31.8.07

Não se brinca com a realeza espanhola (é favor entoar com um timbre jocoso)


O equivalente ao ministério público ajuizou, douto, que um cartoon parodiando as façanhas sexuais do pretendente ao trono e da sua consorte plebeia ofendeu a nação espanhola. Fixou um custo indemnizatório de 3.600 euros, o preço pelo topete.

O episódio encanta pelo humor ainda mais refinado que o do cartoonista da revista El Jueves. Só quem se leva muito a sério é que fica incomodado com um cartoon que só nas mentes mais pequeninas soa a ofensa. Mentes que cabem num escaninho, desvalidas, assombradas pelo pecado sempre de mão dada com o sexo. E então se for a parodiar o sexo que os futuros herdeiros da coroa espanhola praticam, mais lesivo dos bons costumes, exigindo-se a mão implacável da justiça. Se, pelo caminho, sobrar a coacção sobre a liberdade de expressão, uma irrelevância ao pé da intocável família real Bourbon.

O juiz espanhol, decerto carrancudo vinte e quatro horas por dia, e com um “sentido de Estado” aprumado, terá sentenciado: a liberdade de expressão tem limites, um dos quais é a impossibilidade de troçar dos símbolos nacionais. É o pressuposto que está errado. Os símbolos são coisas, não podem ser personificados. Que digam que a bandeira e o hino são símbolos que a “pátria” deve preservar, não contemplando ofensas dos destravados mentais que até com isso fazem pilhéria, ainda condescendo (não concordando com a ideia). Dizer-se que uma pessoa simboliza um país é abusivo. Para todas as pessoas convencidas que são simbolizadas pelo tal predestinado. E, há que convir, para o entronizado na condição de símbolo. Uma responsabilidade enorme para uma pessoa só. Nestes tempos de pós-modernidade, em que os padrões de igualdade se estendem até às anacrónicas monarquias, vendo-se gente das casas reais no melhor esforço para ter uma vida tão comum como a pessoa comum, é insólito insistir na ideia que um rei, ou alguém da casa real, é símbolo de um país.

A teimosia tem o seu preço. Uma indústria voyeur prospera, rondando todos os passos dados por membros das casas reais. Coitados, têm uma adolescência manietada. Não podem ir para os copos, ou, indo, estão confinados a um espartilho, meninos muito bem comportados senão um tablóide sensacionalista se apressará a contar, com a ponta de exagero que apimenta as vendas, as façanhas que seriam normalidade num adolescente anónimo. As namoradas são cirurgicamente controladas. E ainda que se comece a desvanecer o costume com laivos de Idade Média que obrigava a realeza europeia a casar entre si (numa relação que tinha algo de incestuoso), autorizando os pretendentes ao trono a petiscarem beldades plebeias, mesmo estas têm que passar pelo crivo apertado – da família real e da imprensa, que vasculham o passado da menina e sentenciam se ela é merecedora do aspirante a rei.

É nestas alturas que dou uma valor incomensurável ao anonimato. Quem não consegue tirar partido deste dom, como a realeza, submete-se a uma vida penosa, com os holofotes sempre voltados sobre si, todos os passos vigiados. Não acho que as regalias, as imensas regalias para as quais não consigo discernir justificação, compensam as provações que a realeza passa. Porque não têm privacidade e, prova-se agora, até a sua intimidade é vasculhada pelos profissionais do humor underground. O príncipe herdeiro oferece abundante matéria-prima para a verve jocosa dos humoristas ostracizados pelos meios oficiais. É um relambório de fantásticas capacidades. Duas licenciaturas com nota máxima, a academia militar onde se distinguiu entre os demais, a biografia oficial que mais se assemelha a uma hagiografia. Até os melhores esforços para cimentar o futuro da hispanidade monárquica deixam passar pela frincha o apatetado da operação cosmética. Ou o príncipe é um sobredotado (o que não condiz com a personalidade apagada), ou quem o avaliou ao longo da vida estava comprado pela necessidade de o classificar sempre com as notas mais elevadas. Não vejo grande diferença entre isto e aquelas “eleições” em ditaduras em que o ditador as ganha com 99,99% dos sufrágios.

Quanto ao resto, é normal que haja uma minoria que não se revê na santidade do herdeiro do trono, que duvida das suas capacidades esplendorosas, e se entretenha a fazer humor com a situação. É a realeza que, como diz o povo noutros casos, “se põe mesmo a jeito”. No cartoon, a expressão cai que nem uma luva. A princesa plebeia – tão adorada pelo povo – está de quatro, mesmo a jeito para a entrada triunfal do príncipe. Que, também aqui, terá dotes fantásticos, noutra exibição das suas qualidades sobre-humanas. A poeira haveria de assentar se a revista que publicou o cartoon não tivesse sido apressadamente apreendida. E se não houvesse um diligente juiz que viesse recuperar o assunto, com a inculpação da revista e a condenação do humor.

É perante estes próceres, que agrilhoam a liberdade de expressão quando ela fere a dignidade da realeza, que mais apetece troçar da realeza. Sem o perceberem, são eles que alimentam um prolífico humor que vulgariza a realeza.

30.8.07

Thin White Rope, "Red Sun"

Para o texto abaixo.

Da música intemporal

Há um beco sem saída quando rejeito olhar por trás do ombro, aquilatando a saudade do passado, e apetece escutar música de antanho. O paradoxo surge em toda a sua latência porque os sons resguardados da poeira do tempo trazem recordações desse tempo, agradáveis ou amargas. Ainda que não seja a intenção, ouvir a música que foi referência há mais de quinze anos é um mergulho nas raízes do ser. Não digo que haja lugar a renegar o passado que foi vivido. Ele está emoldurado, e só pérfidas manobras estalinistas de apagamento do passado é que poderiam contrariar o iniludível.

Isto a propósito da convicção enraizada de que a música é intemporal. Será, quando a música é um produto, um legado do artista, sem ancoragens individuais que a perfumam com lugares, pessoas, factos que adicionam a essa música em particular significados que ultrapassam a vontade do criador. É nessa altura que a música se aproxima tanto de uma tela, da subjectividade que se abre à sua interpretação. Dos variados significados que contempla, abrindo múltiplas janelas de par em par. Só que nesse momento, quando a música bebe a sua influência intersubjectiva, perde o rasto da intemporalidade. Fica agarrada a uma marca do tempo. Os assomos de subjectividade, conforme as representações que a música traz para cada pessoa, são o cimento de uma datação inultrapassável.

E, no entanto, os paradoxos continuam a surgir de frente, sem saber o que fazer para me desembaraçar deles. Em deambulações sonoras, retomei uma música de que escassamente me lembrava: “Red Sun”, dos Thin White Rope. Localizo-a no tempo: 1990; e procuro um referencial: o penúltimo ano da licenciatura. Os saudosos tempos do programa “Som da frente”, na Rádio Comercial, noite dentro (entre a uma e as três). Uma sede enorme de beber as novidades do circuito musical alternativo, que António Sérgio divulgava.

(Sinal dos tempos, António Sérgio é hoje a voz off da SIC, anunciando os dramas, paixonetas e traições de mais uma telenovela brasileira. Não sei se é crença minha, ou apenas recusa em admitir a realidade pungente, mas sempre que o ouço nestes anúncios que intervalam um filme noto uma ponta de doce ironia na voz poderosa de António Sérgio. Que decerto as senhoras ávidas pelo produto não chegam a perceber.)

Revisito a música dos Thin White Rope. Num esforço simultâneo por reprimir as divagações do passado que tentam irromper a cada acorde. É uma tentativa para habilitar a ideia de que a música é intemporal, objectiva, desprendida das paisagens individuais dos ouvidos que a escutam. Concentro-me na guitarra poderosa, no som rouco que cavalga quase dois minutos num exercício instrumental que anuncia a voz que a todo o momento há-de chegar. Tento reter as palavras entoadas pela voz cavernosa, que depois se cala para ceder lugar ao protagonismo da guitarra escorreita que cilindra a paisagem sonora. E se me recuso a caucionar a ideia de que a música de agora se banalizou, falha de criatividade, pleiteando pela tese de que na década de noventa do século passado é que fervilhava a verve musical, ouço esta música e sou tomado não pela nostalgia desses tempos, mas pela noção de que havia grandes músicas que agora soam ainda mais monumentais.

E para que não haja sensação de saudosismo inconsequente, como se os tempos que correm não fossem também eles fervilhantes em projectos musicais que exalam criatividade, o mergulho na música intemporal deixa surpresas de sinal contrário. Quantas vezes, a revisitação de certas músicas que foram excitantes no seu tempo semeia a perplexidade, deixando a pergunta “como foi possível gostar disto”? Outra vez a subjectividade em todo o seu esplendor. A negação da intemporalidade subjectiva. Músicas que outrora habitaram no altar das preferências e que agora não passariam pelo crivo. Umas vezes pela sonoridade que agride, dando conta do sentido auditivo que evoluiu com o tempo, gostos pessoais revelando diferentes sensibilidades que entronizam novos sons e renegam sons que no passado serviam como matéria-prima de deleites.

Na mesma deambulação que me levou ao encontro de Thin White Rope, cheguei a “Good morning beautiful”, um tema dos The The, já na fase descendente. Umas estrofes desfiguram a música: “I know that God lives in everybody souls/and the only devil in your world lives in the human heart”. E sei que na altura havia identificação com a rebeldia das ideias que era sinónimo de identificação com uma juventude inquietada. Hoje, aquelas palavras soam a vacuidade, a um pregão tonto que me faz lembrar, e muito, o beato revolucionário que lidera o Bloco de Esquerda. Das palavras que fazem barulho, estridentes, mas que dizem nada.

29.8.07

Confissões de um governante (socialista)


(Pura ficção)

Acordo todos os dias e as palavras que acompanham o bom dia que me dou são “és secretário de Estado!”. Enquanto saio da cama e vou, ainda estremunhado, para a casa de banho, essas palavras fixam-se no horizonte mental. É o melhor despertar que posso ter, o lenitivo máximo para sacudir a letargia nocturna que teima num prolongamento matinal. A entrada na casa de banho é o seguinte momento de auto-comprazimento. É quando me olho no espelho e noto um orgulho formidável por ter chegado ao pináculo do poder. Como sou importante!

E, contudo, ser secretário de Estado é uma canseira. Muitas as preocupações, muita a obra para fazer nesta terra sempre inacabada. Muitos os remendos para compensar asneira dos meus antecessores, que, seria escusado dizê-lo, não chegam aos calcanhares da minha competência. É uma tarefa ingrata ser governante: há os que querem manter low profile e ninguém os conhece. Só vêm para a praça pública quando, por uma vez que seja, escorregam para a asneira ou distraidamente proferem uma frase assassina. Mas há os outros, os que nutrem uma simpatia excelsa pelo seu ego, aqueles que têm sede de protagonismo. Andam nas bocas do mundo e expõem-se a crítica amiúde. O preço necessário do mediatismo.

Sei do que falo: subi a pulso até ao estrelato. Não posso desperdiçar a oportunidade da ostentação do poder, de saber que existe uma corte que se desdobra em genuflexões à minha passagem. Adoro andar em locais públicos e sentir os olhares que se dirigem sobre mim, as pessoas sussurrando entre si “olha o senhor secretário de Estado”. Tudo isso compensa a canseira de governar, o trabalho hercúleo de tomar decisões, suportar reuniões infindáveis onde os assessores tentam brilhar, numa tentativa ingrata de me roubarem protagonismo. Cansa-me a leitura dos dossiers, a linguagem técnica embrulhada no português tecnocrático que resulta num linguajar hermético. Só leio os dossiers na diagonal. Entrego-os aos assessores para a primeira triagem. Cabe-lhes sublinhar as partes mais importantes. Depois resta-me ler os sombreados a verde alface.

