1.2.08

“Couldn’t care less” (ou a negação do imperativo republicano de sermos membros da comunidade acima de indivíduos)


Faço umas leituras, por dever profissional, que me desviam do habitual teatro da investigação. Arremeto pelo terreno movediço da cidadania, da democracia, de como cidadania de corpo inteiro exige participação, e participação activa.

Autores há ainda aprisionados aos cânones tradicionais: o lugar por excelência da participação é nas eleições. Outros alargam horizontes: desconfiam da eficácia das eleições, actos esporádicos que libertam os eleitos para um longo período sem o escrutínio dos eleitores. Reconfiguram a participação cívica: fora das eleições, em fóruns que reúnem interesses específicos, mobilizando esses interesses para acções de protesto, exercendo pressão legítima sobre os governantes.

Apesar do peso crescente dos que defendem formas alternativas de participação, mesmo esses aceitam que as eleições ainda são um momento capital de participação cívica. Uns e outros denunciam a desmobilização em actos eleitorais. A descrença no processo electivo, de mão dada com a perda de credibilidade dos actores políticos, o fermento para mais abstenção que deixa alguns (nunca os actores políticos) preocupados com o fenómeno. A escolha de governantes em eleições pouco concorridas pode ferir a legitimidade dos que ocupam os cargos. Há quem recuse a mácula semeada pela elevada abstenção. Os eleitos não podem ver a sua legitimidade beliscada pela demissão dos abstencionistas. Nem os que cumpriram o seu dever, votando, podem ser prejudicados porque muita gente optou por fazer outras coisas em vez de votar.

Deparei com autores (cultores do comunitarismo e do republicanismo) que não hesitam em propor soluções radicais para ceifar o mal pela raiz. Avançam com a votação obrigatória. E justificam a ousadia. A autonomia do indivíduo só se completa quando interioriza a sua participação no seio de uma comunidade. Sobretudo para os que divulgam as ideias comunitaristas, ser membro de uma comunidade é o desígnio maior de qualquer indivíduo. É compreensível que os indivíduos tenham que ceder diante dos imperativos que surgem no horizonte da comunidade. Só então se cumpre a autonomia do indivíduo, quando ele declina perante a comunidade: o bem comum é a sua felicidade individual.

Com estes pressupostos filosóficos, os comunitaristas e os republicanos prosseguem a justificação da votação compulsória. Há um equilíbrio entre duas facetas que aparecem ligadas ao voto: o voto como direito e o voto como dever. Insurgem-se contra os liberais que sagram o direito de voto, fazendo-o preceder ao voto como dever. Os votantes devem perceber que a sua decisão é individual mas produz consequências nos outros. Particularmente quando a decisão é de se ausentarem da eleição. A abstenção – argumentam – altera os dados de uma eleição, pode até causar uma perigosa deformação nos resultados. Quanto mais elevada a abstenção, maior a sobre-representação dos partidos que mobilizam uma fiel clientela. Com prejuízo para aqueles que perdem votos entre os que se demitiram do dever de votar. Este é o problema: os votantes dos partidos mais atingidos ficam prejudicados pela decisão de não votar de alguns. É neste contexto que o voto aparece como dever e só depois como direito: a decisão de uma pessoa pode interferir com o bem-estar dos demais.

Para o voto passar a ser obrigatório, equacionam um sistema de sanções para os relapsos. Acreditam, fosse a sociedade o altar da perfeição, que o opróbrio social seria suficiente para envergonhar os abstencionistas e colocá-los na senda do seu indeclinável dever. Apercebendo-se que aquele grau de perfeição é ilusório, preconizam sanções que pesem no bolso dos abstencionistas: multas, e pesadas.

O que me custa a aceitar nesta linha de raciocínio é como a autonomia do indivíduo só fica totalmente preenchida quando ele compreende que deve ceder perante a comunidade. Parece-me uma contradição insanável. E não consigo entender o voto como um dever e só depois um direito. Os direitos-deveres são, em primeiro lugar, direitos. A ideia de obrigar ao voto é a negação de uma cidadania que se deseja emancipatória. Às pessoas, o livre arbítrio de fazerem o que bem entendem com o catálogo de direitos que lhes é garantido. Medidas que imponham condutas obrigatórias são incompatíveis com essa cidadania emancipatória. Em vez disso, uma cidadania tutelada, fiscalizada por um exército de engenheiros sociais, sempre vigilantes a caucionar e a censurar comportamentos dos outros. O que me custa, em tudo isto, é que se obriga as pessoas a serem livres. Um paradoxo sem fim.

Ao tomar contacto com estas propostas que anseiam por um rebanho bem comportado e indiferenciado, uma súbita pulsão para a dissidência – nem que seja pelo grato sabor da dissidência. Aos olhos dos comunitaristas e dos republicanos, e da sua agenda impregnada de um moralismo tão bafiento como o moralismo de sacristia que tanto deploram, só apetece fazer o contrário do que defendem. Por um imperativo de higiene mental. Não tolero que outros sentenciem um roteiro obrigatório por onde os direitos que me pertencem devem ser apascentados.

Votar devia ser obrigatório? “Couldn’t care less”.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Eu voto sempre, mas entendo o voto como um direito inalienável acima de qualquer outra consideração. Tenho horror ao excesso de formatação social a que se vem assistindo no Ocidente, na Europa em particular.