não existisse um PCP (...)".

Educar é formatar?


A história da humanidade é fértil em choques de gerações. Mudam as preferências com a passagem de testemunho geracional: nos hábitos, na cultura, nas múltiplas expressões de cultura. Hoje, os mais velhos mostram-se inquietos com os hábitos culturais dos adolescentes (ou melhor, com a ausência desses hábitos e com a qualidade duvidosa dos escassos hábitos). Reprova-se a falta de sensibilidade pela leitura, o total alheamento da poesia. Critica-se a aversão pela sublime música clássica, substituída por produtos de consumo fácil e que tão depressa entram no ouvido como são remetidos ao lugar do esquecimento. Os mais velhos, sobretudo os que são pais, discutem se lhes assiste o dever de um envolvimento activo na educação cultural dos filhos.

Num registo pessoal, não me custa concordar com o diagnóstico. Pelos meus padrões pessoais – o que tem, logo à partida, o viés da subjectividade – a leitura, o teatro, o cinema (sem ser o fátuo cinema de entretenimento que enxameia as salas de cinema), a música, a literatura, a pintura são ingredientes imprescindíveis para o crescimento das pessoas. Por mais que se envelheça, há sempre lugar ao conhecimento de novas expressões culturais. Agem como nutriente que sustenta a existência para além da insípida vida dominada pela monotonia.

Que os mais jovens tenham outros horizontes, que levem as suas preferências por caminhos que nada motivam a minha atenção, será um problema meu. Se gostam do cinema carregado de efeitos especiais, que desvaloriza a intensidade narrativa; se gostam de rap, hip-hop, os de outras xaropadas que se consomem na voracidade do tempo; se o pouco que lêem é a duvidosa qualidade da “literatura light”; se apostam em séries de televisão para o público juvenil, com uma linguagem que só o público juvenil consegue decifrar; se estes são os produtos que atraem os adolescentes e os pós-adolescentes, o mínimo que se pede a quem não se revê nesta “estética cultural” é respeito pela opção. Ainda que ela se dilua em manifestações que não reúnem o nosso agrado e que olhemos para elas e sejamos assaltados pela perplexidade – como é possível alguém consumir daquilo, é a interrogação sobrante.

Regresso ao início: as diferentes gerações não têm a separá-las apenas o hiato da idade, uma espessura temporal que cava um fosso que tantas vezes impede a comunicação inteligível. Entre elas emergem diferentes gostos, diferentes modas (que, para os críticos, hão-de ser sempre modismos, com a conotação depreciativa que a palavra encerra). Também as separam diferentes manifestações de cultura. Nem que aos mais velhos surja, pela sua lente, o diagnóstico de anti-cultura, ou de negação da cultura, ao apreciarem os formatos que reúnem a preferência dos mais novos. Este é um juízo que deve ser combatido por dois motivos: primeiro, depreciar as preferências dos mais jovens revela um desrespeito que não entra nos cânones da tolerância que, essa sim, deve pertencer ao legado educacional; depois, os mais velhos não se podem esquecer que na sua juventude as manifestações de cultura que elegeram também passaram pelo crivo negativo dos que eram mais velhos.

Há um aspecto importante que se junta a esta discussão: como pais, deve a educação para a cultura ser tributária de um activismo militante, que condiciona, pressiona, proíbe? Devem os pais interferir nas preferências dos filhos, orientando-os para manifestações de cultura purificadas pela experiência dos mais velhos? Podem os pais desviar a atenção dos filhos, rejeitando determinados produtos que considerem nocivos para o seu amadurecimento? Podem impor manifestações culturais que fazem as delícias dos pais, mesmo que os filhos sejam feitos de outra massa e não mostrem sensibilidade para tais produtos? Todas estas perguntas merecem um não como resposta. De outro modo, o que temos é a formatação de personalidades que espezinha a sua individualidade. E que pode colocar os mais novos em rota de colisão com outros da sua idade. Nestas idades, desalinhar dos modismos pode levar à marginalização, com as consequências dolorosas para quem fica ostracizado.

Acho que se dramatiza de mais quando se observam os hábitos dos mais novos, as suas preferências no domínio cultural (ou a sua escassa sensibilidade para o domínio). Os movimentos que aglutinam as preferências dos mais novos não nasceram de geração espontânea. E ainda que pessoalmente alguns deles, nas suas exibições, repugnem, não devemos condicionar o acesso aos mais novos. Se o fizermos seremos educadores que se impõem pela imperatividade compulsiva, na pretensão de que os mais novos herdem à força as nossas preferências culturais. Educar não é formatar. É responsabilizar. Resta-me a prova dos nove: saber se consigo levar à prática todos estes preceitos que, para já, são ainda teoria. O tempo trará estes dilemas.

17.7.07

Dressing code


Fixam-se convenções, mil e uma, para tudo e mais alguma coisa. Convenções que impõem observância obrigatória. Ou os dissidentes são enclausurados numa prisão sem grades, a pior das cadeias: a censura das maiorias habituadas à normalidade, que apontam o dedo às ovelhas tresmalhadas do rebanho tão ordeiro.

Alguns, ciosos da disciplinada vida em grupo, entretecem laborioso argumentário: imperativos, os sinais de pertença ao grupo; e todos os indivíduos devem declinar a sua individualidade perante a inclusão na sociedade. As convenções cimentam essa pertença. Ai de alguém se delas se afasta. Sobre ele pesará a espada lancinante da exclusão. Ensinam-nos que não é o grupo que os exclui. É auto-afastamento, por repulsa das convenções estabelecidas. Ao que acresce o incómodo lastro de ser visto pelos demais como aberração.

Há destas convenções espalhadas à nossa volta, um cerco asfixiante à individualidade. Por mais que os engenheiros sociais e os arautos da normalidade enfatizem que são regras de sociabilização, de imperativa verificação como sinal de inclusão no grupo, há o espezinhar da individualidade dos que não se revêem nos códigos a que são coagidos se querem engrossar a imparável maré dos que remam para o mesmo lado. Há ideias que não convém professar em público, logo se vergando ao estigma da marginalização por desafinarem dos padrões bem pensantes. Temos que vestir o que está estipulado para certas situações, ou o vestuário que desalinha dos padrões é entendido pelos sacerdotes das convenções como manifestação de exclusão.

Só o totalitarismo das mentes inquietadas com a paciente arquitectura de um rebanho muito ordeiro e homogéneo é que acata o atropelamento do livre arbítrio de quem não se revê nas convenções estabelecidas. Trata-se de apurar o que vale mais – se a individualidade do ser, se a submissão do ser aos imperativos do grupo, quando o ser entra por meandros exóticos. Alguns, penhores das convenções que fixam a sã convivência em grupo, ofendem-se com os que se distanciam do padronizado. Acham que há nessa atitude uma provocação inaceitável por ameaçar a solidez do edifício social. Não curam de perceber as motivações dos que são olhados com a suspeição tão típica do rótulo de aberração. Em vez da inquirição do que os motiva a rejeitar as convenções, adivinham que se trata de provocação. Pelo caminho, arremata-se a sentença: à provocação aos usos sociais que pode esboroar o cimento do grupo, responde-se com a exclusão, estende-se a passadeira para as proibições. Os comportamentos que ousam desalinhar do estabelecido são interditados.