Está na ordem hierárquica: os superiores não podem esgotar o seu tempo com as minudências. Essas são reservadas ao pessoal subalterno. São os operários que desbravam o caminho para a decisão final. É aí que todos esperam a minha sábia intervenção. Destaco-me também no agendamento de tarefas, na descoberta de mais um ínfimo detalhe que merece a atenção do governo. Na esteira do ambiente de claustrofobia benfazeja espalhada pelo timoneiro messiânico que é sua excelência o senhor primeiro-ministro, temos a incumbência de inventar soluções para todos os problemas sentidos pela sociedade. Nunca dormimos sobre os problemas da sociedade.

Somos os engenheiros sociais com suprema inteligência. Nas nossas mãos, uma varinha mágica que asperge milagrosas soluções para espinhosos problemas. Perante o nosso brilhantismo, não há tarefas vultuosas que desencorajem a acção. E se acaso somos pródigos em soluções rápidas, de tal forma que as soluções se antecipam aos problemas, temos a sagacidade de inventar problemas só para não perder a mão à acção governativa. Não consigo perceber como há sectores que nos perseguem com a crítica. Revelam ignorância, incapazes que são de aplaudir as soluções impregnadas de competência que desinteressadamente oferecemos à população. Às vezes sou levado pela tentação da intolerância: os críticos deviam ser calados, pela ingratidão que destilam na crítica fácil.

São cinco anos de fama. O povo comum contenta-se com cinco minutos de fama, quando um dia uma câmara da televisão aparece, inopinadamente, voltada para si. Eu tenho direito a cinco anos de fama, convicto que o senhor primeiro-ministro não vai fazer remodelação intercalar do ministério. São cinco anos que passam a voar. Tenho que aproveitar a sinecura, que o tempo, sempre efémero, vem a velocidade vertiginosa quando o poder se detém entre as mãos. E como é bom sentir o poder entre as mãos! Como as pessoas me dedicam tratos de polé. Embeveço-me quando escuto os subalternos, com o respeito que é devido, dizerem “senhor secretário de Estado”. Os autarcas vêm comer à minha mão. Os empresários marcam reuniões e procuram-me seduzir, multiplicando-se em elogios que afagam o ego enquanto estendem a mão em demanda da minha decisão de que depende a atribuição de mais um subsídio. A comunicação social faz fila à espera das minhas doutas declarações.

Pagam-me lautas refeições em restaurantes que nunca ousei frequentar. Vou ao alfaiate e abasteço-me de fatos caros sem jamais desembolsar um euro. Recebo convites para a tribuna de honra do estádio do maior clube do mundo. Tenho uma vida social intensa, pois o frenesim da governação reserva um quinhão de tempo para a excitação do ego social. E até já consigo aparecer nas páginas das revistas cor-de-rosa e ser recebido de braços abertos pela tão reservada nata social. É tão bom ser secretário de Estado. Agora todos me conhecem, quando antes o meu nome só era conhecido pelo meu ego. Será uma tremenda injustiça se o povo não reeleger o partido socialista. E a injustiça será maior se o senhor primeiro-ministro não me promover a ministro.

28.8.07

Um anúncio repelente


Ou porque se somam razões para não ser, nunca ter sido, cliente da TMN. Não será porque a TMN é detida pela Portugal Telecom (PT), que ainda mal se habituou ao incómodo da concorrência quando houve governantes que tiveram a sensatez de terminar com o vetusto monopólio. Perdeu o privilégio, mas teima em manter os vícios de monopolista. Dor de parto de quem estava habituado a ter o mercado só para si e agora é obrigado a suportar incomodativa concorrência. Para mal da PT, a bem dos consumidores.

Já isso bastava – e mais o proteccionismo mal disfarçado que os socialistas de pacotilha continuam a dar a esta empresa meia pública, meia privada que é catalogada como “referência nacional”. Estes híbridos que se tentam moldar à economia de mercado, depois de perdidas as regalias do monopólio enquanto foram empresas públicas, fazem-me lembrar os comunistas reciclados à esquerda moderada. Os vícios estão lá todos, impregnados, inamovíveis. Por mais que tentem sacudir a poeira do passado de que hoje se envergonham, a genética não engana. Dão o seu melhor para passar a imagem de alguém que se moldou ao jogo democrático, mas à primeira oportunidade descai o chinelo para a intolerância genética que neles habita. Tal como sucede com estas empresas híbridas, que perderam as regalias do monopólio, participam num mercado aberto à concorrência, mas nelas perduram os tiques de quem não sabe o que é conviver em concorrência.

Tudo isto era suficiente para não engrossar a listagem dos cidadãos que, patrioticamente, são clientes da TMN, ou de qualquer outra empresa que pertença ao universo PT. Há dias coligi outra razão para me colocar nos antípodas da PT. Um anúncio da TMN, cheio de “gente bonita” (já lá irei ao assunto, que dá pano para mangas), numa ilha paradisíaca, corpos bronzeados, gente jovem entregue à algazarra própria de quem, sendo tão jovem e cheio de vitalidade, destila energia por todos os poros. No final, como sucede em todos os anúncios da campanha publicitária de Verão da TMN, alguém aparece a dizer “até já”. Desta vez calhou em sorte a uma esbelta menina trajando o minimalista biquíni, com um olhar penetrante e um sorriso enigmático, sussurrando o costumeiro “até já” enquanto ostenta aos ombros uma enorme jibóia.

Como a publicidade é uma arte bem cuidada pelos profissionais do ramo, que não descuram o mínimo pormenor para que a mensagem atinja o público-alvo, seduzindo-o ao ponto de fidelizar clientela habitual ou atrair novos clientes, a utilização da jibóia em associação com a beldade pós-juvenil terá decerto um significado. No que me diz respeito, que tenho aversão a tudo o que seja réptil, teria o condão de me afugentar da TMN. Será reacção pessoal, pela repugnância que os répteis me provocam, alimentada por pesadelos povoados por serpentes e crocodilos quando era mais novo. Saindo da esfera pessoal, tento perceber o que pode atrair o público no binómio corpo feminino escorreito-jibóia.

Não se pode dizer que jibóias daquele tamanho sejam animais amigáveis como um cão ou um gato. Se provocadas, são mortíferas. A imagem que me é transmitida ao ver a coragem da menina que enverga a jibóia ao pescoço como se fosse um colar é a de um animal que a podia sufocar até à morte. Ora se o anúncio, como tantos outros, usa o corpo feminino como chamariz para o produto publicitado, faz pouco sentido a parceria com um animal que pode estrefegar um corpo tão esbelto. A perda para a humanidade não justifica o risco de colocar ao pescoço da beldade um bicho tão asqueroso. O que faz disto uma publicidade repelente. Pode haver uma mensagem subliminar, contudo: a jibóia é a TMN pronta a asfixiar os seus clientes. Afinal, esta é uma publicidade autofágica.

Ao menos o anúncio e a campanha de Verão da TMN têm um mérito no meio da falácia que é munir-se apenas da chamada “gente bonita” que vem das passerelles. Um embuste, isto de só abrir as portas destes anúncios a pessoas que são mostruários de beleza. No fundo, a antítese do mundo real, enxameado de feiura. A virtude está em obrigar os modelos que fazem uma incursão na publicidade a perderem o teimoso ar sisudo com que desfilam nas passerelles. Afinal a “gente bonita” que habita o casulo da moda também se sabe rir. Mesmo quando no guião do anúncio alguém se lembrou de colocar ao pescoço da apetitosa menina uma assustadora jibóia.

27.8.07

Muito se aprende no estádio do “dragão”


Não sei por que motivos insondáveis vou a um estádio de futebol ver um jogo do meu clube. Aliás, tirando a herança familiar, ainda hoje não consigo explicar porque sou do Sporting. E mesmo se sou um adepto lúcido, incapaz de ferver durante um jogo, é ao ver o fanatismo, a cegueira dos adeptos sempre descontentes com o árbitro, dos adeptos que batem recordes mundiais de visão à distância, tamanha a sagacidade para discernir pormenores do lado contrário do campo, das claques bestializadas que se dedicam a rituais primários por entrega ao clube que “amam” mais que os entes queridos – por tudo isto, sinto a vontade de afogar a pertença clubista. Como me é superior, vou perdendo a paciência com os jogos da minha equipa.

Ontem lá fui para o meio da turba fanática da agremiação regional da cidade que me viu nascer. Bem no meio dos sócios, daqueles que compram cadeirinha para o ano inteiro. Das poucas vezes que na vida senti o complexo de insularidade. Não vou falar de futebol, do jogo. Deixo a tarefa para os catedráticos da bola que fazem do jogo uma ciência passível de elaborados registos académicos. Porém, antes de ir ao que me interessa, lavro daqui a profunda azia do derrotado. Não custa perder quando é merecida a derrota. Dói muito quando ela é imerecida e nasceu de um erro infantil do guarda-redes da minha equipa. E antes que escorram acusações de incomodidade pela derrota, cá está a confissão em todas as letras: é de azia que se trata.

Concedo: esse estado de espírito entrega-me nos braços do mau humor e influencia o que se segue. É que naquele estádio se aprende muita coisa. Os minutos de espera pelo jogo são um exercício deveras educativo. De tudo o que observei há matéria-prima para um arremedo de análise sociológica. Não do comportamento das massas, ou do entretenimento barulhento que, dizem, faz moda, um espectáculo dentro do espectáculo que não acho atraente. Todos os rituais a que turba se entrega – as coreografias ensaiadas, mote dado pelo frenético speaker, os cânticos das claques que se contagiam aos demais, os assobios impiedosos ao adversário e os nomes feios com que alguns são mimoseados – têm tanto de religioso como de primário.

A horda fica extasiada com os sinais que cimentam a fidelidade canina ao clube que “amam” (como se fosse concebível amar uma coisa – que um clube é uma coisa, por mais que se esbocem lucubrações provando o contrário). Entre os muitos rituais de que fui testemunha, eis o zénite: tudo muito bem treinado, momentos antes do começo do jogo. Uma claque da agremiação regional descerrou um cartaz gigantesco, que se estendia do tecto do estádio até ao relvado. Lá estava o mítico dragão, o inexistente animal que simboliza o clube regional, e as palavras “orgulho em ser tripeiro”. Foi nessa altura que me senti reconfortado, e orgulhoso, em ter nascido portuense – portuense, e não “tripeiro”. À medida que o público se arrepiava com o “orgulho em ser tripeiro”, o speaker entusiasmava as massas, convocava o brio que os adeptos do dito clube sentem por o serem, culminando a vozearia com esta pérola de intensidade metafísica: “aqui está um espectáculo tipicamente tripeiro” enquanto soavam, estridentes, acordes de uma música xaroposa dos Scorpions (“the final countdown”, se o título coincidia com o refrão). Aprendi: que os Scorpions e uma música cantada em inglês, em registo de heavy metal sinfónico, são o protótipo de um “espectáculo tipicamente tripeiro”.

O outro episódio com muita pedagogia passou-se com a inusitada chegada de oito meninas vistosas, brasileiras, mas vistosas pelos dotes físicos e por aquele maneirismo próprio de quem se dedica à profissão mais velha do mundo. Ao meu lado alguém disse, em tom simultaneamente jocoso e orgulhoso, “olha as amigas do Pinto da Costa”. Foi então que percebi tudo. As vistosas meninas, que concentraram as atenções dos olhares ávidos em redor, com as formas esculturais e os umbigos à mostra à mistura com decotes provocadores, carregavam consigo uma enorme carga simbólica. Os investigadores do “Apito Dourado” têm que frequentar o estádio do “dragão”: há ali sinais reveladores da trama. É que algumas das meninas da noite traziam cartões de sócio, daqueles que dão direito a lugar fixo para todos os jogos.

