4.2.08

O corso carnavalesco e o festim dos medíocres


Tenho que admitir: nunca o carnaval me aliciou. Não me lembro de envergar máscaras, nem de ficar extasiado perante a possibilidade de fazer de conta, por umas horas. Será defeito pessoal: macambúzio, ou melancólico, ou a maldição de olhar para as coisas pelo seu lado tão sério, mas o carnaval nada me diz. Contudo, o que se segue não é alinhamento pela repugnância dos festins carnavalescos. Admiro os populares que convocam a imaginação para escolher os bombos da festa que enfeitam os corsos carnavalescos. A farta dose de criatividade que se passeia nas ruas, com áspera crítica social em cada corso carnavalesco. E a coragem de meninas de corpos em trajes menores, expostas às inclemências atmosféricas no auge do inverno.

É pelas imagens dos desfiles dos carnavais caseiros que me apercebo como é ingrato pertencer à classe política. São os alvos de excelência dos corsos: governantes e políticos retratados como carretos grotescos, passeando-se na rua, expostos à chacota do povo. É nessa altura que os políticos caseiros mostram o seu elevado espírito olímpico: sorriem ao verem-se retratados, e retratados de maneira que nada os favorece. Riem ao lado do povo, que ri deles. Um caso sério de autocrítica.

Há nos desfiles carnavalescos uma mensagem sublime: a menos que haja falta de assunto para enfeitar os corsos, a repetida utilização dos governantes e políticos dirá que eles se põem a jeito do escarnecimento carnavalesco. E quem assim se põe a jeito é merecedor do escárnio. As fraquezas da classe dão matéria-prima abundante para a febril criatividade dos encenadores dos desfiles de carnaval. Eu diria que a dificuldade será escolher entre a fartura de motivos. Aos encenadores do carnaval não falta assunto para alimentar a criatividade. É só andar atento à mediocridade impante que desfila, vaidosa, todos os dias pelas páginas dos jornais, pelos ecrãs das televisões.

Nos corsos de carnaval, um retrato fiel. Por um lado, a prova fidedigna de como a malsã mediocridade tomou conta do palco da política. Para lauto comprazimento dos fazedores dos corsos, agradecidos pela avantajada matéria-prima que recolhem ao longo do ano. Por outro lado, os carnavais são o ponto alto da crítica social que se exercita todos os dias e de que são alvos os políticos. A prova da incómoda função que é ser político. A democracia na sua veste ignóbil: a voz ao povo ingrato, sem se curvar perante os inexcedíveis préstimos de uma sacrificial classe política que, é sabido, se entrega no altar do serviço público, incapaz de se amesendar no lauto manjar que a sinecura proporciona.

A visibilidade pública dos políticos faz o resto: de tanto gostarem de ter sobre si as luzes de néon, ficam mais expostos às perguntas incómodas de jornalistas não domesticados. Como deve ser tremendo o desconforto de não ser possível andar nas ruas recolhido no anonimato, porque os olhares se deitam sobre eles. Deixam de ter vida própria: os restaurantes onde vão, o que comem, as lojas que frequentam, o que vestem, os hotéis que os recebem de férias, os livros e os discos que compram, tudo se sabe logo. E as suas máscaras que os desfiguram passeiam-se rua fora quando o calendário anuncia mais um carnaval.

Ou é defeito pessoal, na incapacidade de recordar políticos que tenham sabido irromper entre a sensaboria geral da mediocridade, ou todos os anos se repete o cenário dos carnavais: há sempre caretas de políticos, o povo zurzindo deles à mistura com indisfarçável crítica que mostra a insatisfação com a casta dos medíocres. O problema é que, de ano para ano, o lodaçal se adensa. Quando se pensava que já havíamos batido no fundo, em breve o surpreendente achado: afinal ainda havia mais fundo para descobrir. De mediocridade em mediocridade, os carnavais que se sucedem andam às voltas com a mesquinhez que magoa, tanto que só apetece levitar daqui para fora, ou fazer de conta – tal como os carnavais fazem, por três dias – que os medíocres são apenas uma ilusão que amedronta os pesadelos. E que afinal tudo não passa de uma mentira, porque ao acordar damos conta que a verdade era só uma ilusão contada através de um pesadelo. Que acaba depurado na diálise dos corsos carnavalescos.

Se calhar há um acordo secreto, uma intangível cumplicidade, entre os políticos e o carnaval. Se andássemos à míngua de políticos medíocres, que seria dos corsos carnavalescos?

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