1.4.08

Defenestrar


Fomos sempre lunáticos...lunáticos do passado e lunáticos do futuro. Não há nenhum país que esteja quatrocentos anos à espera que um rei reapareça. Não existe! E depois aparece um borra-botas: é ele! Trezentos anos depois! Isto é fantástico, isto é bonito até. Um povo menino, um povo criança, não é? Mas depois não dá para ser país. Como a Alemanha. Não dá. E querem que sejamos, querem-nos...a CEE quer isso, que sejamos... que cresçamos.” Mário Cesariny

Eternamente céptico quanto às capacidades pátrias? Nem que corra o risco de prosseguir na senda de um discurso cansativo. Cansativo, porque insiste em apregoar as desgraças lusas, num taciturno exercício que deixa o travo amargo de não descobrir entre a penumbra qualquer saída airosa. E cansativo, na exacta medida de sublinhar a tacanha portugalidade sem propor alternativa que cure as maleitas que afocinham numa vegetativa existência.

O pior é que nem devia existir exegese nacional. O que fazer com um corpo inerte, embrulhado numa doença teimosamente terminal e que, todavia, resiste a deitar-se na sua forma cadavérica? É por isso que insisto na ideia da vida vegetativa. Por aqui tudo se adia. Até o acto final. E Cesariny tem razão: se olhamos para trás, parecemos aprisionados, como povo – se é que há um devir comum caucionado por esta suposta existência colectiva, o que dava pano para mangas –, ao cutelo da História. A esquizofrenia que ainda nos atormenta: como podemos caber na pequenez a que fomos acantonados quando outrora houve impérios só para nós?

Cesariny está certo: somos pateticamente esperançosos. O sebastianismo é uma fábula (se uma fábula for considerada uma narrativa protagonizada por um ser inanimado). A descrença em nós e o cepticismo diante dos dias presentes alimentam a adoração por uma divindade qualquer que há-de chegar algures do passado. Quando a névoa se dissipar e a claridade for ungida pelo salvador em forma de semideus. Pergunto-me se não está explicado por que insondável mistério a palavra saudade não se traduz noutros idiomas. A nostalgia de uma imaginária personagem prende-nos ao futuro esperançoso. Uma infantil ligação entre o passado tão distante, de onde há-de ressurgir do túmulo a figura salvífica, e o futuro aspergido pela sua bondade. Só que o amanhã tarda em chegar.

Volto atrás: que interessa planar sobre as desgraças pátrias? Que interessa olhar para a pátria, sequer? Os que vivem atormentados pelo “país” esquecem-se da sua vidinha própria, tantas vezes os males de si que são coisa mais grave que o inditoso país. Não aprendemos. Contra mim falo, que distraidamente erro pelas mesmas ruelas da divagação como ente colectivo: por mais que me intriguem os ensaios de ensimesmamento colectivo, tentando fumigar a nação para do exercício sobrar um lugar mais aprazível para viver, a simples anotação do fenómeno atraiçoa a minha coerência. Não quero saber da poda – chame-se-lhe país, pátria, nação, ou o nome próprio. Haverá milagrosa solução para a doença? Que nos entregássemos nas delícias de uma apátrida condição.

Houvesse convicção da maioridade pessoal e, em vez do tempo desgastado em inúteis elucubrações sobre o devir nacional, cada um tratava da sua vida. Ao contrário, curamos da vida do “país”, como se o “país” tomasse conta da vida de cada um de nós. É esta a infantilidade sublime que nos agrilhoa a existência. Oxalá soubéssemos defenestrar o “país”. Tomara que a partitura que rege a orquestra fosse escrita pelas imensas mãos dos operários que fazem todos os dias o milagre invisível que move o paquiderme. Não interessa a partitura prodigiosa dos sucedâneos de D. Sebastião que se nos prometem com a passagem do tempo. Os predestinados acabam por fracassar, tantas as expectativas que se encavalitam na sua pesada existência. É dessa ingenuidade que padecemos: empenhados em selar uma inexplicável esperança no tempo ausente, na demissão de nós mesmos. Os problemas são atirados para a responsabilidade alheia, de uma entidade que, por se acreditar que seja salvífica, ganha tonalidades divinas.

Na sua incrível lucidez, Cesariny fez o photomaton da portugalidade: somos uns lunáticos, é certo. O futuro, eternamente adiado, uma promessa que goteja sempre sobre as bocas, adoçando-as. Uma miragem, só isso. Pretexto para iludir as cores baças emprestadas pelo presente que se perpetua. Até ao futuro que nunca mais chega, sobra a infantilidade congénita. Uma imberbe forma de ser. Enquanto não houve ciência, ou vontade, para defenestrar o maldito país que é alçapão de cada um de nós.

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