15.1.08

“O sonho de Cassandra” (de Woody Allen)


Os filmes de Woody Allen mudaram. Já não são exercícios de humor sublime, sarcástico, desarmante. Woody Allen remeteu-se ao papel de realizador, desaparecendo do elenco de actores dos seus filmes. E parece rendido à velha Albion. Os últimos filmes – “O sonho de Cassandra”, “Scoop” e “Match Point” – são filmados em Inglaterra, recorrendo a imagens que percorrem a Inglaterra típica: paisagens verdejantes, palácios sumptuosos, ou Londres cosmopolita. Uma dramaturgia que se afasta do sentido de humor que distinguiu Woody Allen: as relações humanas na sua complexa contemporaneidade, aqui e ali deixando vir à superfície a banalidade burguesa. E depois há uma insólita moralidade a preencher os derradeiros filmes.

Em “O sonho de Cassandra” Woody Allen retoma essa surpreendente mensagem moral. Porventura até uma antítese da ética que obedeça aos cânones da legalidade e da convivência pacífica em sociedade. O filme narra as desventuras de dois irmãos. Um deles teve, pela vida fora, aventuras financeiramente mal sucedidas. O outro, viciado em jogo, álcool e codeína, alternava a sorte ao jogo com rombos que o deixavam com os agiotas à perna. A salvação dos irmãos, em horas de aperto, sempre fora um tio milionário que era dono de clínicas de cirurgia plástica na China e nos Estados Unidos.

Numa visita do tio bem-sucedido, os irmãos preparam-se para mendigar outra generosa ajuda. Um está convencido a enterrar dinheiro em empreendimentos hoteleiros na Califórnia, caindo no logro de um investidor fantasma que se há-de evaporar assim que vir a cor do dinheiro. O outro está a braços com mais uma dívida de jogo, desta vez uma dívida assustadora. O tio ouve-os pacientemente. Desta vez a ajuda tem uma contrapartida. É o tio que está aflito. Confessa que a fortuna que amealhou nem sempre respeitou a lei. E teme por uma auditoria que se avizinha. Admite que a descoberta de podres nos seus negócios o levará por muitos anos à cadeia.

É então que entra a ajuda dos irmãos. Há um membro do conselho de administração das empresas do tio que está disposto a contar tudo o que sabe. O tio sente-se refém deste homem. Só vê uma possibilidade de resolver o problema: liquidar o homem que lhe faz frente. Para não ficar refém de outros – por isso não equaciona a contratação de assassinos profissionais –, convoca a lealdade familiar. Escolheu os sobrinhos para a tarefa. Chegara a hora dos sobrinhos retribuírem todos os favores que o tio lhes fizera para trás. A factura é a encomenda apresentada pelo tio, a morte do homem que o ameaçava levar à prisão.

Os irmãos ficam incrédulos. Primeiro, com a desonestidade que o tio confessa, eles que sempre viram no tio um modelo de virtudes (quem sabe, apenas porque era o sustento nas horas de aperto). Depois, o tio não hesitara em pedir-lhes algo que mexia com as suas convicções. A primeira reacção é a de impossibilidade de tirar a vida a outra pessoa. Depois são tomados pela vertigem das vantagens materiais. O tio prometera uma compensação generosa, ainda mais generosa do que em vezes anteriores. Nervosos e amadores, esboçam o plano do assassinato. No fim de várias hesitações patéticas, conseguem matar o homem que ensombrava o tio.

O dia seguinte é de fantasmas. Um deles não consegue dormir. O outro acorda sobressaltado por um pesadelo. Com a passagem dos dias, o primeiro vai apaziguando a consciência, excitado com as possibilidades de sucesso que se perfilam. O outro mergulha numa depressão profunda, a cada dia mais arrependido com o acto cometido. Mergulha na bebida e nos comprimidos e regressa ao deus que outrora renegara. Um certo dia, confessa ao irmão que se vai entregar à polícia. O irmão fica assustado, temendo que a polícia chegue até à sua co-autoria do crime. Decide contar ao tio, que fica contagiado pelo pânico. Não demora a elaborar um plano de contingência: um irmão tem que silenciar o outro, silenciar para sempre. O irmão, depois da incredulidade inicial, resigna-se. Planeia o acto, no barco que ambos compraram meses antes, baptizado “sonho de Cassandra”. No momento em que preparava um cocktail de comprimidos e cerveja para liquidar o irmão tomado pelos remorsos, é incapaz de levar até ao fim o envenenamento. Furioso, dispara acusações contra o irmão remoído pelo remorso. Lutam. Aquele que ia matar acaba por ser morto, numa queda que lhe fractura o crânio. O outro, desesperado, afoga-se.

A rir-se, fica o tio sem escrúpulos. Até se adivinha que apenas quis afastar do caminho um homem que lhe fazia sombra nas empresas, que toda a história contada era o pretexto para o afastar sem o demitir. Usou os ingénuos sobrinhos, que fizeram o serviço e acabaram, com a fratricida luta, por apagar o rasto da responsabilidade do tio. A surpreendente mensagem é a antítese da moralidade. O crime, compensa. Vingou a maquiavélica personagem que teve arte de congeminar um plano perfeito. Endossou a responsabilidade para os sobrinhos inebriados pela soberba. E depois jogou com os seus remorsos para os limpar do mapa. Varrendo todos os vestígios da sua responsabilidade no homicídio, ele que havia sido o mandante.

Razão tinha um dos irmãos, quando discutiam num momento de dúvida existencial do outro: a maior parte dos crimes fica por resolver.

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