21.3.08

Lua, desordem do sol


Mistérios que a madrugada encerra: noites de lua cheia em madrugada primaveril, quando o crepúsculo matinal já se anuncia. A imensa lua platinada que vai perdendo essa tonalidade. Insinuam-se no largo disco lunar as cores alaranjadas do sol que espreita pela timidez do horizonte onde ainda se esconde. A lua copia o mesmo trajecto do sol que antes dela se pôs no firmamento. Engorda à medida que se deita no horizonte. Como se fosse um enorme rosto de bochechas viçosas, minuto a minuto na deriva que a há-de fundir com a linha do horizonte, até mergulhar nas águas atlânticas que são o seu repouso.

No seu ocaso, as cores que se apoderam da lua são uma fantástica coreografia que lhe empresta diferentes pigmentações. Na descida que a aproxima das calmas águas do mar, diz adeus à alvura cintilante que ostentou quando se hasteou no pino do céu. Ao vergar-se diante do magnetismo do ocaso marítimo, ganha matizes diferentes. Perde a cristalina alvura, granulando-se nela uma textura acinzentada. Torna-se mais nítida como circunferência platinada no seu ocaso quando se agiganta no firmamento. Ao descer, que há-de terminar com um beijo no mar, a platinada espessura da lua infiltra-se com ao início ténues centelhas alaranjadas. Anúncio do sol que se apresta a encomendar o ocaso lunar.

Dois hemisférios, no seu antagonismo natural. Vivem a descompasso, lua e sol. O enorme disco lunar ensaia uma coreografia de antípodas com o sol, que só está à espera que a lua mergulhe nas distantes águas do mar. Há uns instantes em que se encontram, mesmo que não sejam simultâneos no firmamento que se distingue a quem os observe de posto terrestre. É quando os primeiros raios solares se desprendem do lado nascente, vomitando-se na imensidão que os separam do ocaso lunar. Tocam ao de leve o parâmetro poente onde ainda reside a enfraquecida lua, a cansada lua na sua longa visitação nocturna.

Há dois crepúsculos que se misturam, trinando a sua osmose. A escuridão que domina o poente contrasta com a claridade que vai tomando conta do nascente. É quando o crepúsculo solar invade o crepúsculo da lua, fundindo na lua poente as cores raiadas do sol madrugador. Uma estafeta. Fina charneira que distingue o dia da noite. Nunca pela tradição abrupta, que a noite não finda de uma só vez, cedendo lugar, também de uma vez só, ao dia nascente. Os crepúsculos misturam-se, sorvem a transição da luminosidade à paleta de cores que se oferece na sua lânguida contagem.

Retenho a imagem da nédia lua invadida por suave tonalidade alaranjada. Apetecia emoldurar aquele instante, por saber que, sem demora, a implacável clepsidra virá toldar o encantador cenário. Um retrato tirado de memória, na impossibilidade de roubar ao tempo os seus ponteiros que não cessam de o cadenciar. Um êxtase que se consome nos breves instantes da contemplação do dilúculo quando a lua sagra uma dança invisível com o sol nascente que, de muito longe e ainda sem se ver, estende mão à lua já cansada. Um contrapeso de energias: a lua exangue a deitar-se no seu leito oceânico na fina linha do horizonte; e o sol retemperado do sono nocturno, ansioso por aspergir a terra com o seu feixe de complacente luminosidade.

Mas é a lua já enfraquecida, exposta ao sol ainda escondido que todavia tremeluz, invadindo a lua que se deixa tomarr pelo estranho corpo solar. Uma cumplicidade de astros, um retrato deslumbrante que se demora uns instantes muito breves, antes da coreografia das cores entrar em descompasso e tudo se toldar na diferença das luzes. O suave alaranjar da lua é o sinal do seu ocaso. A lua cheia repousa nas águas que se aclaram com a intensa luz do sol trepando nos contrafortes do céu. Até que a magia astrofísica se repita no dia seguinte, enquanto a lua estiver grávida da sua plenitude. E enquanto não houver a sombra de nuvens traiçoeiras a encobrir o admirável espectáculo. Motivo decente para uma madrugadora alvorada que retira o corpo tão cedo ao sono.

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