Como não se imagina que elas tenham nascido adeptas do clube regional, e por mais que seja o esforço imaginativo, é pouco crível que sejam de alma e coração “tripeiras”, a posse dos ditos cartões diz muito. Como há gestores de empresas que têm direito a cartão de crédito da empresa, as meninas que, de acordo com o processo “Apito Dourado”, são a sobremesa a que árbitros comprados estão habituados, têm direito a um “fringe benefit”: um cartão anual no estádio do “dragão”. E sempre tem a vantagem de conhecerem os homens do apito com quem vão privar de seguida.


24.8.07

Pancadaria no parlamento


Não há ano que passe sem um punhado de notícias que dão conta de episódios de violência em parlamentos. Ontem foram imagens de pancadaria no parlamento da Bolívia. Se fosse para serem levadas a sério, dir-se-ia que são imagens de uma tragicomédia lamentável. Dir-se-ia que os senhores deputados, sejam ou não os seus países ditos “civilizados”, deviam dar o exemplo de urbanidade, deviam ser os primeiros a repudiar a violência. E, repudiando-a nos discursos, seria impensável que se abraçassem uns aos outros sem que o fizessem como prova de afecto.

Insisto: nem os parlamentos devem ser levados a sério, para que os seus actores não reclamem para si um estatuto de inimputabilidade. É por isso que adoro ver imagens de parlamentos de países exóticos com uma revoada de pancadaria a correr vários deputados. Convém dizer que detesto a violência, qualquer que seja a sua manifestação – desde a violência gratuita dos que só sabem falar através dos punhos cerrados, passando pela violência verbal e psicológica que sitia as suas vítimas, até à violência das autoridades que não sabem exercer o poder, abusando dele, sem esquecer a violência de grupelhos folclóricos que a acham indispensável para ser reposto o que consideram ser justo. Mas fico deliciado ao ver as cenas de pugilato e pontapé em jeito de carateca versado que vêm de parlamentos de sítios distantes e pouco conhecidos – sim, que os senhores deputados dos ditos “países civilizados” seriam incapazes de se enlamear em exibições de putrefacta violência.

Acho estranho que as pessoas estranhem quando passam no ecrã imagens de deputados a levantar o braço e a desferir um soco em adversários. Estranho a estranheza, porque os deputados são, como todos nós, comuns mortais. São feitos da mesma carne, é o mesmo sangue que lhes corre nas veias. Que se saiba, não há um grupo sanguíneo exclusivo dos parlamentares. Chegados a este ponto, convém recordar o que vem nas enciclopédias e nos manuais para descrever o regime político dos países com parlamentos: democracias parlamentares representativas. Os deputados são representantes dos eleitores. E como dignos representantes, o que se espera é que sejam émulos dos representados. Se forem feitos de uma massa diferente do povo que os elege, perde-se o rasto à representatividade. O que está errado é colocar os deputados num pedestal, como se o facto de representarem os eleitores os eleve a uma condição sobre-humana. Afinal, uma das falácias herdadas da revolução francesa, e cultivada com insistência pelas teimosas esquerdas, é a igualdade. Se representados e representantes são iguais, porque hão-de deputados ao soco e pontapé ser indignos da instituição parlamentar?

Todos os dias a violência é uma excrescência que vai sendo exalada, escorreita, da espécie humana. Há violência na delinquência dos furtos, na violência conjugal, na destemperada forma de ser de adolescentes inconsequentes, nos trágicos homicídios que não cessam de acontecer. Há a violência estúpida do desporto, quando o desporto perdeu identidade com os ideais olímpicos e cega fanatismos. Como indigna é a violência cometida em nome das religiões, negando o papel apaziguador que o putativo deus semeou no Homem. A violência goteja a meio de uma discussão de ideias quando alguém perde argumentos e resolve a contenda com a força dos braços. Olhamos para todo o lado e estamos cercados por manifestações infindáveis e repetitivas de violência. Nos locais menos esperados, nas circunstâncias mais surpreendentes. Num semáforo, entre dois condutores de automóveis que prolongam uma discussão empregando a força dos punhos.

É de estranhar que toda esta violência se contagie a deputados? Continuo a supor que os deputados não são extraterrestres, que são feitos da mesma têmpera dos eleitores. Se somos todos da mesma massa, não há indignidade que os parlamentos sejam palco de estalada, soco e pontapé, com algumas deputadas fazendo jus à tradição das mulheres que se engalfinham puxando vigorosamente os cabelos umas às outras. Episodicamente, os parlamentos são arenas de wrestling, para gáudio de uma audiência que exulta por ser espectadora dos dotes de lutador de deputados com o sangue na guelra.

É nestes momentos que o povo se convence que a democracia só tem méritos: nem é tanto a possibilidade de escolherem através do voto; é mais por saberem que os que escolhem e pousam os ossos ilíacos nos confortáveis assentos do parlamento não são assim tão diferentes do povo anónimo.

23.8.07

Generosidade, da genuína


Os administradores do Hospital de Matosinhos abdicaram dos automóveis de serviço e canalizaram a verba para aquisição de material de tecnologia de ponta para neurocirurgia. 175.000 euros deixaram de estar ao serviço dos gestores, sendo usados em benefício da comunidade. Quando escutei a notícia fui sobressaltado por uma intermitência no pessimismo antropológico que me domina. Afinal há generosidade, daquela que é genuína, sem segundos sentidos ou sem estar associada a outros fins não confessados.

Um dos administradores foi entrevistado. Ele e os colegas da administração do hospital deram conta da impossibilidade de adquirir o tal equipamento que era importante para a unidade de neurocirurgia. Avaliaram custos e tentaram perceber se havia alternativas para obter os fundos necessários. E, disse mais, como todos eles tinham automóveis próprios, que estavam habituados a conduzir antes de terem sido nomeados para a administração do hospital, podiam dispensar a benesse que o orçamento de Estado generosamente punha à sua disposição. Em vez de estacionarem os seus automóveis na garagem, fazendo-se deslocar em carros do Estado, tudo continuou como dantes. O dinheiro que teria sido gasto em carrões teve destino mais útil.

Não retive o nome do administrador. Não era decerto figura com aspirações políticas, como tantos há que se encavalitam na administração de hospitais como etapa intermédia da ascensão na carreira política. Não consta que aquele senhor frequente sedes partidárias. Isto serve para enquadrar o acto de generosidade. Não era um gestor público profissional, daqueles que militam em partidos do centrão ou que gravitam nas suas adjacências. Um acto demonstrando semelhante nobreza de carácter não é compatível com a categoria de gestor público profissional, que vai rodando de empresa pública para serviço público, normalmente com resultados financeiros catastróficos. Não digo que a utilização do automóvel de serviço, prevista por lei, fosse um acto de indignidade. Seria o usufruto de um direito, sem que houvesse lugar a acusações aos gestores que assim procedessem. No fundo, é um direito que representa uma parcela da retribuição pelos serviços prestados pelos gestores públicos. O que se pode questionar é a farta generosidade da lei que distribuiu essas regalias.

Tudo isto serve para enaltecer ainda mais o acto dos administradores do hospital de Matosinhos. Cada gestor abdicou da sua parte no bolo automóvel que o tão generoso Estado lhes oferecia. De acordo com a notícia, seriam 175.000 euros a dividir pelos cinco gestores. Cada um actuou como benemérito em 35.000 euros. Convém reter de novo a ideia essencial, para se perceber o alcance do acto de altruísmo: cada gestor teria direito a embolsar o equivalente a 35.000 euros, através da utilização do veículo de serviço, como parte da contrapartida devida por terem sido nomeados para aquele cargo.

A excepção merece aplauso. Quantos gestores públicos não terão ficado de orelhas a arder ao tomarem conhecimento do desprendimento material dos administradores do hospital de Matosinhos – é a pergunta a que gostaria de obter resposta. Adivinho: larga maioria terá manifestado incómodo, sabendo que o povo atento desejará escrutiná-los, interrogando-os se também não podem prescindir dos automóveis a que têm direito, oferecendo a verba a algo que seja útil ao serviço que comandam. Ou a larga maioria de gestores públicos terá feito de conta que não tomou conhecimento da notícia, varrendo a história para debaixo do tapete, para o sarcófago das irrelevâncias. Em privado, se apanharem a jeito os colegas do hospital de Matosinhos, hão-de encostá-los à parede. Sobre eles há-de pesar a acusação de falta de solidariedade corporativa: um gestor público é treinado para exaurir recursos ao erário público, jamais para exercitar altruísmo em favor do público anónimo.

Só levanto um porém nesta história: o ter sido noticiada. A generosidade faz-se sem buscar os holofotes do mediatismo, nem com o intuito de ser publicamente reconhecido. Quando um benfeitor se põe em bicos dos pés em demanda de reconhecimento – dos que são beneficiados pelo altruísmo e por todos os demais, sempre dispostos ao aplauso de quem ajuda o próximo – desconfio da genuinidade do altruísmo. No caso do hospital de Matosinhos, dou de barato a excepção à regra: no vasto oceano de maus exemplos entre gestores públicos, a oferta dos administradores é uma lança no marasmo, um exemplo.

Entre o negrume que empesta a espécie humana, ainda há uns luminosos raios que semeiam alguma esperança. Pena é que sejam pontuais excepções.

22.8.07

Modas gastronómicas: as ementas com jactância


Como barómetro da importância da gastronomia, também há modas que se sucedem no tempo pela persuasão de chefes de cozinha, os que vingam no protagonismo. O corpo tem necessidades orgânicas que empossam a culinária num lugar de destaque. Haverá quem coma apenas para sobreviver, sem atribuir importância à gastronomia. Muitos mais serão os que aproveitam o acto de ingerir comida para salientar os aromas e sabores. São os que festejam a gastronomia, dela fazem um festim. É então que a culinária entra em cena para agradar os sentidos que o organismo humano acentua. Não é só instinto de sobrevivência: muito além disso, é entronizar os paladares. Mais hedonismo.

A gastronomia fina destaca-se por alguns modismos desconhecidos à cozinha vulgar. Não se encontram nos restaurantes corriqueiros cuidados de apresentação como na gastronomia de vanguarda. O empratamento é uma arte. Nunca como agora fez sentido afirmar que os olhos também comem. Os cuidados de apresentação dos pratos são uma arte à parte na gastronomia vanguardista. Os cozinheiros não se limitam a combinar ingredientes e sabores. Não cuidam apenas de confeccionar os pratos na medida certa, sem que os ingredientes percam características por levarem calor a mais. São artistas plásticos que compõem uma paleta de cores quando finalizam o cozinhado com o empratamento que o embeleza. Dominam várias artes: mestres na confecção dos alimentos, pintores (pelas cores que combinam no empratamento) e arquitectos (pois um prato tem que ser sabiamente composto).

Há nisto um simbolismo: quando o chefe faz o empratamento, é ele que decide quanto vão os comensais ingerir. Não é como nos restaurantes tradicionais, onde o cozinhado chega à mesa numa travessa e cada comensal se serve na quantidade e nas vezes que o saciar. Na gastronomia fina, quem se amesendar come o que o chefe decidir. Numa leitura filosófica da nova gastronomia, diria que não se compadece com a liberdade individual. Os liberais serão insurgentes contra esta gastronomia, porque a liberdade de escolha fica-se pelo momento da leitura da ementa.

Haverá leitura contrária, decerto: em vez dos restaurantes tradicionais, que enfartam alarves e dão um contributo inestimável para colesteróis e hipertensões dos amesendados que não conseguem ter tento na gula, agora há restaurantes que educam na moderação alimentar. É a sua ajuda para uma dieta mais acertada nas quantidades ingeridas. Ajudam o coração e aligeiram-nos de adiposidades. E a carteira também, que estes restaurantes são dispendiosos. Sobretudo para os que olham para a relação quantidade-preço.