Vou invocar o exemplo de sociedades tão ocidentais como nós mas que se inspiram numa matriz cultural diferente – as sociedades anglo-saxónicas. Há uma tradição arreigada de respeito pelas decisões individuais, sem que elas sejam encaradas com o perfume da provocação quando se afastam das convenções estabelecidas. A ninguém é vedada a entrada por ostentar um aspecto diferente, por trajar vestuário bizarro, por adornar o corpo com piercings ou tatuagens, ou até, no caso das senhoras, pelo minimalismo das vestes. Prevalece a abertura de espírito para aceitar que os outros, os que não pactuam com as convenções, tenham direito à cisão. As sociedades anglo-saxónicas preservam o império do livre arbítrio, que se sobrepõe sobre o fanatismo dos códigos de pertença social como escrupulosos roteiros. Temos muito a aprender com as sociedades anglo-saxónicas. Lamentavelmente, o viés da análise impede que o paradigma de mudança desejado actue quando esbracejam sanções contra atitudes dos que são levados ao ostracismo social.

Não consigo ser juiz dos comportamentos alheios. Não esperem que exerça este papel, cerceando o acesso aos que trajam vestuário que provoca as convenções, aos que ostentam adornos que chocam sensibilidades. Ainda que esse vestuário e os ditos adornos estejam nos antípodas da minha estética, ainda que fosse incapaz de assim vestir ou de andar tão tatuado ou preenchido de piercings. O monolitismo da aparência, do discurso, das ideias, das convenções que se impõem com a força perene, é um espartilho aos que de tudo isto são dissidentes. E a menos que a democracia já não se conjugue com tolerância, sou incapaz de caucionar esta engenharia social que, afinal, se confunde com um qualquer totalitarismo.

16.7.07

Somos o povo mais honesto da Europa


Ouço um especialista em saúde oral debitar estatísticas. Retenho um dado: como tantas vezes sucede nos campeonatos particulares que comparam países europeus, há um em que estamos a encabeçar a tabela: o número de dentes per capita. Rivalizamos com a Albânia e a Eslováquia na escassez de dentes. Há duas maneiras de olhar para os números. Tanto podem ser lidos como a ordenação, em razão decrescente, do número de desdentados por país – e aí localizamo-nos no topo. Como podem ser lidos pela inversa, e aí os campeões denunciam a cauda da Europa, um certame de que não se tem orgulho em ser campeão.

Mas há uma faceta agradável nestes números, apesar da reacção imediata de desaprovação, censurando a incultura dos patrícios que teimam em fazer tábua rasa dos hábitos de higiene oral (que, pela ausência, levam à progressiva perda de dentes). Só para provar que mesmo nas façanhas que não fermentam o orgulho pátrio se lobriga esperançosa luz que tinge de cor o cenário que, de outro modo, seria deprimente. A alavanca é a expressão “mentir com todos os dentes que tem”. Quanto mais avantajada for a dentição, maior a propensão para a mentira. Uma personagem causticada por inúmeras visitas ao dentista, com um cadastro invejável em ablação dentária, oferece-se ao altar da honestidade forçada. Com pouco dentes para exibir, pouco dado à mentira.

O ratio dentário aparece na inversa proporção da queda de cabelo. Há um traço comum a ambos os fenómenos: serão os mais velhos que se entregam com maior probabilidade à carência de dentes e à ausência capilar. Perda de dentes e de cabelo são sinónimos de larga experiência de vida, curtida na idade que foi passando e levando dentes e cabelo. Onde as duas experiências de envelhecimento divergem é no significado perante a mentira. O esmero da idade, visível no abrandamento capilar, apura o sentido da mentira. Ao contrário, se é verdade a relação causal entre número de dentes e propensão para a mentira, os que envelhecem perdendo dentição vão conquistando um lugar privilegiado no altar dos honestos.

Não fixei de memória os países que contrastam com Portugal no campeonato da dentição. Serão países do centro da Europa. Porventura isso explica a crise civilizacional que alastra no ocidente. Sinal dos tempos: como prova do aumento da qualidade de vida, as pessoas chegam ao fim da vida com mais dentes. Com mais dentes para mentir, a crer na fórmula que ganhou foros de convenção – o “mentir com todos os dentes que tem”. Eis o dilema dos países mais avançados: elevados padrões de saúde oral aplainam terreno para a mentira congénita. Disso – mentirosos compulsivos – não carpem os lusitanos sua mágoas, já que as dentaduras fartamente esburacadas impedem níveis preocupantes de intrujice. Com poucos dentes para trincar, deixamos o papel de corsários da mentira aos vencedores deste campeonato particular.

Este é um dilema que angustia a civilização ocidental. O que é mais importante: o bem-estar material ou o respeito por valores? Ter dentes, e muitos, ou pelo desdentado cadastro sermos certificados pela propensão à honestidade? Os tantos críticos da materialização da pessoa terão abundante matéria para desvalorizar os predicados da higiene oral. Que interessa lavar os dentes e ir ao dentista curar das cáries, para prevenir a passagem do ponto sem retorno onde a extracção de dentes é fatal? Garantia de mais um ponto a favor da honestidade. Por cada dente perdido, menos uma carta a favor da mentira.

Doravante, fica facilitado o escrutínio das relações pessoais. Basta contar o número de dentes. Trocam-se fichas dentárias entre os amantes que iniciam uma relação. Ou abrem a boca para inspecção recíproca - e poucos dentes garantem fidelidade. Cientistas dedicados hão-de aprimorar uma escala que relaciona número de dentes com tendência inata para patranha. Aplicado ao mercado político, os partidos hão-de escolher candidatos desdentados. E teremos que nos habituar a novos padrões estéticos. Não como hoje, que achamos feia uma sorridente boca que mostra as cavidades onde outrora estavam enraizados dentes que apodreceram; o lastro dos honestos, quando a honestidade é caução necessária, será a boca alegremente ostentada em todas as perfurações onde já existiram dentes. A moralidade sobreposta à estética. Deixará de fazer sentido aquele verso de Cesariny (no poema “Pastelaria”):

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
”.


13.7.07

O transexual lésbico


Estou à vontade para satirizar o transexual que foi em tempos rei da montanha na volta à França em bicicleta. Em minha defesa, e contra a possível ira do lobby gay, posso arrolar textos (vertidos neste blogue) em favor da liberdade de opções sexuais, sobretudo das que controversamente têm o rótulo de “alternativas”. Até cheguei a apoiar a adopção por casais homossexuais, o que de mim faria um reles traidor à normalidade conservadora e ao garbo marialva.

