6.3.08

Running up that hill


A ladeira inclinada. Escalada a pulso. Como se fosse alpinismo em elevadas altitudes, o oxigénio escasso cerceando a respiração, cada golfada de ar a despenhar-se nos pulmões. O ar, um punhal afiado a cravejar-se nos pulmões. Alguns metros escalados, uma interrupção para fitar o que sobra da subida. Não se divisa o cume, abotoado por uma névoa espessa e gélida. Só tem a certeza que o caminho é de sentido único. Palmilhando as pedras espigadas, a urze que se esvanece assim que atinge a altitude onde rareia o oxigénio.

O discernimento parece embriagado. As ideias revolvem-se numa espiral tonitruante, sucedem-se numa sequência ilógica. Episódios desconexos, palavras sem ligação, pessoas rememoradas numa ordem aleatória. Alonga-se em exercícios que parecem um manual de surrealismo. A compasso com os passos certeiros que ultrapassam os metros imparáveis, sem cessar nem com o vento que assobia uma melodia furiosa, esbracejando-se contra o rosto enregelado. Dir-se-ia que os passos são já maquinais e o corpo se deixou possuir pela febril sucessão de ideias, palavras, pessoas, lugares que desfilam no pensamento. Funcionam como o condimento energético que move o corpo ladeira acima. O corpo matéria inerte domada pelo pensamento.

Havia ali entrega descomprometida à subida perene. Quanto mais palmilhava a encosta íngreme, mais o tecto de nuvens se encostava mais alto ainda. Parecia que as nuvens se assustavam com a escalada e se encolhiam na direcção do céu. Pelo meio, a serrania parecia não chegar ao seu fim. Exigia a renovação do esforço, mais um intervalo e outra inspiração funda. Para logo a seguir retomar a teimosia, sem sequer olhar para baixo só para apreciar a façanha já conquistada. Ou a recusa em olhar para trás só para não desencorajar a parte sobrante da subida, não fosse ausentar-se a audácia e o apelo do regresso ecoasse em voz alta.

Pela noite, buscava refúgio do vento sibilante. E repouso, calculando de cabeça o trajecto que faltava para terminar a subida. Mesmo durante o sono revolvia-se com sonhos da montanha que o desafiava na escalada. Nos sonhos, amedrontava-se com uma imagem: a montanha não tinha fim, uma subida interminável, ora íngreme ora suavizando-se. Adivinhava demissão de si mesmo se pusesse fim à escalada. Percebia o símbolo que a matéria onírica desvelava: aquela subida metódica era o roteiro – o seu roteiro que preenchia os anos uns atrás dos outros. Havia subida sem cessar, havia espinhos cravados na pele à passagem por agrestes plantas, havia pedras ásperas que se esmagavam contra os pés cansados, havia dias de agressiva intempérie que atraiçoavam a motivação. O sinónimo de uma vida inteira.

Enquanto houvesse matéria para subir, e de cada vez que o rompimento do tecto de nuvens desfizesse a paisagem escondida detrás das gotículas plúmbeas, a gratificante imagem de um pequeno promontório que servia para se situar. Olhando em redor, extasiado com a paisagem já sulcada – ora árida, ora verdejante – e desviando os olhos para o horizonte que traçava o percurso em falta. Sem se demover pelo intenso apelo da letargia, como se houvesse pequenos demónios segredando ao ouvido as delícias envenenadas do percurso estancado. Seria um tentador apelo, nas exangues forças que adormeciam os membros. Até que, das inóspitas profundezas nunca visitadas, uma torrente jorrava levantando-o para o acto contínuo do percurso inacabado. Teimar na escalada da ladeira, um sopro de jovialidade encantadora.

Os lugares por conhecer, as muitas viagens preparadas em actos mentais, caução suficiente para perseguir a ladeira íngreme diante dos olhos. Lá em baixo, planícies ofereciam-se leitos apetecíveis, onde o repouso haveria de premiar a obstinação. E, contudo, teimava em vaguear pelas altitudes, onde apenas existia a solidão do vento furioso, a terra inóspita semeada por pedras avulsas e a corajosa vegetação de arbustos que desafiavam a hostilidade ambiente. Era um exílio necessário, uma peregrinação determinada pela recusa em se esconder de si mesmo. Mergulho nas profundezas irreveladas do ser, só desnudadas a cada passo que escalava a ladeira inclinada.

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