Outro traço típico desta gastronomia é a transformação das ementas em momentos de fino recorte literário. Elas são palavrosas, calhamaços que têm o condão de cansar a vista aos comensais e de lhes instalar a dúvida na escolha do prato degustado. Já não trazem os nomes dos pratos. Agora as iguarias são fartamente descritivas. Ao menos a moda dos detalhes narrativos das ementas tem uma virtude: dispensa as perguntas ao empregado de mesa quando não sabemos o que consta do equívoco nome de um prato. Os empregados de mesa deixam de ser cicerones pela cozinha.

Por exemplo, o meu almoço de hoje já não aparece plasmado na ementa com um espartano “bacalhau à Braz”. Se é que este prato é oferecido num restaurante de gastronomia vanguardista (o que duvido, a menos que o seja numa recriação inventiva), seria inscrito na ementa desta forma: “bacalhau desfiado emulsionado em azeite perfumado em alho grosseiramente esmagado, cubos de bacon, pimenta preta moída na altura, folha de louro e posteriormente acamado em batata frita palha com um acabamento de ovo que se talha em lume brando, pincelado com coentros frescos”.

Como os tempos vindouros são sarcófagos dos modismos vigentes, no futuro haverá lugar a outros modismos gastronómicos. Não falo da emergente gastronomia molecular, que está muito além do que é hoje vanguardista, com as suas criações que tratam a culinária como domínio da ciência, com ajuda da química e de muito azoto líquido. Voltando às ementas, adivinho que no futuro vão ser ainda mais exaustivas. Ao ponto de cada prato caber numa página, com descrição detalhada de todos os passos na sua confecção, de todos os ingredientes e respectivas quantidades, do tempo de confecção e da elucidação de possíveis truques para a iguaria ser um triunfante pedestal da gastronomia. Será a total democratização da culinária. Até para satisfazer a febril protecção dos consumidores que exige total transparência na informação.

Todos seríamos, então, gourmets e chefes de cozinha em potência.

21.8.07

On the hype (10) - Micro Audio Waves, Down by Flow

Chamem-me reaccionário, que não me importo


Estou embevecido com certas reacções depois da trágica bebedeira de violência dos querubins da moral ecológica que generosamente vieram do céu para nos salvarem. O Bloco de Esquerda meteu férias, calado que permanece. Só fala Miguel Portas. E de cada vez que fala ou escreve, desdobrando-se em justificações, o mais que consegue é afundar-se no ridículo. Ele assegura que estas acções dos activistas (que não são vândalos, por conseguinte) são necessárias, trazem para a praça pública assuntos que de outro modo ficariam remetidos ao obscuro silêncio. Agora juntou mais um ingrediente: a famosa teoria da conspiração, pois os transgénicos são outra façanha do inominável capitalismo (as multinacionais, ai as multinacionais, diabos em potência).

Ainda bem que temos direito a estes salvadores da humanidade. Seríamos uma horda acrítica, comendo e calando os desmandos da coligação neoliberal que irmana governos e interesses das multinacionais. Supõe-se – apenas se supõe pela ausência de provas concludentes – que os primeiros estão comprados e são servis capatazes que modelam políticas ao sabor das conveniências das segundas. A salvação da humanidade está prometida para breve, por mais que os tentáculos das multinacionais se estendam por todo o lado.

Umas trupes de jovens que vivem em perfeito comunitarismo, despojadas dos interesses materiais, são o exército de salvação. Contra os tentaculares interesses do capitalismo neoliberal, que asfixiam e asfixiam os povos, iludem-nos com a drageia adocicada do consumismo e do crédito que os endivida até ao tutano, o exército de salvação espalha a boa nova pelos quatro cantos do mundo. Persegue as reuniões das organizações internacionais onde se acoitam os malévolos interesses do neoliberalismo, usando a destruição como contrapeso. Os fracos usam as armas que têm à mão. Contra o poder tenebroso dos poderosos, a violência é consentida. Em pequena escala, dão-se a conhecer com acções que “ceifam” milho transgénico porque são contra os transgénicos, outra maquinação das multinacionais.

Note-se: “ceifam” milho, como se fossem as debulhadoras que colhem o milho; mas o que fizeram foi destruir o milho, inutilizando-o. Uma diferença que não é um detalhe. Um eufemismo para dar cobertura a uma acção violenta que convenientemente vem mascarada com uma capa qualquer que não a da violência. Pessoalmente, até me agradam estas manifestações eivadas de folclore: desnudam o jaez desta gentalha. Aguardam-se os efeitos secundários: saber se as elites citadinas, aburguesadas e intelectuais, enamoradas pela esquerda caviar, sancionam a bestialidade e concordam com as cambalhotas argumentativas do guru Portas.

Se há noção que emerge do episódio, como ontem sublinhava, é a vitória da indomável lógica dos fins que justificam os meios. Esta acção do que parece um grupo fantasma (“Verde Eufémia”) leva a tecer uma ponte com a greve do fim-de-semana marcada pelo sindicato do pessoal de handling que opera nos aeroportos. Não foi coincidência o agendamento da greve para o fim-de-semana com mais movimento de voos e passageiros. Vem nos manuais da prática sindical: uma greve só tem o efeito pretendido se afectar o maior número possível de pessoas. Ainda que as pessoas afectadas sejam vítimas colaterais, apanhadas no meio de um fogo que não lhes diz respeito. Se há conflito é entre o sindicato e uma empresa, sendo pouco lógico atirar as culpas para os utentes dos serviços afectados com a paralisação. Não sei se a isto se pode chamar boicote do funcionamento da sociedade.

Esta é uma das matérias que foi entronizada no reino dos “direitos adquiridos”: não se questiona o direito à greve, direito inalienável dos trabalhadores. Eu prefiro olhar para o assunto por outro prisma. Primeiro, cotejando os interesses dos trabalhadores em greve e dos utentes afectados. Devem os interesses da minoria (os grevistas) sobrepor-se aos interesses da vasta maioria dos atingidos pela paralisação? Isto é compatível com o que nos ensinam, desde os bancos da escola, sobre democracia? Os sindicatos mais activos, aqueles que servem de correia de transmissão a um partido que é tudo menos democrático, têm uma concepção enviesada de democracia. O problema é deles. E de quem persegue na teimosia de fechar os olhos a estes atropelos, só porque o direito à greve não pode ser beliscado. Há uma imagem lapidar de greves de transportes que sintetiza a letargia geral perante o fenómeno: quando os microfones se estendem para o povo, em demanda de opiniões sobre a greve, é vulgar escutar pategos que nunca mais chegam ao trabalho acusarem “o governo” em vez de acusarem o sindicato.

Em segundo lugar, ninguém avalia a responsabilidade dos sindicatos. Como tudo lhes é consentido, porque na acção dos sindicatos vinga a ideia de que todos os meios justificam os fins, eles vogam como entidades a quem não é exigível uma actuação responsável. Não lhes interessa saber se vão perturbar pessoas que não têm culpa do conflito laboral. Aliás, quanto mais utentes atingem, maior o sucesso da greve. Ora isto está nos antípodas da responsabilização. Todavia, a greve é intocável. Enquanto o poder dos sindicatos for insindicável, somos (enquanto utentes dos serviços públicos onde há mais probabilidade de greves) reféns dos sindicatos.

Mas talvez o problema seja meu: e minha a miopia analítica.

20.8.07

Camarada Portas, estás errado, pá!


Estaremos de regresso aos saudosos anos do PREC, quando a violência gratuita era destilada por extremistas que passavam da conta? Eram tempos em que a violência se justificava como instrumento para atingir os fins de certas causas, de "causas certas". É verdade que os tempos que correm são férteis em posicionamentos perante os problemas que caucionam o princípio de que os meios justificam os fins. Talvez isso justifique a arribação de um grupelho que se diz defensor do meio ambiente e que vandalizou uma propriedade agrícola em Silves com o pretexto de destruir um pedaço de terreno que acolhia milho transgénico. Com a passividade complacente da GNR, decerto mais interessada em perseguir automobilistas que ultrapassem em três quilómetros/hora o limite de velocidade permitido. E com o silêncio permissivo dos partidos (com a excepção do PSD), em especial do partido de extrema-esquerda que dá guarida às personagens que desataram a destruir propriedade alheia. Houve apenas uma voz que destoou deste silêncio ensurdecedor: o eurodeputado Miguel Portas, que “simpatizou” com a performance dos “activistas”.

Repisando argumentos, Miguel Portas denunciou o chorrilho de comentários críticos de que foi alvo, sobretudo alguns que destilavam uma insuportável violência de termos, com ameaças à mistura. Tem razão quando aponta a dedo os palermas que, discordando dele, recorreram à violência verbal primária e prometeram violência física se acaso se cruzassem com o eurodeputado. Mas é o risco que corre ao estender a passadeira à vagabundagem que destruiu o terreno do agricultor. Pode ser um detalhe insignificante para Portas e acólitos, mas o milho semeado estava de acordo com a lei e tinha sido autorizado. Pode Portas e companhia não o perceber, mas eles não se substituem, com a sua superior forma de ver as coisas, à lei – gostem dela ou não.

A violência da escumalha que nem sequer teve a coragem de actuar de rosto descoberto não justifica a violência (verbal e as promessas de violência física) do outro lado da barricada. Que não venha Portas mostrar face de virgem pudica, argumentando com oportunismo que para os seus críticos o direito à propriedade vem antes do direito à vida. A arte da retórica tem os seus limites. O embuste passa somente entre os incautos. Miguel Portas iludirá os apaniguados, que se reconfortam com dislates destes sem os questionar. O problema do camarada Portas é desviar as atenções do essencial, ao sentir que a razão se lhe escapa entre os dedos. Convoca a piedade dos devotos que aplaudem a acção dos flibusteiros e a piedade dos distraídos, usando os argumentos patéticos dos energúmenos que se insurgiram contra a cobertura que deu ao vandalismo. Não é isso que importa – o primarismo intelectual dos que prometeram violência contra a violência. Já que toda a violência pertence ao mesmo saco das indignidades, por mais que isso custe a Portas e companhia. Sem surpresa: nas cabeças destas sumidades está instalada a certeza de que há violência má (a que lhes é prometida) e violência boa (a que é feita em nome das causas que professam).

O que está em causa é a violência que deu origem à violência argumentativa contra quem caucionou a violência dos folclóricos justiceiros que destruíram um campo de milho transgénico. Esse é o acto que deve ser questionado. E a complacência de alguém que é eurodeputado e acoberta o vandalismo. Ainda que jogue com a precaução retórica: afirma que entende o acto como necessário para trazer para a discussão pública a questão dos transgénicos. Ora isso é que é perigoso. Pelo precedente que abre, pois doravante sempre que a extrema-esquerda quiser inscrever na agenda pública uma das suas causas fracturantes, chamando a atenção do público, o acto inaugural será uma orgia de violência sobre os outros. E estes que não ousem resistir à vaga dos justiceiros, nem sequer tentem com violência responder à violência dos que espalham a “destruição justa”, pois se o fizerem hão-de ser crucificados como opositores à razão incontestável que está do lado dos justiceiros. O que sobra é a mensagem dos vândalos, com a bênção de Miguel Portas, muito ao jeito das inefáveis justificações do injustificável do Professor Boaventura: quem não estiver de acordo com algo que tenha o beneplácito da lei, use da violência e encene-a com os holofotes da imprensa e a cândida complacência da polícia que estaria melhor a beber uns bagaços na tasca mais próxima.