Hoje não resisto a elaborar sobre uma história alucinante que vinha nas páginas do Diário de Notícias de anteontem: um ciclista, um másculo ciclista prenhe de músculos disformes, que em tempos foi apanhado num controlo antidoping por excesso de testosterona, mudou de sexo. Andou desaparecido anos e anos. Até faltou a uma gala que o galardoava por relevantes feitos desportivos. Ninguém sabia dele. Quase por magia, como se fosse possível ao corpo humano evaporar-se no meio das nuvens altivas. Robert Millar deu à costa com um novo bilhete de identidade: Philippa York.

O libertário não tem preconceitos deste género. Aceita as opções individuais, quaisquer que sejam. Daí que as palavras que se seguem (depois deste parágrafo) não devem ser treslidas: não há, nem pode haver, censura à decisão que pertence à intimidade da agora senhora Philippa York. Sinto um profundo respeito pelos transexuais: primeiro, pelo mortificante dilema interior, ao terem a certeza que vivem dentro de um corpo que corresponde ao sexo errado; e depois pela coragem de assumirem a mudança de sexo, logo objecto de chacota social, merecendo do povo comum reprovação apressada, os transexuais metidos na gaveta das aberrações que não merecem sequer complacência social. Que estas palavras sirvam a minha absolvição perante a intransigente LGBT. Um pouco de sátira engrandece a causa que dizem servir. Ou isso, ou um mergulho nas águas pantanosas da intolerância, acusação que afinal esgrimem contra aqueles que não aceitam a coligação arco-íris.

Não é pelo caminho da troça mundana que vou. Há algo mais tonitruante: Robert Millar, perdão, Philippa York vive pacatamente numa pequena localidade rural no sudoeste de Inglaterra, quase onde o remoto País de Gales começa. No regaço da sua namorada, rezam as notícias (rezam só a propósito da “namorada”, não do “regaço” – que esse é da minha lavra). Como diria o povo, “juro pela minha saudinha” que não fiquei chocado com a mudança de sexo do trepador (termo técnico do ciclismo que retrata especialistas em escalar terrenos empinados, serra acima). Só fiquei confuso com a mudança de sexo e a partilha de vida com uma namorada. (Falta um detalhe importante: a namorada existia antes da mudança de sexo, ou só entrou na vida de Millar depois de se passar a chamar Philippa York?)

Nada melhor que o amadurecimento do tempo para temperar reacções espontâneas. Ao início, fiquei atónito: um homem fez-se mulher para partilhar o tecto com outra mulher! Foi então que dei conta que estava a ser atraiçoado pelo tabu heterossexual: a mudança de sexo só fará sentido, pensa o heterossexual ponderado, quando corresponde à atracção pelo sexo diferente daquele que o transexual passa a envergar. Ensaio uma fórmula para decifrar o enigma acabado de descrever: se um homem se transforma em mulher, presume-se que no seu renovado corpo de mulher se sente sexualmente atraído(a) por alguém do sexo diferente, neste caso, um homem.

Saltadas as barreiras do preconceito heterossexual, admito que é normal a um transexual viver com alguém de sexo diferente ou do mesmo sexo. O que me perturba é a confluência de atritos pessoais que gravitam na cabeça do transexual. Eis as hipóteses. Primeira: o homem passa a ser mulher e coabita com um homem. Diagnóstico possível: a juntar ao desgosto pelo sexo que a concepção uterina lhe trouxe, uma homossexualidade recalcada? Ou o desejo de se libertar dessa homossexualidade? Respectivamente: a fuga para o corpo feminino é pretexto para assumir a homossexualidade que passa a estar escondida no corpo transformado em mulher? Ou para se entregar finalmente à heterossexualidade que rejeitava enquanto era homem? Segunda hipótese, o protótipo Millar (perdão, Philippa York): o homem faz-se mulher e partilha os lençóis com outra mulher.

Especialistas em decifrar os enigmas da labiríntica mente humana decerto encontram explicações fáceis. Ao leigo, só foi possível avistar a seguinte: Millar gosta tanto, tanto de mulheres, que deixou para trás o corpo masculino e amantizou-se com uma mulher. Não consigo conceber maneira mais expressiva de exibir devoção por mulheres. Tanto que até alterou a preferência sexual depois de ter abdicado da sua masculinidade.

12.7.07

A desnorte


Na gravidade do momento, disse: vivemos mergulhados numa profunda crise de identidade. Desconhecemos as raízes e não curamos de saber qual o destino. Algo lhe diz que entregámos a bússola a um desapiedado filisteu que nos leva na contingência do dia que corre. O porvir merece um tremendo desprezo. A crise de identidade está na deriva de sentido, apoderados pela desorientação do significado da vida. E convocava à purificação das almas, guiadas pela exigência do desapossamento das coisas materiais. Em vez de errarmos por estima.

Aos sacerdotes apresenta-se um combate problemático. Jovens e menos jovens, uns pela facilidade anti-higiénica dos prazeres que se consomem na voracidade do instante, outros pela cedência ao cepticismo militante, outros pela sucessão de desapontamentos vividos, outros ainda porque apenas desistiram da idílica visão que convoca os sentidos – a multidão que se afasta dos altares da metafísica. Se há crise de identidade, é uma demissão da religiosidade das pessoas. Haverá nos curadores da religião uma decepção que semeia a amargura de quem sente os sedimentos da derrota no combate pela evangelização perene. Podem as convicções pessoais, a fé que os norteia, ser a centelha que incendeia o caminho que julgam certo. Sabem, sacerdotes e crentes, que prosseguem ordeiros sem cederem às mãos trémulas que os desviem desse caminho. Aos demais, tresmalhados, resta um mundo de trevas, tão escuro como a câmara hermética que apenas deixa ver a luz ténue, a luz de um dia que se segue ao outro.

Não sei se a crise de identidade é sinal de demissão da espiritualidade. Não sei se os sacerdotes se dão conta do esvaziamento dos templos e auguram a diluição do filão das religiões – a multidão que acata os dogmas, no império de uma fé que amedronta, por mais que os rudimentos espalhados aos quatro ventos sejam profissões de bondade e de esperança. O que me perturba é a prédica de bondade dos sacerdotes quando um ente querido viu a vida prematuramente ceifada. Podem as palavras ecoadas trinar melodias suaves, impregnadas de uma esperança eterna; podem essas palavras apelar à memória do falecido, e dizer-se que a convocação da memória é prova de que a pessoa ida vive presente entre nós, memórias como esteios da intemporalidade.

