21.4.08

Mendigo por um dia


(Prolegómeno do texto de amanhã)

Quando a madrugada se anuncia na sua despedida, ainda as ruas se demoram, desertas, na ausência das pessoas. É quando se revelam os segredos da cidade. Há um segredo pungente: os mendigos e os sem abrigo, como tanta gente, ainda recolhidos no sono. Com uma diferença: o frio do inverno, sentem-no no corpo, os ossos tolhidos pela humidade que se espalha até ao tutano. Não têm tecto, nem sequer uma companhia para partilharem o sono e a vida com a face bela e a face triste. São as soleiras que os acolhem, mais uma amontoado de cartões e cobertores envelhecidos, fétidos, o ninho onde enganam o sono.

Os felizardos banqueteiam-se no seu sono repousado. Num leito aquecido, limpo. Sem escutarem o silvo do vento que esbarra nos cobertores dos que têm o céu como abrigo, os cobertores que se encharcam com a chuva que chega até aos locais que se pensaria serem protegidos. Nem as soleiras mais recuadas servem para amansar a furiosa tempestade que tira uma noite de sono. Nas casas, mesmo nas casas mais antigas, nas casas ainda sem os privilégios do conforto moderno, a tempestade só soa lá fora. Apenas o incómodo do vento que sopra furiosamente, esbarrando nas persianas, abanando as janelas, entrando pelas reentrâncias descuidadas das casas. Ainda assim, um privilégio ao ter em conta os corpos enregelados que nem o amontoado de cobertores aquece.

Um súbito impulso para simular a condição de mendigo. Por um dia que fosse. Houvesse a coragem para abdicar do conforto. Porventura para perceber que os queixumes que se sucedem pelos dias fora, a vida sombria que julgamos levar, são vestígios, uma irrelevância diante da experiência do mendigo.

Adivinho: não seria apenas a ausência de conforto, a ausência de um tecto, o corpo e os sentidos expostos ao céu ora luminoso, ora plúmbeo. Por si capazes de traduzirem o sacrifício supremo de dormir ao relento. As noites seguidas em demanda de uma soleira ainda não habitada por outro sem abrigo. E segredar aos deuses que a noite não tivesse visitas indesejáveis, meliantes noctívagos com o indizível deleite de atormentarem quem já de si leva vida sacrificada. O que mais difícil será? A noite ao relento? Ou a luz diurna recolhendo o discernimento dos sentidos, um longo bocejo enquanto dura o dia, na espera cansada pela noite incerta? Os dias sem rumo, uma longa errância pelas ruas, gastando os pés calejados pelo calçado roto. As refeições incertas. A fome a consumir-se a si mesmo. Os ossos tão cansados da indolência indesejada. Até que a fragilidade dos dias consecutivos trouxesse a doença e uma cama de hospital fosse, por fim, um tecto e um leito limpo. Porventura, residência final.

Pior seria a solidão a que se entregam os passos quotidianos de um mendigo. Os dias seguidos sem proferir palavra, a não ser as que fossem ditas no diálogo consigo mesmo, só para a voz não se desabituar da função. Os afectos desaprendidos. Sem lugar a partilhar o que fosse - alegrias ou angústias. Uma angústia virada para dentro, uma angústia a desdobrar-se em lancinante apelo para a vida sem significado. A certa altura, já nem interessava que fosse Inverno, com as noites tempestuosas ou o frio glacial, ou Verão, ou Primavera. Deixaria de haver estações. E até as palavras seriam um simulacro, desprovidas de sentido. E tudo seria uma longa anestesia de si mesmo. Talvez um espelho necessário para iludir inditoso destino.

Não há coragem que fale tão alto para abdicar do conforto e entregar o corpo, por um dia que fosse, à condição de mendigo. Seria sempre uma simulação, um curto dia para perceber as dores lancinantes da vida sacrificial, da solidão indeclinável. Não faz sentido ser actor neste papel. Não seria para aquietar as dores de consciência pela miséria alheia. Nem servia para semear bem-estar e felicidade por um punhado de mendigos. Perceberia, então, o egoísmo da encenação: pelo contraste a que me ofereceria, só para atingir a vacuidade de todos os momentos em que vem ao de cima uma inexplicável insatisfação que teima em vaguear.

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