Miguel Portas e adjacências folclóricas não devem ser unilaterais na forma como pensam e agem – sob pena de contrariarem um dos ícones da intelectualidade a que prestam tributo, o relativismo (que, confesso, sou um cultor). Antes de tirarem conclusões precipitadas e de fazerem as suas verdades que não são merecedoras de contestação (tamanha a sua persuasão), tentem perceber o ponto de vista contrário. No caso, tentem perceber o desespero do agricultor que viu o seu campo destruído. Se isso lhes causa alergia porque logo se apressam a denunciar que o direito de propriedade não é sagrado, esforcem-se, por um momento que seja, por fazerem de conta que o campo destruído lhes pertencia. Se, então, ainda restar alguma honestidade intelectual, digam-me alguma coisa.

Eu, que nunca andei à pancadaria com vivalma e que nunca pus as mãos numa arma de fogo, tenho que confessar o seguinte: se fosse aquele agricultor, haveria de defender com unhas e dentes o meu sustento. Daria uns tabefes, uns murros e uns pontapés – e receberia outros tantos, decerto, apesar de virem de quem se emproa na condição de pacifista por excelência, os tais flibusteiros. E aposto que Miguel Portas, perante o mesmo estado de necessidade, usaria de violência para defender os seus pertences caso estivessem sob a ameaça de quaisquer violentos. “Olha para o que eu digo, não olhes para o que faço” – já estamos habituados ao refrão.

17.8.07

Missa na areia


Um dia destes houve um dignitário eclesiástico que ousou inovar. Celebrou a eucaristia dominical em plena praia. O bispo de Aveiro mostrou ao mundo que a igreja não é uma entidade tão ultrapassada como consta. O bispo, puxando lustro ao ecumenismo de alguns, invocou o nome de Maomé: e se ele não vem à montanha, que se desloque a montanha até aos pés de Maomé, aos pés desnudados que se refrescam nas frias águas atlânticas numa praia confinante com a ria de Aveiro.

A missa foi dada na areia. O sacerdote compreendeu que o povo tem que ser cativado das formas mais originais que só estão ao alcance dos gurus de marketing. Aliás, com esta cartada de mestre, o marketing teria muito a ganhar se as suas fileiras fossem engrossadas pelo bispo de Aveiro, não fosse dar-se o caso do bispo ter seguido a carreira eclesiástica. O povo resvala cada vez mais para os prazeres do corpo, para o hedonismo que contraria a monástica forma de viver ditada pela igreja. Ainda que continue a professar a religião católica, o povo não desperdiça um óptimo dia de praia – que eles escasseiam a norte, para mais quando o Verão deste ano teima no seu envergonhamento. Entre um dia bem passado na praia e a ida à missa dominical, o povo acredita que o bom deus perdoará a tentação de arrastar os corpos para a toalha estendida no areal.

Do alto do seu discernimento, o bispo não quis privar os crentes da obrigação que os leva à missa de domingo. Estando as praias mais convidativas que os bancos da igreja, o bispo pegou nas trouxas e acampou o altar em plena areia. Matou três coelhos com uma cajadada. Primeiro, exibiu um surpreendente refrescamento da bafienta entidade que não cessa de aspergir sobre crentes e não crentes sinais de passadismo doentio. Segundo, mostrou que a igreja pode estar ao serviço dos fiéis. Inverte-se o plano do relacionamento: por uma vez que seja, não são os fiéis que se ajoelham, na sua infinita pequenez, perante a grandiosidade da perene igreja. É a igreja convertida a um pregão do mercado, o que sentencia que o cliente tem sempre razão. Terceiro, a jogada do bispo foi de um estratega de primeira água: naquele domingo, a eucaristia teve uma audiência sem precedentes. Nunca tantos foram os espectadores da missa. Os voluntários e os involuntários. A “palavra do senhor” chegou até a quem não a queria escutar. A alternativa seria tamponar os ouvidos ou mudar de praia.

Eu até acho bem que a igreja abra as janelas e deixe entrar ar fresco para o quarto tão cheio de mofo. Que se modernize, vá até às pessoas, percebendo que o mundo evolui e arrasta as pessoas para alterações de mentalidades. Ainda que seja matéria estranha a um ateu, o ateu não pode deixar de aplaudir quando a entidade eclesiástica instrui os sacerdotes para uma visão mais arejada do mundo. A igreja tem de descer do mundo etéreo, equiparar-se aos mortais a que se dirige. Fazer a missa na praia pode ser o primeiro passo. Ainda que de outras paragens venham sinais anteriores da modernização da igreja: a famosa teologia da libertação cunhada em países latino-americanos, que faz a síntese de Cristo e Marx, aceitando que o “povo oprimido” se muna de armas para fazer a revolução.

Desinteressado, porque militantemente ateu, daqui ofereço os meus préstimos para a modernização da igreja católica. Para além de missas em locais improváveis, seriam dadas instruções aos mais jovens padres para palmilharem locais de devassidão humana, tentando convencer os ímpios que só a purificação da alma revela os frondosos caminhos do apaziguamento interior. A peregrinação seria complementada por missas à porta dos lupanares onde as hormonas tomam de assalto a dignidade do espírito. Assim como assim, os padres habituados às missas dominicais no meio da praia estariam treinados a ver corpos femininos apenas envergando minimalistas biquínis. Logo, preparados estariam para enfrentar as voluptuosas alternadeiras que são a tentação carnal que traz tantos clientes em pecado. Seriam os padres acusados de cercear o funcionamento de um mercado, o mercado onde a excitação das hormonas masculinas coisifica a mulher (tratada como “carne branca”); teriam, por esse motivo, o aplauso de outros frades que se coçam de alergia por tanto capitalismo que os cerca. Seria uma aliança insólita, sacerdotes católicos e frades da esquerda caviar em uníssono contra as excrescências do capitalismo.

Em matéria de compreensão da realidade, o tirocínio ideal para sacerdotes mais arejados seria frequentar o acampamento de Verão da esquerda caviar. Seria o começo de uma aliança idílica.

16.8.07

Torga, as dores de parto de um Portugal doído


Conheço mal a obra de Miguel Torga. O pouco que li já faz muito tempo, pelo que sobram algumas memórias difusas. Por estes dias o escritor voltou à ribalta, por ocasião do centenário do seu nascimento. As evocações da vasta obra de Torga sucederam-se, na imprensa e em celebrações mais ou menos oficiais agraciadas com o supremo desprezo do governo.

Tive a oportunidade de retomar o contacto com a obra de Torga através de um documentário que passou na RTP2. Dos excertos declamados e dos testemunhos produzidos, perpassa a imagem de um escritor atormentado com o Portugal que o viu nascer. Alguns disseram-no: uma relação de amor-ódio. Daquelas relações mal resolvidas, em que a personagem não se consegue libertar do espartilho que é o foco da sua atenção. Muito se demora no alvo, ainda que seja para dele desdenhar, para ressaltar os seus lamentáveis traços. Só que a todo o momento a ele regressa, ainda que dele se queira distanciar, confessando a amargura pela incapacidade de se entregar nos braços do Portugal que merece o seu desamor.

E, no entanto, Torga descreveu à exaustão a paisagem, a rica paisagem que o encantava. Parecia haver na sua obra o contraponto entre a prolífica, e terapêutica, paisagem e o alvo maior das fraquezas, quem a habitava, os portugueses. Por isso, os especialistas discutem se há na obra de Torga um bucolismo militante, uma paixão assoberbada pela paisagem tão variada para território tão exíguo, apoucando os habitantes que são remetidos a uma condição de pequenez, a fonte do Portugal adiado. Em parte do seu testemunho, Álvaro Barreto oferece o exemplo do Douro como negação do bucolismo de Torga. A pungente viagem pelas escarpas do Douro, talhadas a pulso e sangue pelos trabalhadores explorados, será, no entender de Barreto, a prova de que o escritor se distancia do bucolismo.

As palavras cruas de Torga querem mostrar que a paisagem foi sulcada pelo sacrifício dos homens submetidos ao jugo dos patrões insensíveis. A paisagem, sem dúvida majestosa, só o é por acção humana. Para Barreto, o escritor sagrou a grandiosidade da paisagem exaltando, ao mesmo tempo, o penoso desbravar do xisto, a luta contra o terreno acidentado e o clima agreste, numa palavra, como os homens tiveram que dobrar a severa paisagem para dela fazerem o vitral que extasia quem se detém diante dela. Negar-se-ia provimento aos que vêm na obra de Torga uma profundo pessimismo antropológico sobre a portugalidade. Afinal haveria uma gesta de lusitanos heróis, e não apenas aquela gesta de descobridores que acorrenta gerações e gerações ao estúpido mergulho no passado que já não regressa.

Retenho a atenção na dialéctica entre a paisagem e Homem, sem curar dos pormenores neo-realistas do muito suor derramado, das penitências impostas em incontáveis jornas de trabalho em que esforçados operários da paisagem a foram tecendo, pacientemente, do rude nada à monumental escadaria que se encavalita no Douro, como a conhecemos hoje. A interrogação é esta: faz-se a sagração de uma paisagem imponente, desvalorizando o contributo humano, ou entroniza-se o factor humano em desvalorização da paisagem que desfila diante dos olhos dos visitantes?

A paisagem não seria o que é sem o contributo dos homens que a cinzelaram. Parece indubitável. Pertencer ao elenco do património da humanidade é prova irrefutável. Contudo, a paisagem em bruto existe antes da intervenção humana. Heroicizar o Homem, desvalorizando a paisagem, é uma apreciação enviesada da natureza duriense. Aos neo-realistas será reconfortante a exaustão das palavras que descrevem, ao pormenor, a dureza das condições a que se sujeitaram os homens que fizeram os socalcos, conquistando a inóspita paisagem para o altar das monumentais construções humanas.

Eu prefiro olhar para o lado escondido da equação. Os trabalhadores sacrificados foram actores maiores da gestação da paisagem que abraça o Douro. Mas foram os actores necessários, os actores que se entregaram no sacrificial altar das pedras amovidas, do xisto amaciado, das talhadas de montanha subtraídas para edificar os degraus onde viriam a ser plantadas as vinhas. Foram aqueles homens os rostos anónimos da paisagem demoradamente esculpida. Não fossem eles, a tarefa teria cabido a outros quaisquer, a outras gerações. Aquela foi a encomenda de que um cantinho da humanidade, num determinado momento, foi incumbido. A variável independente continua a ser a paisagem intervencionada.

15.8.07

Romarias


O povo ladino, enfim, no dia do entretenimento estival. A sublime comunhão do povo nativo com os emigrantes de regresso à santa terrinha. Cuidam os santos que a festa venha abençoada por um dia soalheiro, quente; o caldo onde nadam os ingredientes da festança viva, com as cinzas do churrasco adejando no ar, misturando o seu calor com o tépido vento do entardecer. O dia ensolarado confere a nota esplêndida ao dia festivo, que o povo merece que os festejos sejam temperados pela bonança da atmosfera, o beneplácito dos santos celebrados.

Romarias, churrascos, garrafões de vinho e muito folclore. À mistura com a multidão que vem, de perto e de longe, desaguar nas terras consagradas pelas romarias conhecidas. Divertimento a rodos. E o bodo aos pobres. O caldo verde e as sardinhas, mais o bolo da Teixeira. Pipocas fervilhantes que estalam na máquina que as faz. Novos e velhos, todos numa algazarra febril. Num dia, num dia que seja, em que as amarguras ficam em banho-maria, adiadas até ao dia seguinte, quando a ressaca do vinho pontua com uma dor de cabeça a dor de parto da romaria.

De alto a baixo, do litoral ao mais recôndito lugar do interior, festarolas de fio a pavio. Com as idiossincrasias regionais, os usos locais, a jactância da gastronomia característica, os sons do folclore típico que ecoam como acompanhamento inato da festa. E foguetório. Do fátuo foguetório que troa ensurdecedores petardos ao raiar da alvorada, chamando os foliões para o dia de festança, que se faz tarde e o dia é curto. Ao fogo vistoso ao bater da meia-noite, em despedida até ao ano que vem, um bouquet de cores que se desfaz no ar para comprazimento dos olhares já toldados pelo muito álcool que escorre nas veias.