Essa perenidade, diz-se, é o sentido sublime da vida, da vida que se desprende da materialidade do corpo e presta tributo à imortalidade do espírito. Eu diria: apenas um punhal cravado na dor de quem chora a vida perdida. O discurso esperançoso desvela um enorme campo promissor. Os passos cansam ao longo desse campo fértil em promessas. A névoa permanente, que parece esconder o lugar idílico que algures se há-de revelar, não deixa de carpir as suas lágrimas que se juntam às lágrimas vertidas por quem sofre pela ausência. As promessas de um campo florido, cheio de cores garridas e rosas perfumadas, adiadas pela névoa que teima em ofuscar o horizonte. Essa névoa deita-se sobre o campo afinal árido. As palavras carregadas de esperança, tónico que serena as almas despedaçadas pela morte de alguém, são a névoa que anestesia as dores que incendeiam as veias.

Da crise de identidade fará parte a descrença nesta vida que se desprende da exiguidade terrena. São os alpendres dos cépticos, daqueles que só crêem na temporalidade do corpo, que entronizam a crise de identidade. Não aprendi ainda a discernir se é demissão de espiritualidade o desapego pela identidade servida em bandeja envenenada pelos sacerdotes. Não sei se o envelhecimento e os tantos espinhos que se foram cravando nos ponteiros do tempo maceraram a intrepidez pelo tempo que os meus dedos conseguem agarrar. Poderá ser a angústia do agnóstico perante a morte, perante cada episódio de morte que lhe bate no peito, a amadurecer a terrível reverência pela vida. Não me interessa saber o que me trouxe até aqui, nem menos devotar esperanças no volúvel trajecto prometido quando os olhos se fecharem.

Se é crise de identidade sagrar a vida que se vive, nem que seja na temporalidade do dia presente, é nessa crise que quero habitar. Quando pela morte alheia vem a multiplicação de promessas vãs, a vacuidade de uma vida eterna que não me provam real, olho para a vida tão pueril das crianças e se ergue ao alto a sagração da vida que os meus olhos vêem e sentem.

11.7.07

O primeiro-ministro que não gostava de vaias


Ele inquiria os seus botões: “não estou no meu direito de ficar incomodado quando sou assobiado em público?” Sentia-se injustiçado. Incompreendido. Ele dava o seu melhor, convencido no seu íntimo que era o predestinado para levantar a terra que governava de décadas a fio de desesperança.

O homem do leme, penhor das suas certezas, convicto que não havia lugar a discordar dele. Que lhe segredassem que a intolerância desafina da democracia que o elegeu, era pormenor remetido para as profundezas do insignificante. Os desígnios maiores não se compadecem com detalhes desse jaez. É que a democracia não está em risco. Para sossegar os desconfiados, de vez em quando afinava a retórica bem pensante da democracia, da liberdade de expressão, do direito à dissidência de opinião. Oleava a opinião pública, serenada com as suas doutas palavras. Ainda que os passos trocados da prática venham desmentir as palavras ocas que embelezam a retórica inconsequente: espezinhar liberdades, de mansinho, cercear manifestações que repudiam o governo que ele dirige.

O primeiro-ministro ficava perplexo com as acusações. Como podia alguém acusá-lo de autoritarismo, se outros partidos para além do bem-amado PS continuam a existir e a ter acesso à comunicação social? Os episódios que engalanam a crítica são erros sem significado num percurso sem mácula. Que interessa a mesquinhez e a baixa política dos atentados à liberdade de expressão de dedicados pastores do chefe espalhados pela administração pública? O primeiro-ministro desvalorizava esses episódios. Minudências. Sentia-se atacado na sua honorabilidade porque num mar de liberdades só olham para as excepções. Incomodado com tanto barulho na opinião pública, temia hipotecar a autoridade se desse as exigidas reprimendas aos paranóicos militantes que não sabem o que significa liberdade de expressão e exigem zeloso respeitinho ao timoneiro. A lealdade deve ser premiada. Mais que a sagração das liberdades.

Cansado de carregar o peso de acusações sem razão, também se cansou de ouvir vaias em público. Por onde passava, em pomposas inaugurações que compõem a cirúrgica encenação da sua imagem, havia ingratos que assobiavam, pateavam, insultavam. Um primeiro-ministro não se deve expor a esse desconforto. Bastam-lhe as dores de cabeça da governação – e agora redobradas, que lhe calhou em sorte um semestre de presidência da União Europeia. Continua a pensar com os seus botões: inaceitável questionar em público o líder de um país, mais impensáveis os apupos ao presidente em exercício da União Europeia. Outra vez o respeitinho em acção, agora com o reforço da dimensão geográfica.

É legítima a fuga do primeiro-ministro aos protestos públicos. Por onde passa, ouve as vaias dos descontentes. E eles são uma minoria, mas sobra-lhes a voz amplificada dos holofotes da comunicação social, instrumentalizada para estender o microfone aos descontentes. O primeiro-ministro indigna-se: as sondagens continuam a mostrar a sua popularidade quase intacta e o PS a boiar na confortável maioria absoluta. Prova de que os descontentes são uma escassa minoria. Ele, como penhor dos interesses da maioria, não tem que dar ouvidos às manifestações de minorias sem significado. Tem legitimidade para se furtar ao incómodo de vaias públicas. Um homem tem a sua dignidade própria, a auto-estima que só a ele cabe preservar. Um primeiro-ministro é um homem, tão mortal como qualquer mortal.

Estão enganados os que o acusam de autoritarismo quando dá instruções para a proibição de protestos na enésima inauguração que aformoseia o seu governo. Como estão enganados os que o criticam pela arrogância, por ser incapaz de aceitar uma opinião diferente da sua, por reagir incomodado aos que o confrontam com a dissidência de opinião. Há aqui um travo de ingratidão de um povo que contesta o seu líder. Devia vir ao de cima o recato das pessoas, percebendo as tantas dores de cabeça que governar um país – e agora a União Europeia (ou outra falácia da bem oleada política de comunicação do governo…) – implica. O primeiro-ministro assevera: “não há direito!”.

Acontece às sebastiânicas personagens que se levam muito a sério, demasiadamente a sério. Não, não é o autoritarismo latente que preocupa, com o espezinhar das liberdades que se julgavam garantidas pelo regime. Doentio é o culto de personalidade que respinga a cada instante que passa. Leva à infalibilidade, à certeza empenhada de que tudo o que é feito e dito não merece contradita. Inditosos os pobres de espírito, acabrunhados na mesquinhez que os não deixa alcançar mais longe que um palmo à frente do nariz: desses não há-de rezar a História, para desdita do seu tão enorme ego que se cultiva em magnífica personalidade. Ficarão como vírgulas, e redundantes, nos anais. Insignificantes personagens que se perdem na confusão de espírito e caucionam esbirros que há não muito eram vituperados na sua bufa condição. Um bufo em democracia não é um bufo. E um primeiro-ministro que reprime as vaias dos descontentes é um democrata emérito. Isto dito à exaustão pode ser que formate as mentes, até dos relutantes. E tudo há-de regressar à normalidade.

