20.3.08

Impressões


De uma viagem sobram pinceladas avulsas. Um observador não resiste ao que passa diante dos olhos. Pequenos gestos, palavras escutadas, um acontecimento insólito, ou um acontecimento banal, registados na memória instantânea. Impressões fugazes que se perdem no seu rasto com o esvanecer do tempo. Por serem fugazes lampejos do viajante em trânsito. Anotados de cor, sucedendo-se nos contrafortes da memória. Ficam espelhados numa paleta de imagens que desfila como memória de uma viagem. Uma amálgama que reproduz um quadro difuso, como se houvesse uma intersecção de lugares e pessoas e palavras desconexos entre si. O denominador comum é o narrador.

A rapariga italiana a benzer-se quando sentiu os motores do avião a subir de rotação, nos preparativos para a descolagem. Há quem tenha medo de voar. Há quem exteriorize incómodo quando o avião está quase a atirar-se para os céus, ou quando retoma contacto com o solo. Há os que entram em pânico quando o avião chocalha nos céus, por causa do capricho das correntes de ar que embrulham o avião em turbulência. É possível que já tenha estado sentado ao lado de passageiros que fazem as suas orações antes da partida. Nunca as escutei, porventura interiorizadas no silêncio. Aquela rapariga benzeu-se três vezes quando o avião foi empurrado pela força bruta dos motores. E balbuciou umas palavras, muito baixo, imperceptíveis. Senti-me protegido pelo pedido de bênção divina da companheira de viagem. Ao aterrar, apetecia agradecer-lhe: não houve turbulência, o avião não chegou atrasado e até a aterragem foi mais ou menos suave. O avião estava entregue nas mãos de deus, pelo acto tão simples da rapariga a benzer-se e pela curta oração sussurrada. As leis da física, que põem aviões daquela tonelagem no ar, ignoradas; e a diligência dos pilotos, também detalhe irrelevante. Nas mãos de deus, que abrira os ouvidos às preces da menina e tomara em sua protecção aquele avião.

As meninas (disseram-no, alto e bom som, retorquindo à hospedeira que lhes perguntou se eram maiores de idade: “ainda não chegámos aos trinta”) sentadas nos dois lugares atrás de mim, no regresso ao Porto. Duas horas de viagem e, asseguro-o, nem sequer um minuto de silêncio. Toda a saliva gasta nos assuntos mais mundanos que duas mulheres que personificam o lado mais banal do sexo feminino conseguem exercitar. Os champôs que dão brilho ao cabelo, o solário frequentado por uma delas, o namorado da outra que hesitava no decisivo passo do casamento, ela que tanto sonhava com um vestido branco com as costas desnudadas, os perfumes que levavam para o namorado e para o irmão, os homens – ah, os homens, são todos iguais! – que se deixam atraiçoar pelas hormonas e deslizam para a traição da monogamia, mas sempre com o perdão magnânimo das namoradas que tanto bem lhe querem. E até os detalhes de motéis que recebem “as amantes dos patrões” (mas com tantos pormenores, que uma delas relatava na terceira pessoa, parecia mais a envergonhada confissão de já ter frequentado um destes “lugares de pecado”). Percebi: professoras secundárias exiladas da incerteza das colocações nas escolas. Davam aulas de português em escola inglesa. Desejo-lhes que não sejam atraiçoadas pela desorientação geográfica: é que Estrasburgo não é na Alemanha.

O mendigo no metro de Londres. Vagueava pelas carruagens, de caneca imunda estendida suplicando a esmola dos passageiros. Entoava as mesmas palavras, a espaços silenciadas pelo ruído que o metro fazia. Pedia desculpa por incomodar os passageiros. Ninguém esboçava reacção. Ninguém olhava para ele. Era como se ele nem ali estivesse. Todos nós, passageiros, inertes na hipocrisia. Vendo a insensibilidade das pessoas que partilhavam a carruagem com ele, punha fim a uns segundos de silêncio pedindo outra vez desculpa por ter incomodado as pessoas. A voz calma, sem entoar o menor ressentimento pela hipocrisia de quem desviava o olhar. Resignado, sem esmola naquela altura, saltou da carruagem na próxima estação.

Os ingleses (e não só) estão cada vez mais divorciados da higiene. Pegam nos jornais gratuitos, lêem-nos durante a viagem no metro ou no comboio e, à saída, é um restolho indescritível de comunicação social espalhado pelos bancos e pelo chão. Ouve-se um anúncio a cada paragem do comboio incentivando as pessoas a levarem consigo os jornais já lidos. Em vão. Agora percebo que escasseiem em Londres os baldes de lixo em zonas públicas. São uma desnecessidade. Sugestão de acção militante para as franjas ambientalistas: lutar, com denodo, contra os jornais gratuitos. Empestam o ambiente.

Um idoso de cabelos desgrenhados e barba descuidada, passeando pela trela uma marta branca pelas ruas pejadas de turistas. O bicho parecia habituado, até à incredulidade das pessoas que paravam e tiravam fotografias. O homem responda às solicitações de um bando de turistas japoneses que recorreu ao arsenal de máquinas fotográficas digitais. E não era para receber uns trocos, como há alguns mendigos que treinam cãezinhos dóceis para pegarem o receptáculo da esmola pela boca e derreterem os corações de manteiga dos transeuntes. O homem fazia o seu passeio higiénico com a marta que ia, alegre, palmilhando o empedrado de Covent Garden.

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