Insaciável, o povo agita os corpos no bailarico. Os mais novos e os de meia-idade, que os ossos cansados dos idosos remetem-nos à condição de nostálgicos espectadores. O lamiré para a coreografia desalmada dos corpos foi dado pelo concerto do artista pimba que faz as delícias do povaréu. Melodias xaroposas e as letras imponderáveis arrebitam os corpos. E o cheque chorudo que o artista arrecada entre uma multidão de indefectíveis fãs e dos outros, desconhecedores da poda, que vão na onda e começam por bater o pé contagiados pela febre que corrompe os corpos dançantes.

No dia da romaria, a realidade entra em parêntesis. Não há choros, nem lamentações. Só as viúvas continuam a mostrar tristeza, não se querendo despojar das vestes negras que as acompanharão até ao dia derradeiro. O dia da romaria é quando o povo é acometido por um acesso de generosidade que excepciona a regra dos dias restantes. Tal como para os artistas pimba, que têm por estes dias de Agosto a colecção de cachets que chegam para o resto do ano, a romaria é benfazeja para os mendigos. O instinto de sobrevivência trá-los aos sítios das romarias, sabedores da generosidade momentânea do povo inebriado. Os minutos que passam têm o odor mágico que excita as massas – e aplaca os maus instintos, fertilizando o terreno que é árido para a generosidade no resto do ano.

Nas romarias, o povo antecipa a despedida do Verão. Combina-se com os emigrantes que pavoneiam a afluência material e a língua materna maltratada. É uma espécie de equinócio adivinhado, a mais de um mês de distância. O calendário religioso providencia o feriado da praxe, o pretexto para as celebrações que o povo tão devoto traz para a arena do paganismo. A procissão confere o momento de seriedade, um intervalo na folia popular. Ou apenas a temperança que curte as carnes para os excessos que vêm a seguir, com os artistas pimba a resvalarem para o chinelo, o impropério que profana a seriedade religiosa do feriado celebrado em festança popular. Por um dia, um dia que seja, o povo deixa as lamentações, deixa de ser um povo sofredor. Não há lágrimas para carpir. Somente fartos sorrisos temperados pela salmoura alcoólica e pelo inebriamento da música que ecoa a toda a hora. As cicatrizes escondem-se, cauterizadas pela terapêutica romaria.

O dia das romarias é o dia em que sair de casa é um lancinante apelo à maceração do espírito. É o dia em que a prisão da residência não é prisão, é um bálsamo regenerador.

14.8.07

O dilema da natalidade


A Europa vive em crise demográfica. Fabricamos poucos filhos. Como é maior a esperança de vida, encaminhamo-nos para sociedades envelhecidas. Antecipam-se nuvens negras sobre a segurança social por carência de rejuvenescimento da população, o que pode hipotecar pensões e reformas dos que agora fazem os seus descontos. Daí que a promoção da natalidade seja uma das prioridades dos países europeus, independentemente da filiação ideológica dos governos. A alternativa parece pouco confortável a uma Europa que ainda desconfia da multiculturalidade: seria a abertura de portas à emigração, sem os fantasmas que misturam etnocentrismo e xenofobia.

Perante a exigência da promoção da natalidade, estaria muito desconfortável na pele de um socialista com responsabilidades no governo – um daqueles engenheiros sociais que têm na ponta da batuta soluções mágicas para todos os males, por força de decreto. Dizem-se os socialistas penhores da liberdade – não da liberdade individual apanágio dos liberais, que essa é uma liberdade excessiva, perigosa, que desmerece a intervenção milagrosa dos engenheiros sociais. Dizem-se ainda sacerdotes da modernidade, pelo que afiançam formas hedónicas de vida que vingam sobretudo nos meios urbanos e intelectuais. As vanguardas. Que têm o desassombro de confessar que constituir prole não está entre os seus objectivos de vida. Para um socialista modernaço, deve ser difícil torcer a coluna vertebral e congeminar uma política que incentive a natalidade.

É do outro lado da barricada que se situam os sectores a quem é mais fácil defender estímulos à fecundidade. É mais entre os democratas-cristãos e os conservadores que políticas de promoção à natalidade se acolhem com naturalidade. Por oposição ao hedonismo egoísta que desprezam. Por influência da doutrina católica que teima em conservar os rudimentos de uma moral castradora que se atemoriza perante a sexualidade. Contudo, os socialistas não podem fechar os olhos ao problema demográfico que aflige a Europa. São tomados pelo pragmatismo que os leva a fazer tábua rasa de alguma da retórica que cativa a simpatia de elites que, por sua vez, trazem atrelado o resto da populaça, por contágio. O pragmatismo levará os socialistas a empunhar uma bandeira que sempre foi da dantesca direita: uma política de apoio às famílias numerosas.

No esforço vão para dar um contributo para a governação socialista tão messiânica, avanço daqui algumas sugestões para a seita se desenvencilhar do dilema da natalidade. Primeira constatação: a Opus Dei terá razão quando aconselha os seus a praticarem sexo apenas para fins de reprodução da espécie. As mulheres devem ser, como no passado, uma espécie de galinhas poedeiras: dar à luz uma chusma de crianças, para se repor a sociedade rejuvenescida. Como a necessidade aguça o engenho, as elites que cultivam o hedonismo e desvalorizam a multiplicação da prole devem ser convencidas do imperativo social do seu contributo para uma causa que é colectiva. Assim como assim, essas elites não se cansam de apregoar a predominância do colectivo sobre o individual; devem, pois, afinar o discurso com a prática que resulta dos seus actos.

A segunda sugestão é do agrado da fobia regulamentadora tão cara aos socialistas: se os contraceptivos são obstáculo ao aumento da natalidade, regulamente-se a sua venda. Que interessa que isso represente um recuo na política de contracepção? Impõe-se, como prioridade das prioridades, o aumento da natalidade. Pelo que será legítimo impor limitações ao uso de contraceptivos. Aliás, esta medida terá um atractivo suplementar para os socialistas: em vez de proibir (que seria excessivo), restrições quantitativas sobre a utilização de contraceptivos. Seria necessário cadastrar os adultos e controlar a quantidade de contraceptivos que usam ao longo de um mês, de um ano, de uma vida. Seria uma medida atractiva: os socialistas adoram tudo o que signifique uma intrusão na vida dos cidadãos.

Há sempre a alternativa que os companheiros socialistas que governam a Espanha tiraram da cartola: por cada filho além do primogénito o casal recebe um subsídio de quinhentos euros. É só uma questão de fazer contas, puxar os cordelinhos da engenharia financeira para não beliscar a sustentabilidade das finanças públicas. A medida comporta um mar de vantagens. O povo ignaro, de vistas curtas, seduzido pela nota de quinhentos, vai desatar a procriar incessantemente. Os progenitores, cegados pela cintilante nota de quinhentos, hão-de penhoradamente agradecer, perpetuando a seita socialista no poder. Além de que é uma aposta no futuro: estes papás hão-de contar à abundante prole que a sua existência se deve à magnânima medida dos socialistas. Logo, mais potenciais eleitores futuros a engrossar a maré socialista.

E com um tiro abatem-se dois pássaros: o da natalidade e o da perpetuação socialista no poder.

13.8.07

Por que tratas o teu filho por “você”?


O progenitor desdobra-se em redor da piscina, os dois olhos dividindo-se por ambos os filhos. A matreirice dos petizes não dá descanso. Obriga o cuidado a usar a voz de comando, o vozeirão que condiz com o aspecto coriáceo do progenitor. Uma voz que impõe respeito e cauciona a prudência dos petizes. Neste sítio em que o mais importante é a exibição das aparências, estou para perceber se a voz trovejante do procriador ecoava piscina fora como predicado da cautela dos petizes, ou para os restantes perceberem que havia ali tratamento das crianças por “você” – o ufano sinalizar do tratamento que só as pessoas bem situadas na escala social usam no relacionamento com a descendência.

Não discuto hábitos de educação – logo eu, que sou pela descentralização da educação, pela mínima interferência dos poderes públicos na educação que os pais, e sobretudo eles, devem consagrar às crianças. A moda, que as ditas pessoas altamente situadas na escala social pavoneiam, de tratar por “você” os filhos, é para mim misterioso enigma. Ainda que sobre o modismo – que o código comunicacional contagia-se entre a tribo que faz parte, ou aspira a fazer parte, da “elite social” (no que a expressão queira significar) –, permanece ininteligível a razão do tratamento tão distante, impessoal, de pais para filhos. Se é verdade que a escolha que fazemos, nas relações pessoais, entre o “tu” e o “você” diz muito da proximidade com as pessoas, mais se adensa o mistério que envolve a tribo que insiste em tratar a descendência por “você”.

Fui educado no tratamento mais liberal: lá em casa sempre imperou o “tu”, de pais para filhos e entre filhos e pais. Percebo que certos progenitores eduquem os descendentes de forma diferente, impondo o “você” quando estes se lhes dirigem. Será a rédea curta que garante o respeito dos mais novos, ou apenas o hábito legado de geração em geração. Mais incompreensível é o altivo “você” que domina a comunicação entre progenitores e descendentes. Apenas me incomoda à audição, sem a pretensão de convocar a fobia regulamentadora dos socialistas que habitam nos engenheiros sociais que nos apascentam. E incomoda-me, duplamente, pois conceder este tipo de tratamento a um filho mostra uma relação distante, ambígua, como se houvesse um inacessível altar que separa pais de filhos. O “você” é o castelo onde se refugiam os progenitores, o lugar onde jamais os filhos hão-de entrar. A caução da intimidade inatingível na relação filial.

Ou pode este tratamento dedicado aos filhos representar somente um modismo social. A coisa pega-se e, entre a tribo que presunçosamente chama a si a tão importante condição de “elite social”, o “tu” foi banido do relacionamento pessoal. Não é só entre filhos. É entre pares: entre amigos de longa data ou “amigos” de conveniência, entre familiares, até entre homem e mulher que partilham mesa e cama e família. Gostava de perceber as raízes de tão impessoal tratamento. Onde tudo começou e por que razões o “você” imperou no relacionamento com familiares a amigos, destruindo a barreira que existe entre eles e os outros, aqueles a quem as pessoas comuns dedicam o tratamento por “você”. O excessivo formalismo vai contra a corrente de um povo que se diz pertencer à família dos povos latinos, aos quais a informalidade é mais genética. A prática desmente-o. Conheço mais informalidade, mais convivialidade no trato, em Inglaterra do que entre os espécimes que se dizem pertencer à tão afamada “elite social”.

A praga do “você” nem pode ser contextualizada através de uma importação de costumes brasileiros. É lá que o tratamento ganhou foros de generalização, pois o “tu” inexiste. Nem podem os arautos do impessoal “você” lusitano argumentar que os brasileiros são expoentes da informalidade e mesmo assim só usam aquele tratamento. Os linguistas e sociólogos dariam, em duas penadas, o contexto do “você” brasileiro, o que seria suficiente para o desconfigurar com o “você” lusitano. Enquanto por cá o “tu” existir, decerto entre as camadas mais néscias da população e entre aqueles que teimam em deslizar dos carris da verborreia tão típica da “nata social”, o “você” não terá a dimensão que ganhou no Brasil. A analogia pan-atlântica fica excluída.