10.7.07

S. Fermín, ao contrário de Hemingway


Por estes dias amanhecem largadas de touros em Pamplona. As célebres festividades de S. Fermín atraem multidões a Navarra, na celebração da tradição com touros a servirem de bodo no festim do povaréu. Que traja de branco apenas tingido por um lenço vermelho, o ténue chamariz da fúria da manada que cavalga as ruas escorregadias pela humidade matinal pamplonense.

A multidão apinhada; os mais bravos acotovelam-se nas ruas, à espera da cólera taurina que irrompe pelo caminho que desagua na praça de touros; os mais curiosos, a quem a destemida tempera se ausentou, assistem em lugares seguros à correria ensandecida dos touros atrás dos corajosos que, esbaforidos, perseguem o registo imaculado do corpo sem feridas. Às vezes, a largada dura pouco tempo, nada mais que um par de minutos. É quando a manada vai até à praça de touros sem percalços, sem cair numa esquina traiçoeira, sem haver uma rés que se perde da manada, distraída com um aventureiro que se aproximara demais, sem nenhum dos touros colher um valente mas inexperiente folgazão que leva cicatrizes para contar de regresso a casa.

Outras vezes, o caos é semeado nas ruas de Pamplona. Os animais enfurecidos, ou apenas desorientados com tamanha algazarra, detêm-se, inflectem a marcha e tornam o festim no desespero dos foliões. Uma arremetida de um touro acerta num incauto destemido que voa, destacando-se da multidão que permanece de pés colados ao solo. Se acontece cair junto do touro, a segunda investida pode ser trágica se o touro se debater com o corpo agachado e espetar uma haste seccionando artéria vital. As largadas de touros levam uma contabilidade de mortos e estropiados que não cerceia a sagração ano atrás de ano.

Hemingway celebrizou nos seus escritos as festas de S. Fermín. O escritor experimentou as sensações vertiginosas de correr no meio do ajuntamento à frente dos touros desarvorados. Deixou testemunho da bravura dos homens que se entregam às ruas escorregadias de Pamplona e arriscam o corpo, a vida até, na fuga aleatória da manada ciosa de investir contra o primeiro corpo trajado de branco que fique ao alcance das hastes pontiagudas. Compreendo o esforço antropológico, que explica o festim pelo ângulo da tradição. As tradições ancestrais são explicação fácil para diversas exibições que se furtam ao racional. Há muito quem faça a sagração de celebrações populares invocando a tradição e a exigência dela ser respeitada, ou faltamos à homenagem de que os nossos antepassados são penhores. É uma explicação fácil e ao mesmo tempo estulta. Como se a tradição fosse um prolongamento da fé religiosa que nunca se questiona por ser matéria dogmática.

Para além da homenagem ao legado dos antepassados, não vejo maneira de perceber o que leva a horda a perfilar-se diante do caminho pisado pelos touros. Decerto haverá uma louca irracionalidade a percorrer o sangue fervente da turba, uns pelo dever de sagrar a tradição, outros pela adrenalina do evento, uns ainda pela devoção à tauromaquia, que assim podem por uns instantes ser artistas do espectáculo e não apenas seus espectadores. E seguem em apressada correria, no meio do caos em que todos se atropelam quando um touro se aproxima demais, no papel das vacas malhadas que vêm para a arena indicar o caminho da saída ao teimoso touro. A multidão vestida de branco é o isco perseguido pela manada, cada vez mais encolerizada pelo burburinho que se junta às pateadas da multidão na calçada calcorreada em desatino por touros e homens.

Confesso a atracção pelas largadas de S. Fermín. Não arroteio a cientificidade antropológica, que procura os sedimentos da tradição. Nem as explicações psicológicas que desbravam as razões insondáveis da mente dos destemidos à frente da manada. Descarto até os ensaios sociológicos, que explicam o comportamento do grupo nas festividades. Em vez disso, deleito-me, espectador ocasional das largadas, com o destempero da horda quando um touro se acerca, como se comprova que nesses momentos vale o lema “cada um por si”, prova inequívoca de que somos todos individualistas. E confesso o gosto perverso de ver alguns afoitos arremessados pelo ar, em funestas cambalhotas desenhadas uns metros acima das cabeças dos demais, até tombarem inertes no calçada pedregosa. Por um momento que seja, haja honra na tauromaquia ao permitir igualdade de armas entre touros e homens.

9.7.07

Dom Narciso


Era uma vez um homem muito pequenino que queria ter a estaleca dos predestinados, sobredotados espíritos que vogam com douta sabedoria acima de todos os outros, humildes mortais. Um ego que não se sabe conter dentro das fronteiras do ser. Extravasa a brilhante aura, aspergindo pozinhos da mente brilhante em seu redor. Os que os rodeiam são agraciados pelo sublime dom da sua existência. Agradecem, penhorados, pela sapiência inigualável.

Todos os dias, quando se olha ao espelho, o narciso admira-se. Contempla a sua existência e percebe que o próprio espelho dá graças por receber a cintilante imagem que exala do seu ser. Congemina, pela manhã, mais um acto de exaltação pessoal. Como não se contenta com o conforto íntimo dos feitos alcançados, é tomado por uma tremenda necessidade de mostrar aos outros como se alcandora ao púlpito dos escolhidos, daquele escol que ambiciona, e consegue, adejar numa dimensão quase sobre-humana.

Dir-se-ia que representa o sucedâneo das entidades divinas em plena Terra. Sem perder de vista a urgência em exibir a refulgente aura, para marcar a diferença em relação aos demais, com certeza à espera que os demais prestem a vassalagem que trina o reconhecimento da imponência científica do narciso. Seguem-se as genuflexões da praxe, com a passadeira vermelha estendida para que os pés narcísicos não se maculem com a sujidade por onde os demais vegetam a sua vida.

Não se cansa de vomitar proezas para cima dos seus pares. As proezas assim descritas, com pormenores que desalinham dos cânones, vêm empalhadas na retórica do culto da personalidade. Ao longo dos fartos anúncios de feitos do predestinado narciso, há a linguagem perfumada com o panegírico em nome próprio. Na espantosa capacidade para esfregar o seu próprio ego, de mão dada com a cegueira que o impede de discernir o ridículo que o abraça. Decerto não compreende que é o único a publicitar proezas que entram no domínio do etéreo, como se os demais fossem uma corja de preguiçosos que vagueiam nas catacumbas da esterilidade científica. Ao deitar, quando por demorados minutos volta a admirar a sua existência diante do espelho, reforça o convencimento que tem de si mesmo: faz a contabilidade de merceeiro e compara a diarreia de proezas que publicita com a ausência dos seus pares. Deita-se com o reconforto de saber que sozinho produz incontáveis vezes mais do que os seus pares todos juntos – e eles são umas largas centenas!

