27.2.08

A suculenta filosofia


(Ou talvez a confirmação do texto de ontem.)

Nas últimas semanas, as terças-feiras reservam um ritual indeclinável: ler a crónica de Desidério Murcho no Público. Umas crónicas simples, argumentos persuasivos, convidando o leitor a aventurar-se pelos terrenos da filosofia. É verdade que a filosofia não está na moda. Vinga o culto do pragmatismo, e até o hedonismo que trepou na escala das prioridades (nada contra) parece encerrar em si a contradição da filosofia. O clima não é favorável a efabulações filosóficas. Aliás, os crânios que habitam no ministério da educação, aqueles que se especializaram a falar em “pedagoguês”, propõem-se banir a filosofia dos currículos escolares. É por isso que há quem lhes chame “pedabobos”.

O mérito das crónicas de Desidério Murcho é esse: apostar-se em mostrar, através de singelas palavras, que a filosofia é um mundo maravilhoso. Uma inevitabilidade para seres que se dizem pensantes. Até para os que se entregam aos predicados do hedonismo a filosofia é um oceano de agradável mareação. Para não sermos a negação da natureza humana, de que tanto nos envaidecemos como traço distintivo dos animais irracionais, vem o irrefutável exercício da filosofia. Na crónica de ontem, mergulhava num livro perdido de Aristóteles (“Introdução à Filosofia”). De onde recuperou um axioma indeclinável: “se temos de filosofar, temos de filosofar; se não temos de filosofar, temos de filosofar; logo, em qualquer caso, temos de filosofar”.

Pode parecer apenas um truque de retórica, mas o cronista trata de desmontar a aparência. O que aquela frase significa é que mesmo os que desdenham da filosofia e se recusam a ensaiar exercícios de filosofia acabam por fazer filosofia – ainda que não se apercebam disso. Donde, a impossibilidade de negar a filosofia. O que exprime a sua grandeza. Diria, a sua natureza metafísica, pois a filosofia é que nos cerca por todos os lados, a filosofia é que está – para usar linguagem bíblica – “no meio de nós”.

O que Aristóteles quis provar foi o seguinte (e retomo a explicação de Desidério Murcho): “qualquer argumento contra a Filosofia teria de ser filosófico. Portanto, para rejeitar a Filosofia temos de filosofar”. E para encostar a um canto da inexpressividade os “pedabobos” do ministério da educação, conclui de forma peremptória: “a opção não é entre ter ou não ter ideias filosóficas. É tão impossível viver sem ter ideias filosóficas como é impossível viver sem ideias físicas. A opção é entre tê-las, estudando-as cuidadosamente, ou ter a ilusão de que não as temos, só porque não nos demos ao incómodo de as estudar”.

Recupero a crónica da semana anterior, sobre a discussão pública – ou de como, tantas vezes, o que achamos ser a discussão pública que empresta à democracia um dos seus ingredientes básicos não passa de debate enviesado (e isto acontece tanto na política, como na discussão académica, ou em qualquer domínio onde sejam confrontadas ideias). Desidério Murcho adverte que frequentemente os paladinos da tolerância se escondem na ajuizada (por eles) superioridade dos seus argumentos. Uma falsa tolerância, pois. Quando a discussão é condicionada à partida por quadros mentais imóveis, a tolerância esboroa-se com a facilidade de um castelo de areia varrido pela preia-mar. Como bem nota, o que está vulgarizado não é o confronto das ideias mas a “contagem de espingardas”. As ideias são esmagadas pela lógica dos números. Não aprendemos com um esteio da vida: que quase nunca quantidade é qualidade.

E voltamos a aprender com os axiomas da filosofia, quando Desidério Murcho recorda que “um argumento, para ser cogente, tem de reunir três condições. Tem de ter premissas verdadeiras; as suas premissas têm de tornar impossível ou improvável a falsidade da conclusão; e tem de ter premissas mais plausíveis do que a conclusão. Mas mais plausíveis para quem? Para quem discorda da conclusão. Quando argumentamos a favor de algo, a nossa audiência não é quem já concorda connosco, mas quem discorda”. Este é o desafio: a discussão de ideias com quem delas discorda. De outro modo, trata-se de comícios auto-congratulatórios com a ajuda de uma turba ensinada. Na discussão descomprometida tem que haver predisposição para perceber onde se situam os outros, os que sabemos que discordam de nós.

Por isso, a tolerância genuína exige um esforço de pedagogia a cada indivíduo. Como sintetiza o cronista, temos que ser “um pouco ateus perante as nossas próprias convicções. Chama-se a isso abertura de espírito: a capacidade para avaliar imparcialmente e com boa vontade todas as ideias, por mais ofensivas ou insuportáveis que nos pareçam.” Sem darmos conta, poucas vezes temos esta predisposição mental. Compramos livros que prolongam as ideias em que acreditamos – este é o melhor exemplo.

No entanto, há brechas que vão no encalço do método ensinado por Desidério Murcho. Dou um exemplo: na digressão diária pelos blogues, há dois que são leitura obrigatória – Causa Nossa e Ladrões de Bicicletas. O primeiro, para perceber o tom laudatório do governo actual, e para comprovar a ideia que há quem acredite viver num país diferente do que passa diante dos olhos. Eu quero tentar ler essa ilusão pela lente de quem vende os méritos deste governo. O segundo, por estar nos antípodas das minhas ideias. Leio-os para aprender.

1 comentário:

Desidério Murcho disse...

Caro PVM

Muito obrigado pelas suas amáveis palavras e, sobretudo, pela extensa reflexão que teceu partindo das minhas crónicas. Penso que nunca fui lido publicamente com tanta atenção. Muito obrigado e espero poder continuar a merecer a sua atenção -- mesmo que para discordar.