18.3.08

Ninguém mexe nos meus piercings


Já entra no domínio da adivinhação: qual será a próxima proibição? O que virá aí para cercear os nossos maus hábitos, na sagração da política do bom escuteiro que nos é concedida pela graça socialista? De uma assentada, duas proibições: piercings fora de estabelecimentos licenciados (e proibição total aos menores de idade; e proibição total de piercings na língua); e o que se convencionou chamar “cães de raça perigosa”, impedidos de deixar prole.

É louvável o esforço para impedir que ignóbeis cidadãos se deixem possuir pela falta de esclarecimento. Na retaguarda está o governo que pratica a acção do bom escuteiro. O bom escuteiro ajuda a velhinha a atravessar a estrada; o governo acolhe-nos sob a sua protectora e generosa asa, não deixando que façamos as asneiras que ousamos querer. Semear piercings no corpo? Doravante, em estabelecimentos licenciados, com todas as condições de higiene garantidas. E nada de colocar piercings em zonas sensíveis do corpo. A prestimosa lei, consta, proíbe-os na língua por causa dos riscos de infecção. A ASAE à espreita?

Isto faz-me lembrar a primeira casa de piercings e tatuagens que vi, em Brighton. Na montra, uma listagem com os locais do corpo que podem receber piercings de várias formas e feitios. Só na secção “genitais” o cardápio desdobrava-se por meia dúzia de possibilidades. Ora a lei gerada pelos sapientes socialistas caseiros é pacóvia. Ignora a panóplia de piercings em genitais femininos e masculinos. Ou será que não são zonas sensíveis como a língua? Ou, por não andarem à mostra, adormeceu-se a fobia reguladora dos governantes? Inclino-me para a hipótese pacóvia. Podem os governantes trajar fatos Armani e mostrar “modernaça” imagem que nunca passarão de uns reciclados pacóvios de aldeia, sequer incapazes de soletrar a palavra “cosmopolita”.

Aos que juram a pés juntos que é por imperativos de saúde pública que partiu a investida sobre piercings e quejandos: não compro. Os imperativos, por vezes, mascaram-se de pretextos para outros objectivos, inconfessáveis. O que seria de um governo se reduzisse a sua actuação a um estatuto minimal, no fundo compatível com o estatuto de maioridade dos cidadãos eleitores? Seria um governo com pouco para fazer. Um governo que podia dispensar um fiel exército de consultores e adjuntos e experts e militantes à procura de um tacho qualquer. Inverta-se, pois, a lógica. Criem-se as oportunidades para empregar o séquito de mão estendida. E criem-se as oportunidades para que se perceba que o Estado existe para nos proteger. Nem que seja de nós mesmos, se entretanto arrepiarmos por caminhos desaconselháveis. Os cordelinhos que adejam sobre cada um de nós entrelaçam-se em seus nós inquebráveis. Omnipresentes e manobrados pelos artistas da engenharia social.

Podemos sempre resvalar para a irresponsabilidade, temporariamente ensandecer. Mas sabemos que o magnânimo e paternalista Estado é o nosso guarda-costas. E se teimamos em asneirar em excesso? A solução fatal: proíba-se o comportamento. Se perdemos o discernimento para ajuizar o que nos faz mal, entrada em cena de um legislador fazendo as vezes de paternal figura que impede a asneira e nos põe de castigo caso sejamos levianos ao ponto de insistir no tiro no pé. Quando for varrido o restolho, sobra o endurecimento da mão governamental. E o enfeudamento das pessoas, a cada passo destinadas a serem obedientes membros de um rebanho bem comportado.

Como na espuma do dia não chegava proibir piercings, a fúria não deixou escapar as “raças de cães perigosos”. Sete raças de cães condenadas a esterilização, pois a salvífica lei impede a sua procriação. Ainda não ouvi uma palavra dos palavrosos ambientalistas contra tal absurda lei. Não se trata de genocídio canino? E não há ninguém que explique aos dedicados governantes que perigosos são os donos dos cães quando os treinam para serem agressivos e mortais? Nada vi escrito sobre leis idênticas noutros países. Como este governo se ufana de vanguardismo em coisas insignificantes, presumo que a tábua proibicionista, este cutelo que extingue raças caninas, não tem precedentes.

Ah valentes governantes que exterminam raças caninas à força de decreto! Não serão eles, súcia socialista, mais perigosos que mil pitbull enraivecidos? Proíba-se, e muito. De tudo um pouco. Sempre e mais. Até nada sobrar para proibir.

(Em Forlì, Itália)

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