Aprecio o narciso. A vida seria tão mais aborrecida se não houvesse motivos para sorrir. Seriam entediantes os dias percorridos através da normalidade instituída, presa aos ditames canonizados. Há, de vez em quando, personagens saídas de um conto fantástico com o dom de cercear a monotonia tristonha. Destoam. Chamam a atenção: a verve imparável, a fantástica essência – e o fantástico, reza o dicionário, diz-se do criado pela fantasia. Tão depressa jorram pinceladas feéricas do auto-convencimento, como brota a vozearia só ao alcance das aberrações a destempo. Personagens valiosas: destroem a entediante repetição dos dias, saltando por cima das barreiras do trivial; espalham as sementes do folclore de que precisamos, nem que seja para que o sorriso reprimido pela entediante repetição dos dias se liberte das catacumbas onde vive aprisionado.

E, contudo, temo que haja patologia furtiva nos interstícios de Dom Narciso. A urgência em esbofetear os seus pares com os sedimentos de uma produção infatigável, que não poupa nos encómios a si mesma, mostra recalcamentos de tempos idos. No contraste com os dias da glória, tão pródigos em proezas fantasmagóricas, façanhas embrulhadas em originalidade cansativa, porque de tão repetitiva perde o timbre do ineditismo. Sinal dos tempos: vingam os despudorados que se apresentam como sacerdotes maiores da ciência, quando consta que não passam de actores menores que, ululantes, se colocam em bicos dos pés para serem reconhecidos como expoentes. Pena que só o narciso se veja a si mesmo como expoente. Expoente da sua pequenina e épica existência.

6.7.07

É a globalização, estúpido! (Ou: Mao-Tsé-Tung era benfiquista)


Notícias fresquinhas sobre o “grandioso” Benfica. E bombásticas. Uma semana de emoções para tantos exemplares pais de família (como sabemos, só o são – exemplares – se tiverem cartão de sócio, ou pelo menos simpatia, pelo Benfica). Início de época, que é quando as esperanças ainda fazem sentido. Um equipamento cor-de-rosa, levando todos os marialvas pais de família a reconsiderarem opções estéticas: de agora em diante, o cor-de-rosa trajado por másculos varões deixa de ser sinónimo de homossexualidade, declarada ou apenas recalcada. O efeito Benfica é esplendoroso.

Já o clube andava na ribalta – como se fosse possível ao “maior clube do mundo” deixar de o andar – quando ao “comendador” das artes e de mil e um negócios apeteceu fazer uma OPA sobre a “instituição”. Do alto da habitual incontinência verbal, Berardo advertiu que o Benfica tem que ser catapultado para o estrelato mundial. Se for descontado o efeito apatetado da incontinência verbal do “comendador”, há algo que me deixa perplexo: se o Benfica já é o “maior clube do mundo”, porquê cuidar de fazer dele ainda maior? (E que me seja perdoado o excesso de aspas, mas o tema de hoje e as expressões vulgarizadas a respeito dele assim o exigem.)

Hoje de manhã, enquanto o pequeno-almoço seguia a caminho do estômago, ia lendo as notícias semeadas noite fora. Parangonas todas para a bombástica notícia: um grupo de investidores chineses dobrou a oferta de Berardo na OPA ao Benfica. Enquanto o pequeno-almoço continuava a sua marcha maquinal para o estômago, não resisti a imaginar a indigestão que a notícia provocará na “nação benfiquista” (outro sonso lugar-comum que a imprensa desportiva consagrou, daí que apareça grafada). Os chineses vão comprar “o maior clube do mundo”?! Não pode ser, dirão em coro os pressurosos benfiquistas, preocupados com a adulteração da “instituição”. Alguns, ainda desconfortáveis com a bichice do equipamento cor-de-rosa, começam agora a juntar as pontas do enigma, ideando uma teoria da conspiração. Hão-de descobrir que os chineses estão detrás da trama cor-de-rosa, feitos que estão com a marca de equipamentos. O que virá a seguir: o presidente do FC Porto sócio do Benfica, com direito a medalha de honra e tudo?

O dia de hoje há-de ser fértil em manobras de bastidores. Reuniões secretas, telefonemas em desmultiplicação, muita gente de mãos à cabeça recusando ver o Benfica comprado por chineses. A classe política será chamada à colação. Para desdita dos apaniguados do “maior clube do mundo”, Sampaio já não é o presidente da república. Fosse-o ainda e seria aliado privilegiado: o felizmente ex-presidente da república patrocinou o relambório dos centros de decisão económica que devem permanecer em território pátrio. Sobra o primeiro-ministro, adepto da “instituição”. Decerto sensível à catástrofe que se anuncia. E que deve ser evitada. Qual presidência do Conselho da União Europeia: o Benfica sobrepõe-se em importância.

As pressões sucedem-se. Não valerá a pena insistir muito com o “comendador”. O amor benfiquista não chega para derrotar o ror de dinheiro dos chineses. Berardo fará as suas contas: impensável dobrar a oferta pelas acções do “grandioso”. Maldito dinheiro, que vergas o fátuo “amor benfiquista”. Restam os políticos. Faça-se lei a impedir expressamente a aquisição do Benfica por estrangeiros – e, quanto mais remota for a origem dos estrangeiros, maiores os obstáculos à alienação. Há-de fazer história o patriotismo económico e clubista, para gáudio dos arautos da desgraça que não se cansam de condenar a nefanda globalização. Um pequeno país, de parcos recursos, há-de mobilizar o amor clubista e derrotar o poder do capital sem rosto. Vingam as tradições sobre o poder apodrecido do dinheiro que se convence que tudo compra. O “grandioso” há-de ser uma ilha que resiste à alterosa maré da globalização. Pois é a globalização o instrumento que alimenta o chamariz Benfica. Os benfiquistas até deviam estar orgulhosos: os chineses não querem comprar nenhum dos clubes rivais, só querem ficar com o Benfica na mão.

Eu diria que faz todo o sentido que o “maior clube do mundo” seja açambarcado por capitalistas chineses. Como “maior clube do mundo”, é óbvio que o Benfica é o clube do povo, o mais popular. O povo é defendido pelo comunismo, como sabemos. Os chineses vêm de um país onde o comunismo ainda resiste. Pena que este ano o Benfica tenha perdido um jogador italiano que, envaidecido, ostentava tatuagem de Che Guevara numa perna. O ramalhete estava completo.

(Só uma correcção: não sei se esta agremiação é, como cansativamente nos enchem os ouvidos, “o maior clube do mundo”. O que sei é que neste rectangulozinho na ponta ocidental na Europa há um clube que tem mais sócios que o Benfica: o Automóvel Clube de Portugal. As estatísticas são como o algodão: não enganam.)