Talvez seja um modismo passageiro. Uma questão de gerações, na pior das possibilidades. Uma forma da “nata social” se distinguir dos demais, com um código de conduta que cimenta pertenças (ou aspirações). Falta saber se o “você” com que a descendência é agraciada em público coincide com o tratamento na intimidade do lar. Já agora, ao jeito de exercício especulativo para rematar: o casal persiste no “você” quando se envolve no calor dos lençóis?

10.8.07

Um caldo de cultura


A praia está apinhada. A preia-mar encolheu o areal. Há um ajuntamento de pessoas e toalhas excessivo, uma incongruente densidade demográfica na areia. Quem chega mais tarde procura um espaço, um lugarejo que seja entre a acumulação de toalhas e corpos. Farejam o espaço e descobrem uma magra faixa de areia onde julgam caber os pertences. Que são espalhados no areal, acomodados com uma precisão cirúrgica. Fica a toalha da extremidade a menos de meio metro do vizinho – do vizinho que quando chegou ainda era a manhã temporã, areia bastante para estender as toalhas. Não agora, que o ajuntamento e a maré alta impõem o acotovelamento dos veraneantes. Intimidade forçada, com a vizinhança não desejada a acampar quase em cima dos meus joelhos.

Acossado pela companhia dos desconhecidos, revejo testemunhos que certificam que férias assim podem ser um desassossego perene. Não que vá ao exagero de censurar, de permeio com a chacota tão típica de quem se julga penhor da superioridade moral, a horda que por Agosto se mete à estrada e enxameia a costa algarvia. Pacheco Pereira foi o juiz que sublinhou a curteza de vistas da turba que desagua no Algarve.

Ainda que caia na tentação de lhe dar razão, desprendo-me do juízo censório porque nele há o travo de reprovação que encobre ressentimento mal amanhado. Prefiro ver com os meus olhos. Sentir na carne os sinais deste caldo de cultura espalhados ao longo da costa algarvia. De acordo com o adágio, a necessidade é mentora do engenho: se a praia e águas relativamente tépidas são ingredientes do remanso estival, a costa do Algarve é o que sobra da geografia nacional a um turista remediado. Suportando os custos que os Pachecos Pereiras denunciam do alto da cátedra. Será o mal menor, até o ramerrame repetitivo das estadias algarvias passar do limiar do cansativo.

Quem arriba nos derradeiros dias de Julho sente a diferença quando entra o Agosto. A diferença entre muita gente e uma multidão que, adivinho, só pode fazer férias em Agosto (que não há mês pior para veranear). A praia empilhada de corpos em pré-bronzeamento é o sintoma que grita aos ouvidos de cada turista que busca o sossego. O melhor é tirar as barbas de molho. O sossego, só no castelo da solidão, se por acaso o alojamento merecer a sorte de um local tranquilo e de vizinhança que não chegue embriagada, e barulhenta, quando a madrugada está quase a dar lugar à manhã bonançosa. As curtas estadias na praia, por mais matinais que sejam, esbarram na afluência incessante de pessoas que preferem não andar mais cem metros e encontrar um pedaço de areia sem ajuntamento de corpos. Ou comodismo, amizade à força, até uma certa intimidade, a ver pelos menos de cinquenta centímetros que a toalha do vizinho ficou estendida à minha frente.

Não sei se em férias haja quem desligue os neurónios. Ou se, permanecendo a matéria encefálica activa, haja quem não se importe de partilhar uns centímetros de areia com o veraneante do lado, conhecido de lado algum. Porventura isto explica traços da idiossincrasia nacional. A tendência do povo para enxamear centros comerciais. Ou como o povo sobrelota transportes públicos e prossegue o caminho sorridente, sabendo que o odor corporal exalado pelas pessoas que se ensanduicham é o lenitivo para o dia que acaba de começar. Há uma versão alternativa, mais inacessível ao comum dos mortais, mas que todavia vem perfumada com a mesma essência: a luta de galos entre dois banqueiros pelo poder no “maior banco privado português” (certeza da imprensa). Uma luta por território. Ambos querem ter só para si um pedaço de terreno, condição necessária para a afirmação do poder. Bem vistas as coisas, os dois banqueiros que oferecem tão triste espectáculo (talvez, uma iniciativa privada à imagem da santa terrinha que somos: medíocre) serão a antítese dos veraneantes que partilham cada centímetro quadrado de areal algarvio. Nestes, a convivência (forçada) é tanta que quem estende a toalha em terreno quase ocupado aceita a intimidade estival. Os banqueiros, ao contrário, seriam incapazes de ficar separados por cinquenta centímetros na praia – ou em qualquer lugar, a crer no ódio visceral que nutrem reciprocamente.

Como as férias também cansam, hoje o derradeiro dia de visita à praia. O derradeiro dia para a provação de indesejáveis companhias que quase se estendem em cima da minha toalha. É mais fácil fugir do Algarve apinhado: é só emalar os pertences e regressar a casa. Impossível é fugir do lamacento país que desfila com a complacência dos medíocres. Quando são os medíocres os actores principais, ou se segue o exílio ou o refúgio onde o triste espectáculo não possa ser assistido.

9.8.07

Nas ameias do sono


Dormia, por enquanto. Refugiava-se dos dias claros que espelhavam a sombra que teimava em seguir todos os seus passos. Não havia momento em que a luz cristalina se somasse. Os dias todos tomados pelo nevoeiro carregado que aturde os sentidos. Andava pelas ruas e chegava a casa sentindo a roupa carregada da fuligem dos plúmbeos dias que tinham um trago doentio. Ao fim do dia, quando a água do chuveiro escorria pelo corpo, via as partículas negras que toldavam a água assim que vertia pelo ralo. Os dias assim passados eram torturantes cancelas para lugar algum. O sono, um refúgio.

Ao menos, durante o sono, podia vogar em paisagens idílicas – acreditava. Nuvens acasteladas que conseguia pisar. Praias exóticas onde os odores dos frutos se misturavam com a maresia matinal. Ou uma viagem longínqua até às serranias perdidas cobertas de neve, a pureza gélida do ar que iria estranhar, tão entranhado o negrume dos dias citadinos que perfumava as faces carrancudas que via todos os dias. Aliás, ele próprio face carrancuda, sem destoar.

O sono demorava a chegar. Havia insónias telúricas, obstáculo herdado do dia que parecia perene, entrando a fundo nas entranhas da noite. Todos estes dias da atroz luz diurna perfurando a quietude da noite eram a espada dos dias eternos que existem no Verão árctico. Os minutos alongavam-se num tapete de impaciência. Tentava suster a respiração mental, como se trouxesse, por magia, o sono ambicionado. Debatia-se nos lençóis, amarrotava a cabeça com a almofada, sufocando a mínima réstia de luz que entrava nos olhos. Ia ao frigorífico, julgando que dessedentar fosse o truque fatal para asfixiar a insónia incomodativa. Estendia as pernas no sofá da sala; podia ser que o sono viesse sem avisar, atraiçoando a insónia demorada. Esgotavam-se as tentativas desesperadas de convocar o terapêutico sono: vinha à varanda receber na face o frio da madrugada, na tentativa vã de domar a insónia torturante.

Estava já longa a madrugada quando os sentidos começaram a confundir as imagens. Sem dar conta, o sono vingara. Tarde demais para um sono apaziguador. Seguia-se mais um ignóbil dia da semana, com a sequência de passos que configuram o indizível quotidiano. Escassas horas com os olhos fechados, refugiado do mundo que o cerca. Poucas horas para se deitar nas ameias do sono que o protegem contra a estridência dos dias claros, das pessoas desfiguradas, das palavras ditas pelos outros que agridem a toda a hora. Ao menos no sono há lugar a gentis personagens que sabem o que é o afecto. No sono, esperava ele, os montes e vales e as cidades também só fossem lugares de luz vítrea, caras sorridentes, trato cortês.

Sonhava que enquanto dormisse houvesse lugar para um sítio diferente, em tudo nos antípodas do lugar irrespirável que o acolhe. Mesmo sabendo que a matéria onírica é o esbanjamento dos dias acordados, envolvia-se numa luta interna, incapaz de derrotar os querubins que impediam o sono. A cada noite de insónia demorada, acumulava-se o cansaço, forças exauridas pela dupla face do pouco sono e de, através desta escassez, voltar a face ao castelo de sonhos que oferecia a alternativa à destemperança dos dias corridos.

Haveriam as coisas de piorar. Já nem o sono era o refúgio prometido. E se nem as insónias bastavam, como se fossem prolongamentos dos dias hediondos que queria apenas olvidar, eram as poucas horas de sono salpicadas por pesadelos grotescos. Pesadelos que faziam do espaço onírico um lugar ainda menos recomendável que os dias plúmbeos de que pensava escapar através do sono. Deixara de ser um refúgio, o sono; ganhara a purulenta imagem de masmorra onde se acumulava a carne podre dos prisioneiros, um cheiro fétido da insalubridade, a intimidade forçada com as ratazanas que anunciavam doenças letais. E os carrascos sem cara que, sem aviso, tiravam um prisioneiro do cadafalso para a avenida dos horrores. Onde tudo, por fim, terminava.

Já nem sabia. Se preferia o traço indelével dos dias sombrios, ou o sono que deixara de ser refúgio e passara a doloroso martírio.

8.8.07

Moda, últimas tendências


As reviravoltas da moda não cessam de me surpreender. Há sempre mais um adereço, uma conjugação impensável de vestuário, ou o regresso a modismos datados (no que poderá ser a confissão, pelo silêncio, da ausente imaginação momentânea dos “estilistas”) que fazem a derradeira cambalhota do sector. Como dizem, o “último grito da moda”.

Diante destes gritos, confesso a minha surdez. No máximo, sou infectado quando os olhos, distraidamente, escorregam para fotografias publicadas numa revista de segunda ordem que a intrepidez estival atraiçoa. É só ver como as “figuras públicas” ousam na fatiota envergada, arrojando para além do crível. Trajam combinações obtusas que, em pessoas normais – e por isto quero significar qualquer anónimo – logo fariam soltar um farto sorriso aos demais, de permeio com a sentença irreprimível que diagnostica algum ensandecimento. Mas, nas “figuras públicas”, qualquer roupa fica bem. Ainda que seja o derradeiro exercício da moda impensável. Por estar acamada no corpo de tão mediática personagem, logo se entroniza na condição de vanguarda da moda.

Eu, que renego manifestações de conservadorismo, encontro aqui o refúgio que alberga a excepção à regra. Não que o imobilismo deva vingar nas roupas que vestimos. Há ocasiões em que o refrescamento do vestuário exige mudanças, daquelas que não entram no catálogo das mudanças radicais, fautoras de vistosas passagens de modelos que mostram o lado obscuro da moda – aquele lado das vestimentas que desfilam em passerelles e que jamais voltam a ser presenciadas no corpo dos comuns mortais. O que me perturba é o estalão diferenciado quando os apreciadores da coisa deitam os olhos ao vestuário que engalana personagens sobre as quais recaem os holofotes do mediatismo. Quando esboçam roupa arrojada, ou para me aproximar da linguagem comum, estranha, ninguém sentencia a reprovação que seria célere se a mesma roupa viesse cobrir o corpo de um anónimo qualquer.

Dá para divertir, ao menos. Dedilhar aquelas páginas onde desfilam os ícones que encantam o imaginário dos adeptos do mundo cor-de-rosa, é um sucedâneo de uma bem-disposta banda desenhada que tem o condão de atirar o humor para os píncaros. É lá que dou de caras com um jovem que arribou ao estrelato social acompanhado por calças esburacadas, camisola de alças e uma despropositada gravata de um vermelho viçoso, nó descaído até ao nível dos mamilos. Rio-me, mesmo sem especial atracção por palhaços. Umas páginas adiante, entra em cena um futebolista retirado que agora campeia pelo universo cor-de-rosa. Fotografado numa festa muito “in” (que convém usar o linguajar específico da seita). Numa fotografia a três quartos, dir-se-ia que a festa era solene, a atestar pela fatiota de ocasião: fato e gravata, colete incluído, gravata a preceito. A fotografia seguinte retoma o contacto com a moda de fusão: o calçado que coroa a fatiota consta de umas sapatilhas Nike que ofuscariam o automobilista desprevenido em plena noite no meio de uma estrada sem iluminação, a atestar pela intensa cor prateada que delas irradia.

