20.2.08

A direita incorrigível


Às vezes percebo quem é de esquerda. Por que razões são de esquerda – sobretudo aqueles que têm instintos niilistas, de negação das ideias em que se não revêem, sendo esse o móbil para se situarem no espectro das ideias políticas. Assim como eu não sou de esquerda, pelas reacções epidérmicas que tudo o que ressoe a esquerda me causa. Sem ser de direita, da direita conservadora, beatificamente católica, tacanha, nacionalista, tributária de um Estado forte que traz a iniciativa privada na sua alçada, forçada às reacções pavlovianas de quem depende da generosidade estatal. Dessa direita trauliteira, apanhada por “valores” ancestrais, como se ainda vivesse algures perdida no nebuloso final do século XIX.

Há espécimes desta direita incorrigível por todo o lado. Para gáudio das esquerdas, que nem precisam de se esforçar muito para convencer exércitos que se alistam nas suas fileiras que elas são a inevitabilidade dos tempos modernos. Basta olhar para os disparates infindáveis dessa direita para que muitos se encostem a uma esquerda qualquer. Essa direita irregenerável é o maior capital de confiança para as esquerdas. Se a direita deste jaez desaparecesse, ou se fosse reduzida a uma expressão insignificante, o que seria das esquerdas que vivem dela como quem necessita de oxigénio?

O mais recente episódio da irreprimível tolice desta direita foi conhecido através das palavras sábias da Sra. Berlusconi. Publicou artigo de opinião no dia dos namorados, no jornal Corriere della Sera, destilando um manual do comportamento das senhoras mães de família. Imagino as feministas empedernidas, as insónias que as terão assaltado ao lerem as preciosidades oferecidas pela Sra. Berlusconi. Começa por ensinar que “a mulher deve ser o anjo moral do lar e estar sempre disposta a oferecer uma carícia ou a servir os outros, através de simples gestos caseiros”.

Há frases sumarentas, um vasto cardápio que vem polir o altar do supremo disparate. Esta afirmação catedrática da Sra. Berlusconi é, diria, burlesca na sua sagacidade. É só pérolas, e todas acantonadas numa singela frase: a mulher como “anjo moral” (e há, por acaso, anjos imorais?! E se a mulher é a caução da moralidade dentro do lar, será o homem, por antinomia, o demónio da imoralidade?); a generosidade perene de quem deve estar “sempre disposta a oferecer uma carícia”, para logo desfazer possíveis equívocos de mentes mal intencionadas que poderiam tresler as doutas palavras da senhora: pois as carícias concretizam-se através de “simples gestos caseiros”. Não resisto a enfileirar ao lado das mentes perversas, propositadamente viradas para uma interpretação maliciosa das palavras da consorte do ex-primeiro-ministro italiano: oferecer carícias ao marido, vá lá, faz parte do contrato matrimonial; faltou-lhe explicar como podem as donas de casa oferecer essas carícias a alguém com quem não tenham contraído matrimónio. É que na expressão “simples gestos caseiros” cabem muitas possibilidades…

A Sra. Berlusconi – que, a propósito, tem nome próprio: Veronica Lario – prossegue a sua saga anacrónica. Reclama dos homens o reconhecimento de um estatuto específico para as mulheres. Desenganem-se os arautos da igualdade dos sexos. A D. Veronica quer que os homens não incentivem as consortes a optarem por uma carreira igual à deles. Uma carreira profissional, onde se joga o prestígio, o poder, o dinheiro, a ambição, está reservada aos varões. De outro modo, as senhoras não terão condições para exercer a função para que foram criadas – supõe-se, com a ajuda do dedo divino: serem fadas do lar. Para agigantar os fantasmas que se levantam detrás das nuvens da modernidade, a D. Veronica apressa-se a pressagiar o futuro caso as mulheres se demitam do seu lugar de “anjos morais do lar”: de acordo com a sua mente fantasiosa, hão-de nascer muitas “gerações mortas”. (E o que é uma “geração morta”?)

O mundo pequenino da senhora Berlusconi é este: lugares diferentes, papéis diferentes, uma caução à estafada superioridade masculina. Já sabia que ainda sobrevivem abundantes exemplares do marialvismo que, por cá, tem expressão em toureiros monárquicos com veia para o fado gingão. Desconhecia que há, entre a fauna feminina, quem escreva palavras de apoio ao marialvismo retrógrado. Terá a D. Veronica feito um curso intensivo com D. Nuno da Câmara Pereira?

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