5.7.07

Um passo em falso


Na inocência dos gestos, ou na grandeza dos projectos, momentos exigem passos em frente. Passos, sejam pequenos ou do tamanho da perna de um gigante. Decisões. Para a vida não ficar na mesma, entregue nos braços de uma desanimadora sensaboria. E, contudo, antes de avançar a perna apodera-se a indecisão. As hesitações pontuam as frases que percorrem o espírito. Ora a reclamar que o passo se decida, ora a desfiar um rosário de dúvidas que espalham a incerteza e coíbem o passo. Por temor que o passo venha em falso, o corpo a rebolar sem parar pela ladeira abaixo. O passo em falso que só então dirá que vamos a meio da queda no precipício sem retorno.

Enquanto os pontos de interrogação chovem com insistência, não se apressa o passo. As interrogações aparecem no receio de que o passo venha em falso. Impede o progresso da vida, esta prudência amedrontada que se inquieta com o pavor de um passo em falso, por pequeno que seja, por insignificante que seja o precipício. Há os destemidos que avançam, decididos, pelo quarto escuro rumo ao lado contrário. Podem não saber o que se encontra do lado oposto, nem sequer saber se vão deparar com espinhos pontiagudos que abrem feridas dolorosas nos pés. Avançam. O seu temor é a indecisão. Receiam abraçar-se à impassibilidade que arremete contra os corações palpitantes, ciosos de novos ares.

Há os outros. Apenas prudentes, ou apavorados com a queda estrondosa se o passo vier em falso. Apavorados com a possibilidade de tombarem do cadafalso – assim lêem as consequências penosas do passo em falso. São militantes em hesitações. Perfumam a sua vida com a monotonia das mesmas cores, das rotinas estudadas, nos dias que se repetem uns aos outros numa sequência mecânica, seca. Aos destemidos, aquelas são vidinhas com ingredientes comezinhos, os lugares tão habituais e soturnos, a insignificância da existência. Repugna-lhes o comportamento que se enleva pela sensatez que se confunde com precaução que se confunde com apatia. Por eles, hesitantes denodados, o mundo teria parado lá atrás. Os que não hesitam em avançar, nem que seja numa infindável sequência de passos em falso, jamais se contentam com o que têm. Fobia pela mudança, ou apenas insatisfação que desafia o adormecimento intelectual.

Mas há os que, em multidão, são perseguidos pelo temor dos passos em falso. Perturba-os sentirem na carne as cicatrizes dos passos em falso. Não arriscam o passo, nem que ao cortejarem a passividade se mantenham aprisionados à aflitiva existência, aos horizontes encerrados num céu tão plúmbeo. Conservam o que conhecem, mesmo que o conhecido lhes traga melancolia. Na hora das decisões, quando os pés esperam pela ordem para o passo que tanto pode ser em falso como a terapêutica mudança, apodera-se o pânico pelo desconhecido. Preferem continuar entregues nos braços de uma venenosa existência que vai demorando os dias uns atrás dos outros, como se alguma vez voltassem a apreciar a cintilante luz que se esconde detrás das nuvens sombrias e isso viesse apenas por magia. Ao decidirem se avançam ou estancam o passo, olham de soslaio para o provir diferente. Os dias desiguais podem ser um retrocesso, o tal passo em falso que pincela uma angustiante tonalidade pardacenta nos dias que se queriam soalheiros.

Há um certo esplendor no hiato tão profundo quando do passo dado vem ao de cima o melhor dos mundos ou a queda nas trevas. Um passo singelo e, por ele, a diferença tão acentuada entre o ar refrescado ou a queda livre no precipício. Os temerosos sabem que há passos sem retrocesso. E redobram as hesitações. Sabem que a insensatez não é cativa de recuar passos em falso. Uma vez dados, os passos semeiam a necessidade dos efeitos, por mais pungentes que sejam. Uns, audazes, não renegam as dores dos passos que venham em falso. Aprendem com eles. Outros acovardam-se perante a hipótese de se doerem na queda estrepitosa depois do passo em falso.

4.7.07

Pedro Arroja e José Sócrates, irmãos de armas


Se eu fosse uma pessoa decente, ontem não teria passado dos 120 na viagem para Ponte de Lima. E, se decente fosse, teria anotado as matrículas de todos os que me tivessem ultrapassado, pois estariam em contravenção por excesso de velocidade. Depois, para coroar a minha excelsa decência, quando visse a primeira brigada de trânsito entregava o rol dos infractores. Assim seria um decente denunciante em homenagem ao respeito pelas regras instituídas. Se eu fosse decente, pelos padrões de Pedro Arroja.

Há meses, quando Arroja debitava doutrina diária sobre o que ele entende ser o liberalismo, ofertou um exemplo de responsabilidade individual que faz parte dos cânones do bom liberalismo. Puxou lustro à memória, aos anos em que esteve no Canadá, para contar uma história comovente. A sua família e a família de um amigo meteram-se ao caminho, estrada fora, num passeio de fim-de-semana. Lá no Canadá quase toda a gente cumpre escrupulosamente os limites de velocidade e demais regras do código da estrada. A certa altura, passou por eles, em louca correria, um automóvel. Oh, heresia máxima, pisando ao de leve um risco contínuo. Nem Arroja nem o amigo ficaram em risco com a manobra do cavaleiro do asfalto, a crer no relato do auto-expoente do liberalismo lusitano. Uns quilómetros mais à frente, o amigo parou num posto de polícia. Para espanto de Arroja, foi denunciar o apressado condutor. De regresso à estrada, uns quilómetros mais à frente, aquele que tinha atropelado vários preceitos do código da estrada estava detido por uma patrulha da polícia. O amigo de Arroja, e o próprio, sentiram-se recompensados com a delação.

Para Arroja, se todos encarássemos a sério a responsabilidade individual, era assim que nos devíamos comportar perante desvios dos outros. Todos seríamos vigilantes do comportamento alheio, todos seríamos cidadãos bem comportados. Não haveria desvios à lei. Presumo, nem necessidade de polícias e tribunais e, até, de governantes. O nirvana. Ou talvez não: ao espiolharmos a vida alheia, mais depressa nos demitiríamos da responsabilidade individual para sermos penhores da responsabilidade individual do outro.

O que me inquieta é que se aceite o princípio, passando uma esponja por tantos exemplos que, de usarem o princípio em apreço, encurtaram caminho para atropelos à liberdade individual. A lógica preconizada por Arroja é perigosa pela elevada probabilidade de abusos: seríamos educados a desconfiar, pois a qualquer momento uma pressurosa alma poderia denunciar algo de errado que estaríamos a fazer – ainda que isso não estivesse a acontecer. O problema é que a coberto da responsabilidade individual que arrepia caminho à delação institucionalizada, a perfídia humana alimenta a vingança soez. Quantas delações seriam falácias acobertadas pela vingança insidiosa?