Ainda bem que lhes é dado o ensejo de entreterem assim as massas. Alguns, aspirantes ao mesmo papel desempenhado pelas figuras que atingiram os píncaros do estrelato, aplaudem com entusiasmo o arrojo da moda mostrado pelos seus ícones. O meu conselho é que não desistam dos sonhos, que o mercado cor-de-rosa do mediatismo social está agora democratizado, perdeu os laivos plutocráticos de outrora. Aos que não se revêem na coisa, a especialidade tem predicados lúdicos. Nos tempos mortos, quando a leitura à mão se esgotou de fio a pavio e apenas sobram as páginas que ornamentam o reservadíssimo universo cor-de-rosa, ou quando demoramos num consultório médico e só restam as revistas daquela cor para matar o tempo que separa do atendimento pelo afamado clínico. A higiene mental não me aconselha visitas frequentes a esta espécie de “imprensa”. Duas vezes por ano, não mais, para que as sonoras gargalhadas que as páginas alimentam não se confundam com um patológico viciar no registo.

Ontem confessei frustração por não conseguir simpatizar com o PS. Hoje confesso outra frustração: nunca ter entrado para o mundo da moda – em qualquer das suas variantes. Quanto mais não fosse para fazer parte das trupes que vagueiam de festa em festa, exalando todo o seu glamour. E depois fazer uma paragem na padaria que abre as portas dos fundos aos que saciam a fome com o pão quente acabado de sair do forno, onde continuam a exibir os traços de glamour com as roupas que só os predestinados da moda ousam envergar e com os tiques que só eles sabem gorjear. Tratando os “amigos” por “você”, enquanto se dirigem displicentemente ao padeiro por “tu”, entre mais um trago no flute de Moet et Chandon, esbofeteando os presentes – os vulgares – com a pulseira azul-bebé gritando as palavras “Moet et Chandon” a ouro gravadas. Para todos os vulgares saberem que as criaturas regressavam de uma deslumbrante festa patrocinada pela afamada marca de champanhe.

Ou: sobre o vómito em andas humanas.

7.8.07

Causas fracturantes, ou demagogia barata?


A juventude socialista afixou um outdoor em defesa dos direitos dos homossexuais. Muito sugestivo: duas meninas, com excelente aspecto para se entregarem no balancete heterossexual, enamoradas uma da outra. Uma delas mordiscando ao ouvido da outra, deixando entrever o sussurro de palavras tórridas que antecipam momentos de acalorado envolvimento dos corpos. Os jovenzinhos socialistas querem situar-se entre os que defendem causas fracturantes. Uns pontos acumulados para o PS, por intermédia voz dos jovens irrequietos a quem é mais dócil colocar na boca o manifesto de uma causa fracturante numa sociedade ainda tão conservadoramente bafienta.

Eu diria que o PS mostra outra vez a sua ambivalência. Regressando à linguagem sexual, o PS é um partido bissexual. Os mais velhos, com responsabilidades na governação da nação, desviaram a bússola para a direita. Tanto que até o líder dos comunistas parafraseia Bagão Félix, imagem omnipresente da direita conservadora, católica e ciente de que o Estado deve ter um papel gigantesco, para mostrar em comício às massas devotas que o PS entrou numa perigosa “deriva direitista”. Mas eis que os jovenzinhos socialistas, borbulhando a rebeldia típica da pós-adolescência, vêm temperar a deriva. Emprestam a sua voz a uma causa fracturante que foi monopolizada pela esquerda caviar. De passagem, a extrema-esquerda deve ter ficado furiosa pela apropriação da causa de que se julgava penhora única. Agora já não está sozinha na defesa dos homossexuais, prática discursiva que garantia tantos votos nos meios urbanos e intelectuais.
Portanto, o PS “dá para os dois lados”. Ora seduz papalvos à direita (se calhar, sem que os papalvos saibam ao certo porque se filiam à direita – ou, sequer, o que é “a direita” de que se dizem seguidores), ora afixa cartazes de generosas dimensões apelando ao funeral do conservadorismo bafiento, abrindo os horizontes a uma modernização loquaz: a igualdade de direitos entre heterossexuais e homossexuais.

Já o disse mais que uma vez: não conseguir simpatizar com a malta do PS, e com o PS como coisa, é uma das maiores frustrações pessoais. Esforço-me, esforço-me, mas o mau feitio impede de destilar a náusea que este notável partido continua a produzir nas minhas entranhas. Olho para o cartaz e ponho-me a pensar: que partido admirável o PS é. Inteligência a rodos. Uma bicada à direita, para seduzir a clientela dos partidos que as convenções soem situar à sua direita; outra bicada à esquerda, deitando mão a uma causa da extrema-esquerda que rivaliza na ocupação de um certo território de arribação. Isto é o que se chama uma estratégia mirabolante. Estamos bem entregues. Com gente desta, a nau há-de chegar a bom porto. Afinal o sebastianismo não pertence ao domínio do imaginário. Há sebastianismos reais, fadados para deixarem o nível das promessas vãs. Há-de o vocábulo “sebastianismo” ser redefinido nos dicionários, mercê da acção deste PS e do seu timoneiro actual.

Olho com atenção para o cartaz e sinto a perplexidade a tomar conta de mim: o viés do cartaz, porque não há apenas casais de homossexuais do sexo feminino. Já sei, houve falta de coragem dos jovenzinhos socialistas. Senão teriam retratado dois homens em pose romântica, coroando o cartaz com o mesmo slogan pró-direitos dos homossexuais. Afinal, os jovenzinhos socialistas devem ser empedernidos marialvas. No imaginário de cada másculo jovenzinho que teve a ideia do cartaz há-de vogar uma mente tomada por uma fantasia sexual: o jovenzinho numa cama a três, com um casal de lésbicas. As jovenzinhas socialistas não participaram nas reuniões onde se fez o brainstorming para o cartaz. Ou apenas terão participado aquelas que professam a orientação sexual retratada no cartaz.

Suspeito dos que puxam os galões como advogados de defesa de uma causa fracturante. Quanto mais se arvoram nessa qualidade, mais desconfio que há ali estratégia que não olha a meios para atingir fins. Desconfio da esquerda caviar quando aparece, ufana, a defender os direitos dos homossexuais. Desconfio: que seja tacticismo pueril para arregimentar fidelidades caninas e encher o bornal de votos. Ingénuos há que confundem a árvore com a floresta e caem na esparrela. Agora foram os socialistas que descobriram a árvore das patacas. Insisto: quem genuinamente se perfila em favor dos direitos dos homossexuais não precisa de se engalanar como tal. O activismo traz consigo a dúvida, se não é um activismo oportunista, um meio para chegar à meta final, desvalorizando a genuinidade daquilo que se diz defender.

Vale para a esquerda caviar como vale, com reforço de causa, para os socialistas. Podem os jovenzinhos socialistas transpirar irreverência pelos poros, que uma sinecura oficial distribuída enquanto os seus mandarem amansa a irreverência. Diagnóstico lapidar: jovenzinhos socialistas abraçados à causa dos homossexuais soa a falso, a demagogia em bruto.

6.8.07

Um outro jardim zoológico


Adoro animais e a vida selvagem. Por isso não gosto de jardins zoológicos. Embatem de frente nos ares límpidos da natureza. Nos jardins zoológicos, tudo soa a falsidade. Habitats que tentam imitar os locais onde os animais selvagens foram capturados, mas sempre um sucedâneo que adultera as condições naturais a que os animais pertencem na sua selvagem condição. Eu já fui a jardins zoológicos. E só me apetece prometer que não voltarei a pisar o terreno onde se espalham tantas espécies que vivem deslocadas do espaço natural, aprisionadas para comprazimento dos humanos. Contrafeitos, tristonhos. Não tenho memória de alguma vez ter visto um animal selvagem exibindo felicidade pelo cativeiro destinado para o resto dos seus dias.

Nos jardins zoológicos há coisificação dos animais. São peões num espectáculo que se vende aos espectadores. São as coisas admiradas pelas crianças em sábios momentos pedagógicos, a estulta pedagogia do antropocentrismo. Os jardins zoológicos são os locais por excelência para progenitores (em digressões familiares) ou professores (em viagens de estudo) meterem nas cabeças dos petizes que a existência dos animais é um fado indeclinável: ao serviço da espécie humana, a espécie que exala a superioridade que o bom deus semeou no mundo.

Nos jardins zoológicos há todo um ar de faz de conta que é a antítese da pedagogia que as criancinhas deviam beber. Ou talvez não, se for levantado o véu que encobre o sítio onde vivemos, a aldeia global feita de falsidades mil. As crianças que desenham um frango sem penas e cabeça, porque é assim que o vêm à venda, sem saberem de que é feito um frango na sua imagem real. As mesmas crianças que hão-de ficar sem saber que a fauna que vive languidamente no jardim zoológico foi subtraída ao seu espaço natural, macerando os dias na indignidade da liberdade perdida pela pertença ao zoológico. Não chegam a perceber, os mais novos, que os animais que passam diante dos seus olhos não são artistas de circo, para erróneo deleite das pupilas esbugalhadas de quem, se pudesse, haveria de aplicar tropelias inenarráveis nos bichos.

Enquanto os animais continuarem a espelhar os rostos de tristeza típicos de quem perdeu fragmentos de liberdade, os jardins zoológicos são expressões da bestialidade humana. De caminho, a marca registada da imbecilidade do Homem, que contempla a utilização de animais para seu deleite, como instrumentos do seu comprazimento pessoal. Daí a coisificação dos animais que pertencem aos jardins zoológicos. Cada pedaço de terra onde vegeta uma vida selvagem manietada é um lugar empestado pela necedade humana. Dos fautores dos jardins zoológicos, que são os pérfidos perpetuadores da antropocêntrica veia que condena a humanidade ao degredo enquanto espécie. E, contra mim falo que já frequentei jardins zoológicos, dos espectadores que pagam bilhete para se divertirem com as faces entristecidas dos animais remetidos à vida em cativeiro.

Mudança de cenário – ou talvez não. Vogaram estes pensamentos quando passei, só fugazmente, pela marina. Teci um paralelismo entre a marina e o jardim zoológico. Entre o espectáculo consumido pelos mirones, os tantos turistas que confluem à marina e se debruçam nos gradeamentos que os impedem de adentrar no espaço reservado aos proprietários de embarcações. Ali ficam, minutos a fio, a olhar para os iates onde decorre uma qualquer operação de manutenção – a acostagem, a entrada de mantimentos, a donzela que sobe em biquíni à parte mais alta com um flute de champanhe por companhia, o garboso proprietário que gosta de se sentir alvo da inveja alheia, ou qualquer outro acto corriqueiro que logo desperta a atenção dos mirones.

E descobri: que do outro lado do gradeamento, onde só os abastados detentores de iates têm passagem, há uma espécie de jardim zoológico. O mesmo espectáculo para as massas que acorrem ao lado dos proscritos e que sonham, sem cessar, com o dia em que a boa aventurança deles faça tristes figurantes do espectáculo gratuito. Mas depois de muito pensar, percebo que a analogia é descabida. Assim como assim, os que se prestam ao exibicionismo estão na posse das suas aptidões de liberdade. Pelo rigor, não será um jardim zoológico. Um circo, com palhaços que desempenham gratuitamente. Ao menos fazem socialismo sem saberem.