Ainda se podia convocar Pedro Arroja para a relativização de conceitos na sua aplicação geográfica. Percebo que Arroja, do alto de um moralismo empedernido e objectivável, se incomode com a convocação do relativismo. Passo por cima de questões metodológicas e atalho ao que interessa: as idiossincrasias dos povos não impedem a aplicação universal de morais tão próximas do limiar da perfeição? A história recente nega a aplicação do princípio que Arroja pretendia importar do Canadá. Ou a memória é curta, ou a delação odiosa do Estado Novo não conta para nada. A bufaria sistemática enraizou-se de tal modo que se perpetua em plena democracia, prova de que ainda estamos em menoridade cívica. Arroja vive numa torre de marfim: o país em que ele vive não é o mesmo que o meu, ou temos lentes diferentes para depurar a mesma realidade.

Lembrei-me de convocar este exemplo de Pedro Arroja a propósito dos sucessivos atropelos que dedicados militantes anónimos socialistas têm cometido através de delações bem orquestradas. Os exemplos conhecem-se, uns atrás dos outros, naquilo que alguém já rotulou, com acerto, de “respeitinho”. Quem sai da linha põe-se a jeito de uma denúncia anónima às autoridades, para que a justiça seja aplicada, implacável. Desvaloriza-se a liberdade de expressão quando ela contraria o “respeitinho” devido a quem tem a incumbência de mandar. Temos por aí uma corte de militantes locais à espera da gratificação (subida na hierarquia) por mais uma delação. O “engenheiro” Sócrates dá o exemplo, ao apresentar queixa-crime contra quem, num blogue, denunciou as patranhas relacionadas com a sua mal amanhada licenciatura.

Lembrei-me de tudo isto e, de súbito, ocorreu-me que Pedro Arroja e José Sócrates devem nutrir uma admiração recíproca do tamanho do mundo. Talvez o “engenheiro” Sócrates se tenha inspirado na comovente história contada por Arroja. E hoje, perante o relambório de bufos tão vigilantes, Arroja aplaude vigorosamente. Estranhas alianças, entre o auto-ícone do liberalismo lusitano e o expoente da “esquerda moderna”. Com “liberais” desta igualha, o liberalismo nem precisa de inimigos.

3.7.07

E o piloto foi salvo pelo papa santificável

Fiel das corridas de Fórmula 1, já não me lembro de um acidente tão violento como o que as imagens documentam. O piloto acidentado, o polaco Robert Kubica, saiu ileso daquela amálgama. O piloto é de Cracóvia. O papa João Paulo II, na fila de espera para obter os paramentos de santo, também era de Cracóvia. Porventura por os polacos serem muito devotos, e porque Kubica decidiu homenagear o papa seu conterrâneo, o piloto habituou-se a correr com uma imagem de “sua santidade” no capacete.

Passaram algumas semanas desde o acidente. As semanas necessárias para o lobby católico regurgitar uma teoria espantosa: houve dedo do papa defunto, que, vigilante nos aposentos celestiais, foi o salvador de Kubica. Aliás, os empenhados movimentos que querem acelerar a santificação vão arrolar mais este exemplo de milagre para apressar o processo. Contra factos não há argumentos: perguntam-se os devotos, como foi possível a Kubica sair quase sem um beliscão do monolugar destruído? Só há uma explicação: milagre divino. A sorte do piloto foi ter nascido na mesma terra do papa que está a um passinho apenas de vestir o fardamento de santo. Fosse um dos outros vinte e um pilotos e as consequências teriam sido terríveis, pois mais nenhum nasceu em Cracóvia, o que imediatamente os exclui da protecção de João Paulo II.

O desconhecimento de causa impede o discernimento. Percebo que à cegueira da fé seja conveniente destapar o milagre como explicação do acidente de Kubica. Se tivessem o cuidado de se informarem acerca dos notáveis progressos de segurança da Fórmula 1 nos últimos anos, talvez arrefecessem os ímpetos da prestidigitação divina. Entre os especialistas do desporto é voz unânime que se este acidente tivesse acontecido há cinco anos, nem os melhores esforços de João Paulo II teriam valido a Kubica. Os engenheiros que projectam os monolugares e a federação internacional do desporto automóvel (FIA) têm contribuído para o aumento da segurança dos bólides. Têm estudado diversos mecanismos que reforçam as condições de segurança, aliás com efeitos que se notam, anos mais tarde, na indústria automóvel. A menos que as vozes que se persignam todos os dias assegurem que foi a inspiração divina que conduziu os engenheiros e os responsáveis da FIA a estes estudos.

Nisto da religião, para quem está de fora a assistir, há a crença e a crendice. O patético apelo do lobby católico, que juntou todas as peças do puzzle (piloto de Cracóvia; com imagem de João Paulo II no capacete; e papa que também nasceu em Cracóvia) para reforçar a convicção de que o papa defunto não dorme – antecipando assim a sua veste santificada – é uma exibição de fanatismo. Crendice e fanatismo a uma só voz. De tal forma que as palavras de Kubica foram distorcidas. Recusou-se a considerar que tinha sido protegido pelo dedo santificado do seu conterrâneo santificável. Disse-o de forma lapidar. Logo a seguir, li em diversos sítios que Kubica sugeriu que ter saído com vida do acidente só foi possível porque João Paulo II estava, lá em cima, a velar por ele. E de nada valeu Kubica ter explicado que no seu país, de regresso ao fanatismo religioso, se escrevam disparates com a intenção de reforçar as mordaças da igreja católica sobre os crentes. Nem assim cessaram notícias dando conta que Kubica tinha dito que foi ajudado pelo milagre feito por um papa já morto.

É em desespero de causa que fazemos e dizemos os maiores disparates. Ora a igreja está mergulhada numa crise profunda, com o recuo dos crentes e a crise de missões que afasta os jovens dos seminários onde se estuda para padre. Em desespero, os fanáticos descobrem as fontes de mistérios insondáveis, sempre explicáveis pela intervenção divina ou de um santo qualquer que não se cansa de ser generoso. Eu até acho que estão a cometer uma injustiça com João Paulo II. Extenuou-se enquanto papa. Viajou, viajou sem cessar, espalhando o sucedâneo da evangelização moderna pelos quatro cantos do mundo. Exangue, doente, despediu-se da vida. E quando se pensava que jazia no merecido descanso celestial, eis que os crentes continuam a exigir actividade frenética de “sua santidade”. Nem no remanso celestial merece descanso. E nem os fanáticos entregues à crendice percebem que estas exibições tornam a igreja risível.

Breve recapitulação, só para nos situarmos: Kubica foi salvo pelo dedo papal. Então João Paulo II estava distraído quando o piloto polaco se atravancou nas rodas do Toyota que seguia à sua frente, dando início ao tremendo acidente. Se João Paulo II fosse um zelador prestimoso de Kubica, não teria permitido a manobra que desencadeou o acidente. Ou então, já percebi, foi o papa santificável que empurrou Kubica contra a traseira do Toyota, só para poder tirar o piloto polaco com vida de um acidente tão assustador. É por isso que se costuma dizer que deus escreve direito por linhas tortas?